Uma oração intercessória pela Igreja (96)
7.4.1.4. Riqueza da glória da sua herança nos santos (18) (Continuação)
A comunhão eterna com Deus é a nossa maior herança:
Vede que grande amor nos tem concedido o Pai, ao ponto de sermos chamados filhos de Deus; e, de fato, somos filhos de Deus. Por essa razão o mundo não nos conhece, porquanto não o conheceu a ele mesmo. Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que havemos de ser. Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque havemos de vê-lo como ele é. (1Jo 3.1-2). Ora, se somos filhos, somos também herdeiros, herdeiros de Deus e coerdeiros com Cristo; se com ele sofremos, também com ele seremos glorificados. (Rm 8.17).
É muito fácil perdermos a dimensão de nossa vocação por nos desviarmos de nosso chamado, tentando assumir o destino e trajeto de nossa vida em desconsideração do propósito de Deus.
Por vezes, no desejo de sermos “práticos”, criando uma escala pessoal de valores e prioridades, perdemos a dimensão do transcendente, daquilo que confere sentido ao nosso hoje. Não há nada mais prático do que os ensinamentos da Palavra de Deus, inclusive no que diz respeito à vida eterna e à eternidade.
Paulo instrui aos colossenses a que busquem as coisas do alto (Cl 3.1).[1] Isto não significa alienação, antes, é na reflexão bíblica e reverente da eternidade que descobrimos o sentido da vida e da nossa vocação neste estado de existência.
Portanto, a visão de nossa esperança já concretizada em Cristo, aguardada por nós pela fé, não nos aliena da realidade presente.
Calvino, como mais tarde os puritanos, era apaixonado pela consideração da vida eterna, pela certeza de participar da glória de Deus na eternidade.
Quanto ao anelo pela eternidade, orou:
Deus Todo-Poderoso, já que nossas vidas não passam de um momento, um mero nada e uma névoa, permite que aprendamos a lançar todos os nossos cuidados sobre Ti e de tal maneira dependermos do Senhor; que não duvidemos de que, quando for para nosso bem, o Senhor será nosso Libertador de todos os perigos que nos ameacem. Então, que também aprendamos a desprezar e ser indiferentes em relação às nossas vidas, especialmente em prol do testemunho de tua glória, para que estejamos prontos a partir assim que o Senhor nos chamar deste mundo. E que a esperança da vida eterna esteja tão arraigada em nossos corações, que possamos voluntariamente deixar o mundo e aspirar com toda nossa mente a bendita eternidade, a qual Tu testificas por meio do Evangelho, a qual está preparada para nós nos céus e a qual Teu Unigênito Filho conquistou para nós pelo Seu próprio sangue. Amém.[2]
Escreveu também:
A Glória de Deus deve ser-nos mais preciosa do que centenas de vidas. Não podemos ser testemunhas do Senhor se não pusermos de lado todo o nosso anseio pela vida, pelo menos até onde pudermos pôr a glória de Deus em primeiro lugar. Entrementes, precisamos observar que isso não pode ocorrer a menos que sejamos imbuídos da esperança de uma vida melhor. Pois quando a promessa da herança eternal não toma posse de nossos corações, não conseguimos separar-nos do mundo. Pois anelamos por viver, e esse anelo não nos pode ser arrebatado salvo se a fé o dominar.[3]
Conforme já ilustramos, Calvino foi um exemplo de homem que mesmo cercado de obstáculos e adversidades, procurava manter sua fé serena em Deus e em suas promessas. Um combustível eficaz à sua fé era a certeza escatológica da vitória de Cristo e a vida eterna da qual somos herdeiros. Por isso, estava sempre preparado para partir.[4]
No entanto, jamais o Reformador perdeu a dimensão de sua responsabilidade onde Deus o havia colocado. Pelo contrário, esteve totalmente comprometido com uma grande reforma espiritual, ética e social em Genebra que, depois, seria modelo de grandes reformas feitas pelos protestantes na Europa, Estados Unidos e em seus diversos campos missionários ao longo da história.
A ética de Calvino tem como um de seus fundamentos a doutrina da Providência. Crê que é impossível uma vida cristã autêntica sem o descanso proveniente da confiança subjetiva no cuidado de Deus: “Quem quer que não confie na providência divina, bem como não encomende sua vida à fiel diretriz dela, ainda não aprendeu corretamente o que significa viver. Em contrapartida, aquele que confiar a guarda de sua vida ao cuidado divino, não duvidará de sua segurança mesmo em face da morte”, interpreta.[5]
Ele está convencido de que “a regra que devemos observar, quando estamos em angústia e sofrimento, é esta: que busquemos conforto e alívio só na providência de Deus; porque em meio às nossas agitações, apertos e preocupações devemos encher-nos da certeza de que sua função peculiar consiste em prover alívio ao miserável e aflito”.[6]
A doutrina da Providência propicia ao crente “o melhor e mais doce fruto”[7] resultante da compreensão de que tudo está nas mãos de Deus. Nada acontece por acaso: para o cristão não há lugar para o “azar”, “sorte” ou “acaso”. Deus dirige todas as coisas de forma pessoal, sábia e amorosa! “A providência de Deus, qual é ensinada na Escritura, é o oposto da sorte e dos acontecimentos atribuídos ao acaso. (…) Todos e quaisquer eventos são governados pelo conselho secreto de Deus”.[8]
A certeza do cuidado de Deus é suficiente para acalmar a nossa ansiedade e a nos alegrar em Deus. Conforta-nos pastoralmente Calvino:
Não há outro método de aliviar nossas almas da ansiedade, senão repousando sobre a providência do Senhor (…). Nossos desejos e petições devem ser oferecidos com a devida confiança em sua providência, pois quem há que ore com clamor de espírito e que, com inusitada ansiedade e vencido pela inquietação, parece resolvido a ditar termos ao Onipotente? Em oposição a isso, Davi a recomenda como sendo a devida parte da modéstia em nossas súplicas para que transfiramos para Deus o cuidado daquelas coisas que pedimos, e não pode haver dúvida de que o único meio de refrear nossa excessiva impaciência é mediante a absoluta submissão à divina vontade quanto às bênçãos que queremos nos sejam concedidas.[9]
Daí a importância de mantermos nossa fé amparada em Deus, que cuida de nós não nos sendo indiferente: “…. Quando nada senão destruição se manifestar ante nossos olhos, para qualquer lado que nos viremos, lembremo-nos de erguê-los em direção do trono celestial, donde Deus vê tudo o que se faz aqui em baixo”.[10]
Qual a implicação ética disso tudo? Indiferença? Não. Analisemos este ponto.
Maringá, 10 de julho de 2023.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]“Portanto, se fostes ressuscitados juntamente com Cristo, buscai (zhte/w) as coisas lá do alto, onde Cristo vive, assentado à direita de Deus” (Cl 3.1). De fato, como somos peregrinos neste mundo, buscamos intensamente a cidade eterna: “Na verdade, não temos aqui cidade permanente, mas buscamos (e)pizhte/w) a que há de vir” (Hb 13.14).
[2]João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6,São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, (Dn 3.24-25), p. 218-219.
[3]João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6,São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, (Dn 3.19-20), p. 210. “Portanto, enquanto somos agraciados com o tempo, que apliquemos nossas mentes à meditação sobre a vida futura, para que possamos considerar o mundo como uma nulidade e, na medida em que houver necessidade, estejamos preparados para derramar nosso sangue em testemunho da verdade” (João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6,São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, (Dn 3.19-20), p. 212).
[4]Veja a sua correspondência já citada: John Calvin, To Madame de Coligny, “Letters,” John Calvin Collection, [CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), nº 655.
[5]João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 31.5), p. 16.
[6]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 10.1), p. 205.
[7]João Calvino, As Institutas,I.17.6.
[8] João Calvino, As Institutas,I.16.2. “Faz parte de seu [de Davi] propósito também exortar os fiéis a uma consideração da providência de Deus, para que não hesitem em lançar sobre ela toda a sua preocupação” (João Calvino, O Livro dos Salmos,v. 2, (Sl 40.5), p. 222).
[9]João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 55.22), p. 488-489. “O Deus que governa o mundo por sua providência o julgará com justiça. A expectativa disto, devidamente apreciada, terá um feliz efeito na disposição de nossa mente, acalmando a impaciência e restringindo qualquer disposição ao ressentimento e retaliação em face de nossas injúrias” (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 62.12), p. 584). “Os crentes gozam de genuína riqueza quando confiam na providência divina que os mantém com suficiência e não se desvanecem em fazer o bem por falta de fé. (…) Ninguém é mais frustrado ou carente do que aquele que vive sem fé, cuja preocupação com suas posses dilui toda a sua paz” (João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, (2Co 9.11), p. 193-194).
[10]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 9.6), p. 184.