Uma oração intercessória pela Igreja (60)
6. A Quem oramos (Continuação)
Spener (1635-1705),[1] escrevendo sobre a oração, segue uma linha semelhante: “Não é suficiente que se ore exteriormente, com a boca, pois a oração verdadeira e mais necessária acontece no nosso ser interior, podendo expressar-se em palavras ou permanecer na alma, mas, de qualquer maneira, lá acha e encontra Deus”.[2]
Conforme já estudamos, Paulo diz que nós, os crentes em Cristo, recebemos o Espírito de ousada confiança em Deus, que nos leva, na certeza de nossa filiação divina, a clamar “Aba, Pai”. ”Porque não recebestes o espírito de escravidão para viverdes outra vez atemorizados, mas recebestes o espírito de adoção, baseados no qual clamamos Aba, Pai” (Rm 8.15).[3]
O fato de Paulo usar a mesma expressão de Cristo para nós “significa que, quando Jesus deu a Oração Dominical aos seus discípulos, também lhes deu autoridade para segui-lo em se dirigirem a Deus como ‘abbã’, dando-lhes, assim, uma participação na sua condição de Filho”, comenta Hofius.[4] Somente pelo Espírito poderemos nos dirigir a Deus desta forma, como uma criança que se lança sem reservas nos braços do seu Pai amoroso.
Quando oramos sabemos que estamos falando com o nosso Pai. Desta forma, a oração é uma prerrogativa dos que estão em Cristo. Somente os que estão em Cristo pela fé, têm a Deus como o seu legítimo Pai (Jo 1.12; Rm 8.14-17; Gl 4.6; 1Jo 3.1-2). De onde se segue que a oração do Pai Nosso, apesar de não mencionar explicitamente o nome de Cristo, é feita no Seu nome, visto que somos filhos de Deus – e é nesta condição que nos dirigimos a Deus – por intermédio de Cristo Jesus (Gl 3.26).[5]
Portanto, quando oramos o Pai Nosso sinceramente, na realidade estamos orando no nome de Jesus Cristo, pois, foi Ele mesmo quem nos ensinou a fazê-lo. Assim, devemos, pelo Espírito – nosso intercessor –, no nome de Jesus – nosso Mediador –, orar: “Pai nosso que estás nos céus….”.
O testificar do Espírito
Conforme temos estudado, o Espírito que em nós habita e nos leva à oração testemunha em nós que somos filhos de Deus. “O próprio Espírito testifica (summarture/w)com o nosso espírito que somos filhos de Deus” (Rm 8.16). O Pai Nosso é a “Oração dos Filhos”.[6] Ou, em outros termos, “a oração do redimido”.[7] É a oração comunitária dos filhos de Deus em adoração.
Valendo-me de expressões de Bonhoeffer (1906-1945), podemos dizer que o Pai Nosso é um “resumo” de todas as orações das Escrituras,[8] tornando-se um “gabarito”, por meio do qual devemos analisar a integridade bíblica de nossa oração.[9]
O problema, dentro do contexto vivido por Jesus, é que muitos dos judeus, na realidade, ofereciam as suas orações aos homens, mesmo usando o nome de Deus. Usar o nome de Deus não é garantia de estarmos nos dirigindo a Ele.
Do mesmo modo, podemos estar tão preocupados com a forma de nossas orações que nos esquecemos do Pai. É a Ele que a nossa oração é destinada. Portanto, cabe a Ele, que vê em secreto, julgá-la. A nossa oração não necessita de publicidade para que Deus a ouça. Ele vê em secreto e nos recompensa conforme o que vê (Mt 6.6).
No Antigo Testamento, por intermédio de Isaías, Deus recrimina os judeus dizendo que eles sacrificavam simplesmente porque gostavam de fazê-lo, não porque quisessem agradá-Lo. O ritual é que era prazeroso, não a satisfação de Deus:
Como estes escolheram os seus próprios caminhos, e a sua alma se deleita nas suas abominações, assim eu lhes escolherei o infortúnio e farei vir sobre eles o que eles temem; porque clamei e ninguém respondeu, falei, e não escutaram; mas fizeram o que era mau perante mim, e escolheram aquilo em que eu não tinha prazer. (Is 66.3-4).
Orar é exercitar a nossa confiança no Deus da Providência, sabendo que nada nos faltará, porque Ele é o nosso Pai. A oração tem sempre uma conotação de submissão confiante. Portanto, orar ao Pai, como temos demonstrado, significa sintonizar a nossa vontade com a dele; sabendo que Ele é santo e a sua vontade também o é (Mt 6.9,10).[10]
Bonhoeffer (1906-1945) comenta:
Uma criança aprende a falar, porque seu pai fala com ela. Ela aprende a falar a língua paterna. Assim também nós aprendemos a falar com Deus, porque Deus falou e fala conosco. Pela palavra do Pai no céu seus filhos aprendem a comunicar-se com Ele. Ao repetir as próprias palavras de Deus, começamos a orar a Ele. Não oramos com a linguagem errada e confusa de nosso coração, mas pela palavra clara e pura que Deus falou a nós por meio de Jesus Cristo, devemos falar com Deus, e Ele nos ouvirá.[11]
A presença e direção do Espírito na vida do povo de Deus é uma realidade. Desconsiderar este fato significa desprezar o registro bíblico e o testemunho do Espírito em nós (Rm 8.16).[12] “A vida cristã é companheirismo com o Pai e com o Filho, Jesus Cristo, por meio do Espírito Santo”, comenta Lloyd-Jones.[13]
Retornando mais especificamente ao texto de Efésios, analisemos agora mais um aspecto desta oração do apóstolo: A quem oramos.
Maringá, 29 de maio de 2023.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Spener é considerado o iniciador do Pietismo Alemão. No entanto, ao que parece, semelhantemente ao nome “calvinista”, “pietismo” foi uma alcunha dada pelos adversários de Spener em 1674 em Frankfurt (Cf. Heinrich Heppe, A History of Puritanism, Pietism, and Mysticism and Their Influences on the Reformed Church, Unknown. Edição do Kindle. Copyright © 1879. Tradução para o inglês: Copyright © 1997 Arie Blok, (Posição 6957 de 9615). Esse movimento surgido na Igreja Luterana na segunda metade do século XVII, teve como uma de suas características mais evidentes, a reação contra um cristianismo que sob muitos aspectos se tornara vazio, tendo uma prática dissociada da genuína doutrina bíblica. O alvo do Pietismo é um retorno à teologia viva dos apóstolos e da Reforma, com forte ênfase na pregação do Evangelho, acompanhada de um testemunho cristão condizente.
“Eu me pergunto – escreveu Spener em 1675 –, se o nosso estimado Lutero, caso ressurgisse nos dias de hoje, não teria também para nossas universidades palavras de repreensão quanto a essas e outras coisas, à semelhança de como agiu com zelo, em seu tempo.” Em outro lugar, diz: “Se o mais brilhante dos apóstolos [Paulo] voltasse ao nosso convívio hoje, ele próprio não compreenderia muitas coisas que as nossas engenhosas mentes proclamam dos púlpitos e das cátedras” (Ph. J. Spener, Mudança para o Futuro: Pia Desideria, São Paulo; Curitiba, PR.: Encontrão Editora; Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião, São Bernardo do Campo, SP.: 1996, p. 44 e 50. Veja-se também, p. 111-112). Para maiores detalhes sobre o Pietismo, veja-se: Hermisten M.P. Costa, Raízes da Teologia Contemporânea, 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2018.
[2]Ph. J. Spener,Mudança para o Futuro: Pia Desideria,São Paulo; Curitiba, PR.: Encontrão Editora; Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião, São Bernardo do Campo, SP.: 1996, p. 119.
[3] Veja-se: Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 618.
[4] O. Hofius, Pai: In: Colin Brown, ed. ger., O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 3, p. 383.
[5] Veja-se: João Calvino, As Institutas,III.20.36.
[6] Conforme expressão de Lloyd-Jones (1899-1981) (D.M. Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do Monte,São Paulo: FIEL., 1984, p. 358).Veja-se a relação feita por Calvino entre a oração e a convicção de nossa filiação divina (João Calvino, Exposição de Romanos,(Rm 8.16), p. 279-280).
[7] Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 630.
[8]“Todas as orações da Bíblia estão resumidas no Pai Nosso. A sua amplitude infinita abrange-as todas. No entanto, o Pai Nosso não torna as orações da Bíblia supérfluas, mas elas são a riqueza inesgotável do Pai Nosso e o Pai Nosso é sua coroa e síntese” (Dietrich Bonhoeffer, Orando com os salmos, Curitiba, PR.: Editora Encontrão, 1995, p. 15).
[9]“O Pai Nosso se torna o gabarito pelo qual conferimos se estamos orando em nome de Jesus ou em nosso próprio nome” (Dietrich Bonhoeffer, Orando com os salmos, Curitiba, PR.: Editora Encontrão, 1995, p. 15).
[10]“Portanto, vós orareis assim: Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome; venha o teu reino; faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6.9-10).
[11]Dietrich Bonhoeffer, Orando com os Salmos, Curitiba, PR.: Encontrão Editora, 1995, p. 12-13.
[12] “O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus” (Rm 8.16).
[13]D.M. Lloyd-Jones, Salvos desde a Eternidade, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2005 (Certeza Espiritual: v. 1), p. 98.