Uma oração intercessória pela Igreja (59)
6. A Quem oramos (Continuação)
Comentando o Salmo 91.12, diz o Reformador: “Nunca podemos aquilatar os sérios obstáculos que Satanás poria contra nossas orações não nos sustentasse Deus da maneira aqui descrita”.[1] Ilustra a sua tese: “Chamo tentação espiritual quando não somente somos açoitados e afligidos em nossos corpos; senão quando o diabo opera de tal modo em nossos pensamentos que Deus se nos converte em inimigo mortal, ao que já não podemos ter acesso, convencidos de que nunca mais terá misericórdia de nós”.[2]
Precisamos, portanto, “que o mesmo Deus nos ensine, conforme ao que Ele sabe que convém, e que Ele nos leve guiando como que pela mão, e que nós o sigamos”.[3]
Orar como convém é orar segundo a vontade de Deus, colocando os nossos desejos em harmonia com o santo propósito de Deus.[4] Isto só é possível pelo Espírito de Deus que se conhece perfeitamente (1Co 2.10-12).[5] Assim, toda oração genuína é sob a orientação e direção do Espírito (Ef 6.18; Jd 20).[6]
O Catecismo Maior de Westminster nos instrui:
Não sabendo nós o que havemos de pedir, como convém, o Espírito nos assiste em nossa fraqueza, habilitando-nos a saber por quem, pelo quê, e como devemos orar; operando e despertando em nossos corações (embora não em todas as pessoas, nem em todos os tempos, na mesma medida) aquelas apreensões, afetos e graças que são necessários para o bom cumprimento do dever.[7]
Dupla intercessão
O Espírito ora conosco e por nós. Ele, juntamente com Cristo, em esferas diferentes, intercede por nós: “Cristo intercede por nós, no céu, e o Espírito Santo na Terra. Cristo nosso Cabeça Santo, estando ausente de nós, intercede fora de nós; o Espírito Santo, nosso Consolador intercede em nosso próprio coração, que Ele escolheu como seu templo”, contrasta Kuyper (1837-1920).[8]
“A intercessão de Cristo é uma contínua aplicação de sua morte para nossa salvação”, resume Calvino.[9] A força da intercessão de Cristo não está na intensidade ou habilidade de sua defesa, antes, na eficácia de sua propiciação.[10]
Ela respalda-se nos seus merecimentos, obtendo para os seus eleitos, os frutos da sua obra expiatória (Rm 8.34; Hb 7.25; 1Jo 2.1).[11]
A sua intercessão, exclusivamente pelos seus discípulos,[12] faz parte de seu ministério sacerdotal, levando sobre si um jugo totalmente desigual e incompreensível a nós, como escreveu meu estimado mestre, Salum: “O Senhor Jesus Cristo, no tribunal divino, intercede pelos seus eleitos e carrega sobre si o peso de uma troca estranha, porém, gloriosa, incompreensível à nossa mente pecaminosa, mas acolhida com júbilo mediante fé (Mt 11.28-30)”.[13]
O Espírito intercede por nós considerando as nossas necessidades vitais e costumeiramente imperceptíveis aos nossos próprios olhos.
Calvino observou que na oração, “a língua nem sempre é necessária, mas a oração verdadeira não pode carecer de inteligência e de afeto de ânimo”,[14] a saber:
O primeiro, que sintamos nossa pobreza e miséria, e que este sentimento gere dor e angústia em nossos ânimos. O segundo, que estejamos inflamados com um veemente e verdadeiro desejo de alcançar misericórdia de Deus, e que este desejo acenda em nós o ardor de orar.[15]
Depois de falar sobre a necessidade de termos grande zelo pelo nome de Deus – zelo este que fez com que o salmista pedisse o castigo de Deus contra os seus inimigos que profanaram o templo, destruíram Jerusalém e mataram seus filhos de forma cruel –, Calvino acrescenta: “Se este sentimento reinasse em nossos corações, o mesmo facilmente moderaria o desgoverno de nossa carne; e se a sabedoria do Espírito lhe fosse acrescida, nossas orações estariam em estrita concordância com os justos juízos de Deus”.[16]
Maringá, 29 de maio de 2023.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] João Calvino, O Livro dos Salmos,São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 91.12), p. 454.
[2]Juan Calvino, El Carácter de Job, Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 1), p. 28.
[3]J. Calvino, Catecismo de Genebra, Perg. 254.
[4]“A oração não é um recurso conveniente para impormos a nossa vontade a Deus, ou para dobrar a Sua vontade à nossa, mas, sim, o meio prescrito de subordinar a nossa vontade à de Deus. É pela oração que buscamos a vontade de Deus, abraçamo-la e nos alinhamos com ela. Toda oração verdadeira é uma variação do tema, ‘Faça-se a tua vontade’.” (John R.W. Stott, I,II e III João, Introdução e Comentário, São Paulo: Vida Nova; Mundo Cristão, 1982, p. 159). Leenhardt (1901-1990) comenta: “Para orar ‘como convém’ é preciso orar ‘segundo a vontade de Deus’; isto, entretanto, não pode advir senão de Deus, Que só Se conhece. O mais é ação estéril” (Franz J. Leenhardt, Epístola aos Romanos,São Paulo: ASTE., 1969, p. 226).
[5] “Mas Deus no-lo revelou pelo Espírito; porque o Espírito a todas as coisas perscruta, até mesmo as profundezas de Deus. 11 Porque qual dos homens sabe as coisas do homem, senão o seu próprio espírito, que nele está? Assim, também as coisas de Deus, ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus. 12 Ora, nós não temos recebido o espírito do mundo, e sim o Espírito que vem de Deus, para que conheçamos o que por Deus nos foi dado gratuitamente” (1Co 2.10-12).
[6]“Com toda oração e súplica, orando em todo tempo no Espírito e para isto vigiando com toda perseverança e súplica por todos os santos” (Ef 6.18). “Vós, porém, amados, edificando-vos na vossa fé santíssima, orando no Espírito Santo” (Jd 20).
[7] Catecismo Maior de Westminster,Perg. 182.
[8] Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 634.
[9]John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1981, v. 22, (1Jo 2.1), p. 171.
[10] Veja-se: B.B. Warfield, O Plano da salvação, Brasília, DF.: Monergismo, 2019, p. 160.
[11] “Não temos como medir esta intercessão pelo nosso critério carnal, pois não podemos pensar do Intercessor como humilde suplicante diante do Pai, com os joelhos genuflexos e com as mãos estendidas. Cristo contudo, com razão intercede por nós, visto que comparece continuamente diante do Pai, como morto e ressurreto, que assume a posição de eterno intercessor, defendendo-nos com eficácia e vívida oração para reconciliar-nos com o Pai e levá-lo a ouvir-nos com prontidão” (J. Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 8.34), p. 304).
[12]Berkhof (1873-1957) demonstrando a Expiação Limitada de Cristo, enfatizou esse ponto: “A obra sacrificial de Cristo e sua obra intercessória são simplesmente dois aspectos diferentes de sua obra expiatória e, portanto, o alcance de uma não pode ser mais amplo que o da outra. Ora, Cristo limita mui definidamente a sua obra intercessória, quando diz: ‘Não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus’ (Jo 17.9). Por que limitaria ele a sua oração intercessória se, de fato, pagou o preço por todos?” (Louis Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990, p. 396).
[13]Oadi Salum, Teologia Sistemática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 400.
[14]J. Calvino, Catecismo de Genebra, Perg. 240. Para uma interpretação alternativa do texto de Romanos 8.26-27, consulte Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática,São Paulo: Vida Nova, p. 916-917, que associa a passagem a “suspiros e gemidos inarticulados que nós mesmos emitimos em oração, que então o Espírito Santo transforma em intercessão efetiva diante do trono divino” (p. 916).
[15]J. Calvino, Catecismo de Genebra, Perg. 243.
[16]João Calvino, O Livro dos Salmos,São Paulo: Edições Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 79.12), p. 260.