Uma oração intercessória pela Igreja (5)
Introdução: Sobre pastores, teologias e a Igreja (Continuação)
Os riscos da teologia
A teologia é sempre descritiva das Escrituras esforçando-se por relacionar as partes com o todo a fim de alcançar, por graça, um conhecimento mais completo e exaustivo do que Deus nos confiou em sua Palavra.
Em nosso trabalho, corremos o risco de desprezar a teologia, por meio de uma falta de seriedade para com a Palavra de Deus ou, de valorizá-la por uma perspectiva errada, atraindo para nós os holofotes, desejando cada vez mais sermos aceitos e reverenciados devido à nossa inteligência, eloquência e, por vezes, pela ousadia de nossas afirmações.[1] Nos esquecendo, de que a grandeza de nossa vocação está na imensa misericórdia de Deus. O sucesso no desempenho está na superabundante graça que nos capacita constantemente, nos ensinando, preservando, sustentando, disciplinado, consolando e estimulado.
Essas considerações são altamente estimulantes em nosso ministério: Deus nos chama por graça e nos preserva.
No primeiro dia de 1553, período turbulento, Calvino, então com 43 anos, escreve a sua carta dedicatória dos comentários do Evangelho de João aos síndicos de Genebra. A certa altura diz:
Espontaneamente reconheço diante do mundo que mui longe estou de possuir a cuidadosa diligência e outras virtudes que a grandeza e a excelência do ofício requer de um bom pastor, e como continuamente lamento diante de Deus os numerosos pecados que obstruem meu progresso, assim me aventuro declarar que não estou destituído de honestidade e sinceridade na realização de meu dever.[2]
De fato, se não formos mesmo vocacionados é melhor que não o façamos. Autovocação é o caminho da tristeza, angústia, frustração e muitos males para outras pessoas.[3] No entanto, atender à vocação de nosso Senhor é altamente estimulante e consolador.
O nosso chamado nos liga definitivamente por uma vocação divina ao Senhor da Igreja e ao seu povo:
Nada poderá encher-nos de mais coragem do que o reconhecimento de que fomos chamados por Deus. Pois desse fato podemos inferir que o nosso labor, que está sob a direção divina e no qual Deus nos estende sua mão, não ficará infrutífero. Portanto, pesaria sobre nós uma acusação muito grave caso rejeitássemos o chamado divino.[4]
O homem, uma vez chamado, que ponha indelevelmente em sua mente que ele não mais é livre para retroceder, quando bem lhe convier, se, por exemplo, as frustrações arrebatarem seu coração ou as tribulações o esmagarem; porquanto ele está dedicado ao Senhor e à Igreja, e se acha firmemente amarrado por um laço sagrado, o qual lhe seria pecaminoso desatar.[5]
Por outro lado, quando a nossa fidelidade inicial se transforma em capitalizações de reconhecimento, influência, cargos, salários, convites e fama, corremos o risco de reavaliar nossa vocação por algum prisma estranho às Escrituras. Isso me fez lembrar mais uma vez o corajoso e incisivo Lutero e o lúcido Calvino:
É para muito se lamentar o fato de que nenhum homem está contente ou satisfeito com aquilo que Deus lhe dá em sua vocação e chamado. As condições dos outros homens agradam-nos mais do que as nossas: como disse o pagão (Ovídio): “A colheita é sempre mais abundante nas terras do outro, e o gado de nosso vizinho produz mais do que o nosso”. E outro pagão (Horácio): “O boi preguiçoso deseja a sela do cavalo, e o cavalo lento, arado”. Quanto mais temos, mais queremos. Servir a Deus, para todos nós, permanecer em sua vocação e chamado, por mais simples e humilde que seja.[6]
Cada um deve viver contente com sua vocação, e persistir nela, e não viver ansioso em mudar para alguma outra coisa. (…) [Paulo] deseja corrigir a irrefletida avidez de alguns em mudar sua situação sem qualquer razão plausível, pois talvez são movidos por uma crença errônea ou alguma outra influência. (…) Condena o desassossego [de espírito] que impede os indivíduos de permanecerem alegremente como estão….[7]
São Paulo, 27 de março de 2023.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] “Se somos bem-sucedidos de uma maneira menor ou maior, louvemos a Ele por isso. (…) Devemos guardar nosso coração para não contaminar nosso serviço regozijando-nos em nossa própria glória demonstrada no sucesso em vez de na glória de Deus” (Vern S. Poythress, O Senhorio de Cristo: servindo o nosso Senhor o tempo todo, em toda a vida e de todo o nosso coração, Brasília, DF.: Monergismo, 2019, p. 141).
[2] João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, p. 23.
[3] “O que torna válido um ofício é a vocação, de modo que ninguém pode exercê-lo correta ou legitimamente sem antes ser eleito por Deus (…). Nenhuma forma de governo deve ser estabelecida na Igreja segundo o juízo humano, senão que os homens devem atender à ordenação divina; e, ainda mais, que devemos seguir um procedimento de eleição preestabelecido, para que ninguém procure satisfazer seus próprios desejos. (…) Segundo é a promessa de Deus de governar sua Igreja, assim ele reserva para si o direito exclusivo de prescrever a ordem e forma de sua administração” (J. Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 5.4), p. 127-128).
[4]João Calvino, As Pastorais,São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 6.12), p. 173.
[5]João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 9.16), p. 276-277.
[6]Martinho Lutero, Conversa à mesa de Lutero, Brasília, DF.: Monergismo, 2017, 891, p. 461-462.
[7]João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 7.20), p. 221-222.