Uma oração intercessória pela Igreja (46)
4.1.5.3. Manifestações do Senhorio Pastoral de Cristo
P. Está perto de nós
Paulo instrui os filipenses: “Seja a vossa moderação conhecida de todos os homens. Perto está o Senhor”(Fp 4.5).
O texto de Filipenses, por certo, se refere à vinda de Cristo.[1] Todavia, a sua aplicação é cabível dentro da visão bíblica, que nos mostra que Deus está perto dos seus servos nos guardando e preservando em todas as situações. (Veja-se: Sl 145.18; Mt 28.20).[2]
Deus está perto de sua Igreja. Devemos nos lembrar de que a situação da igreja entre os pagãos não era tranquila. As incertezas e perseguições eram constantes. Os próprios crentes filipenses enfrentavam perseguições, padecendo por sua fidelidade a Cristo (Fp 1.29). Numa atmosfera assim, é difícil manter a tranquilidade. No entanto, é isso que Paulo recomenda, considerando o fato da presença do Senhor.
O Senhor não abandona os seus, ainda que a sua presença nem sempre seja percebida devido ao velamento circunstancial de nossos olhos que permanecem dominados, por vezes, pelas angústias e incertezas que insistem em projetar os nossos problemas de forma maior do que são, como a sombra de um inseto na parede.
Quando assim nos sentirmos, devemos nos recordar da veracidade das Escrituras que trazem as promessas de Deus e, também, em suas narrativas que retratam a certeza transmitida por diversos servos de Deus em momentos de forte pressão, tão bem resumida pelo apóstolo Paulo: “Perto está o Senhor”.
O Senhor reina e cuida de nós de forma muito próxima e paternal. Como observou Calvino: “Que Deus toma cuidado de nós, esse é o melhor e mais poderoso meio de resistir às tentações”.[3]
Q. Atende as nossas orações
Atanásio (295-373), Bispo de Alexandria (328-373), que devido à sua fé comprometida com a plenitude da revelação bíblica, sofreu muitas perseguições e o exílio, tem registrado em sua lápide: “Atanásio; Deus foi por você, mesmo que mundo inteiro estivesse contra você”.[4]
Pedro escreve de forma consoladora e estimulante às igrejas perseguidas:“Porque os olhos do Senhor repousam sobre os justos, e os seus ouvidos estão abertos às suas súplicas, mas o rosto do Senhor está contra aqueles que praticam males” (1Pe 3.12).
Deus não é um Senhor distante, alheio às orações de seus servos, antes, Ele está atento às nossas necessidades. Podemos e devemos falar com Ele em toda e quaisquer circunstâncias.
Deus nos deu a sua Palavra e, nos empresta seus ouvidos para que possamos falar com Ele. Ele nos ouve em todas as circunstâncias. A sua Palavra deve ser o estímulo e o conteúdo de nossas orações.
As Escrituras trazem o testemunho de diversos servos de Deus que, em suas angústias, se fortaleceram na certeza de que Deus ouve as suas orações.
Os salmistas, entre tantos outros servos de Deus, em suas angústias, revelam a sua experiência e fé no cuidado do Deus que ouve as suas orações, alimentando-se nessa certeza: “Tens ouvido ([m;v’) (shama),[5] SENHOR, o desejo dos humildes; tu lhes fortalecerás (!WK) (kûn)[6] o coração e lhes acudirás (bv;q’) (qashab)” (Sl 10.17).
Deus ouve as nossas orações e fortalece o nosso coração com as suas promessas. As suas palavras não são vazias, antes, são os fundamentos de sua ação: Ele nos acode, nos socorre de fato. Aqui o salmista se vale de um sinônimo para reforçar a mesma ideia. Deus nos tem ouvido ([m;v’)(shama) e, por isso, nos acode (bv;q’) (qashab) em nossas reais necessidades. Ele dá atenção a nós e à nossa súplica.
Ainda que sejamos tentados em nossa precipitação a achar que Ele está distante ou muito ocupado, Deus sempre ouve com atenção as nossas súplicas. É o que demonstra Davi em outro Salmo: “Eu disse na minha pressa: estou excluído da tua presença. Não obstante, ouviste ([m;v’) (shama) a minha súplice voz, quando clamei por teu socorro” (Sl 31.22).[7]
Deus nos ouve até mesmo quando estamos sofrendo devido à nossa desobediência. Até sob justo castigo disciplinatório, podemos orar a Deus. Ele é misericordioso. Certamente uma das narrativas mais marcantes sobre esse assunto, é a de Jonas desesperado no ventre do peixe: “Então, Jonas, do ventre do peixe, orou ao SENHOR, seu Deus, 2 e disse: Na minha angústia, clamei ao SENHOR, e ele me respondeu; do ventre do abismo, gritei, e tu me ouviste ([m;v’) (shama) a voz” (Jn 2.1-2).
Devemos aprender a confiar em Deus, expor-lhe em oração as nossas angústias[8] e aguardar com fé a sua resposta: “De manhã, SENHOR, ouves ([m;v’) (shama) a minha voz; de manhã te apresento a minha oração e fico esperando” (Sl 5.3).
Aqui temos de forma ilustrada a intimidade do salmista com Deus e, ao mesmo tempo, a urgência e prioridade[9] já no início de seu dia e que se mantém em perseverança no decorrer dele. O salmista fazia a sua oração já pela manhã; ele não ficava aguardando uma oportunidade, quem sabe no final do dia. Não. Ele tem urgência em falar com Deus; está ansioso pela resposta.
Davi não apenas apresentava a Deus as suas angústias, antes, permanecia esperando: “De manhã, SENHOR, ouves a minha voz; de manhã te apresento a minha oração e fico esperando (hp’c‘)(tsâpâ)” (Sl 5.3). Outro ponto importante, é a sua reverência diante de Deus. Não podemos banalizar providência e a misericórdia de Deus. Elas devem nos conduzir ao senso de nossa pequenez, miserabilidade e a justa consideração da sabedoria e santidade de Deus. O salmista se coloca diante de Deus considerando a sua misericórdia em reverência e temor: “Porém eu, pela riqueza (bro) (rob) da tua misericórdia (ds,x,) (hesed), entrarei na tua casa e me prostrarei diante do teu santo templo (lk’yhe)(hekal), no teu temor” (Sl 5.7).
A nossa aflição sempre é prioritária. Quando estamos com alguma dor sempre temos urgência. Pelo que descreve o salmista, ele estava muito angustiado. Bem cedo expunha a Deus a sua oração.
Calvino comenta:
Não há dúvida, no exercício do desejo há sempre implícito algum grau de inquietação; mas aquele que está olhando para a graça de Deus com ansioso desejo, pacientemente a aguardará. Esta passagem [Sl 5.3], portanto, nos ensina a inutilidade daquelas orações às quais não se acha adicionada aquela esperança da qual se pode dizer que eleva as mentes dos suplicantes à torre de vigia.[10]
Portanto, é necessário que fiquemos no aguardo da resposta de Deus, que mantenhamos os nossos olhos direcionados para os sinais evidentes de sua graça em nos responder.
Em outro lugar, Calvino comenta sobre a oração responsável:
Aqui não se diz que, lançando o ofício da oração sobre o Espírito de Deus, podemos adormecer negligentes ou displicentes, como alguns se acostumaram a blasfemar, dizendo: Devemos ficar à espera, sem nenhuma preocupação, até que o Espírito chame a atenção da nossa mente, até então ocupada e distraída com outras coisas. Muito ao contrário, aqui somos induzidos a desejar e a implorar tal auxílio, com aversão e desgosto por nossa preguiça e displicência.[11]
No oitavo século a.C. o profeta Miquéias falando sobre o julgamento e a libertação da parte de Deus, conclama os judeus ao arrependimento. Diante da insensibilidade do povo para com o juízo de Deus, diz: “Eu, porém, olharei para o SENHOR e esperarei no Deus da minha salvação; o meu Deus me ouvirá” (Mq 7.7).
Provavelmente no sétimo século a.C., Habacuque diante da prevalência do mal e aparente indiferença de Deus, ora ao Senhor expondo a sua incompreensão e postura diante do problema: “Pôr-me-ei na minha torre de vigia, colocar-me-ei sobre a fortaleza e vigiarei (hp’c‘) (tsâpâ) para ver o que Deus me dirá e que resposta eu terei à minha queixa” (Hc 2.1).
Habacuque fala da torre, que era colocada sobre um lugar elevado e que oferecia um amplo panorama e uma grande perspectiva, tais como utilizavam os observadores militares para ver antecipadamente a possível presença e avanço de tropas inimigas (Is 21.6-8/2Sm 18.24; 2Rs 9.17). Aqui ele fala figuradamente com o sentido de preparar a sua alma para ouvir a palavra de Deus, procurando distanciar-se de explicações puramente humanas, mantendo-se meditativo e atento, vigiando cuidadosamente.[12]
Quando lemos ou ouvimos uma descrição apaixonada de um fato − uma versão −, costumamos pensar o quanto a pessoa pode prejudicar a sua objetividade pelo seu envolvimento emocional com o fenômeno descrito. Isto é natural, ainda que nem sempre consciente.
Contudo, além do envolvimento emocional, que não é algo pecaminoso em si, podemos nos deparar com algo pecaminoso: a injustiça. Incorremos no risco de emitir um juízo não simplesmente parcial, antes, mentiroso, devido aos nossos interesses entre os quais não se inclui a verdade.
O nosso Deus é justo. Ele é imparcial; não é neutro. “Não pode ser indiferente entre o bem e o mal, entre bons e maus”.[13] Ele não tem prazer na iniquidade. O mal não perdurará para sempre. A sua justiça se manifestará (Sl 5.4-6).[14]
A certeza do salmista é quanto à justiça de Deus em relação à sua causa, não em relação a ele mesmo. Pela simples e pura justiça de Deus, quem de nós poderia sobreviver? Daí a nossa constante humildade diante do reto e santo julgamento de Deus (Sl 143.2).[15]
Retornando ao nosso ponto, sabemos que o Senhor entende as nossas necessidades e nos responde em sua misericórdia.[16] Portanto, não tenhamos a pretensão de estabelecer para Deus o caminho da justiça.
Ao cultivarmos a certeza de que Deus nos ouve, Deus mesmo firma os nossos corações, o nosso centro vital, para que não sejamos levados pelas circunstâncias e precipitadamente pela aparência dos fatos. “É uma bênção singular a que Deus nos confere quando, em meio às tentações, Ele nutre nossos corações, não os deixando retroceder dele, nem buscando em outra fonte algum outro apoio e livramento”, alegra-se Calvino.[17]
Deus fortalece os nossos corações para nos firmar os passos: “Tirou-me de um poço de perdição, de um tremedal de lama; colocou-me os pés sobre uma rocha e me firmou (!WK) (kûn) os passos” (Sl 40.2). “O Senhor firma (!WK) (kûn) os passos do homem bom, e no seu caminho se compraz”(Sl 37.23).
“Firme (!WK) (kûn) está o meu coração, ó Deus, o meu coração está firme (!WK) (kûn); cantarei e entoarei louvores” (Sl 57.7). Quando nosso coração é firmado pelo Senhor nas suas promessas nos dispomos a entoar-lhe louvores com integridade: “Firme (!WK) (kûn) está o meu coração, ó Deus! Cantarei e entoarei louvores de toda a minha alma” (Sl 108.1).
Portanto, devemos ter cautela em nossos juízos a respeito do silêncio de Deus. O aparente silêncio não é indiferença ou incapacidade. Pode ser uma manifestação de longanimidade dentro de seu propósito pedagógico (Sl 10.1). Não podemos deixar que as nossas experiências mutáveis se constituam apressadamente em parâmetros para a nossa teologia que deve ser proveniente das Escrituras. As Escrituras é que devem avaliar, instruir e corrigir as nossas experiências.[18]
São Paulo, 16 de maio de 2023.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]William Hendriksen, Exposição de Filipenses, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1992, (Fp 4.5a), p. 249.
[2]“Perto está o SENHOR de todos os que o invocam, de todos os que o invocam em verdade” (Sl 145.18). “Ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século” (Mt 28.20).
[3] João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 25.4), p. 541.
[4]R.C. Sproul, Estudos bíblicos expositivos em Romanos, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p. 274.
[5]Diferentemente dos ídolos (Sl 115.6; 135.17), Deus ouve a nossa oração. A palavra quando se refere a Deus como aquele que ouve, tem o sentido de ouvir e responder. (Vejam-se: Hermann J. Austel, Shãma’: In: L. Harris, et. al., eds., Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1585-1587; K.T. Aitken, Sm’: In: W. A. Vangemeren, org., Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 4, p. 174-180; W. Mundle, Ouvir: In: Colin Brown, ed. ger., O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 3, p. 362-364).
[6]A palavra tem o sentido de estabelecer, firmar, manter-se reto.
[7]“8Apartai-vos de mim, todos os que praticais a iniquidade, porque o SENHOR ouviu ([m;v’) (shama) a voz do meu lamento; 9 o SENHOR ouviu ([m;v’) (shama) a minha súplica; o SENHOR acolhe a minha oração” (Sl 6.8-9).
[8]“Na minha angústia, invoquei o SENHOR, gritei por socorro ao meu Deus. Ele do seu templo ouviu ([m;v’)(shama) a minha voz, e o meu clamor lhe penetrou os ouvidos” (Sl 18.6).
[9] Veja-se: Is 50.4.
[10]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 5.3), p. 110.
[11]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.9), p. 95.
[12] Ver: C.F. Keil; F. Delitzsch, Commentary on the Old Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, [s.d.], (v. X/2), (Hc 2.1-3), p. 68-69.
[13] Luís Alonso Schökel; Cecília Carniti, Salmos I: salmos 1-72, São Paulo: Paulus, 1996, p. 168.
[14] “4 Pois tu não és Deus que se agrade com a inequidade, e contigo não subsiste o mal. 5 Os arrogantes não permanecerão à tua vista; aborreces a todos os que praticam a iniquidade. 6 Tu destróis os que proferem mentira; o SENHOR abomina ao sanguinário e ao fraudulento” (Sl 5.4-6).
[15]“Não entres em juízo com o teu servo, porque à tua vista não há justo nenhum vivente” (Sl 143.2).
[16]“Responde-me quando clamo, ó Deus da minha justiça; na angústia, me tens aliviado; tem misericórdia de mim e ouve ([m;v’)(shama) a minha oração” (Sl 4.1/Sl 4.3). “Pois não desprezou, nem abominou a dor do aflito, nem ocultou dele o rosto, mas o ouviu ([m;v’)(shama), quando lhe gritou por socorro” (Sl 22.24). “Ouve ([m;v’)(shama), SENHOR, a minha voz; eu clamo; compadece-te de mim e responde-me” (Sl 27.7). (Vejam-se também: Sl 28.2,6; 34.6,17; 39.12; 40.1; 54.2; 55.17; 61.1; 116.1; 119.149; 130.2 143.1; 145.19).
[17] João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 10.17), p. 230.
[18]“A teologia cristã oferece uma estrutura pela qual as ambiguidades da experiência podem ser interpretadas. A teologia visa interpretar a experiência. É como uma rede que podemos lançar sobre a experiência, a fim de capturar seu sentido. A experiência é vista como algo para ser interpretado, em vez de algo que em si é capaz de interpretar. A teologia cristã visa assim a dirigir-se a, interpretar e transformar a experiência humana” (Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 66-67).