Uma oração intercessória pela Igreja (30)
4.1.5. Fé no Senhor Jesus: O Único Senhor
A verdadeira espiritualidade significa o senhorio de Cristo sobre o homem todo – Francis A. Schaeffer.[1]
Os homens querem um Salvador, mas não um Senhor – Dionísio Pape.[2]
Algumas palavras com o passar do tempo, perdem o seu sentido originário e, em alguns casos, mesmo tendo-se ciência deste sentido, emprega-se com uma conotação diferente. Entre as palavras que passaram por esta transformação, podemos citar o termo “senhor”, o qual é utilizado em nossa cultura, via de regra, como forma de tratamento,[3] embora, também saibamos, que não se desconhece o sentido de propriedade.
A Bíblia, por outro lado, não ignora a forma de tratamento empregada para “senhor” – além de reconhecer outras – todavia, quando os profetas, discípulos e os autores sagrados a utilizam para Deus, ela significa posse absoluta. Como veremos, o mesmo acontece na confissão e proclamação do Senhorio de Cristo.
4.1.5.1. O Senhorio descrito no Antigo Testamento
A palavra “Senhor” que aparece em nossas traduções com letras maiúsculas,[4] geralmente é a tradução do tetragrama hebraico hwhy (YHWH), que é reconhecido como sendo o nome pessoal – “Nome glorioso e terrível” (Dt 28.58); “O nome” (Lv 24.11) – e pactual de Deus (hw”hoy>) (Yehovah), o qual não é atribuído a nenhum outro suposto Deus ou seres angelicais.[5] “O ‘nome’ é Deus em revelação”, resume Vos (1862-1949).[6]
(hw”hoy>) (Yehovah) é o nome revelacional exclusivo de Deus (Ex 3.14-15; 6.2-3; Is 42.8; 48.11; Am 5.8; 9.6; Sl 83.18).[7] Este nome, já conhecido dos patriarcas (Gn 15.2,7-8),[8] é, conforme desejo de Moisés, revelado o seu significado: “Eu sou o que sou”, “Eu sou quem eu serei”, “Eu serei quem eu sou”, ou ainda: “Eu serei o que serei”.[9]
O Deus que se revela e, mantém paradoxalmente o mistério, demonstrando a nossa limitação própria da condição de criatura, é o Deus que envia. Ele é o Senhor.
Israel, por sua vez, será identificado e distinguido de todos os demais povos, por adorar apenas ao Senhor.[10]
Porém, a sua origem é disputada entre os eruditos, não se tendo uma opinião consensual.[11] No entanto, é o nome com o qual Deus se manifesta a Moisés e pelo nome que quer ser sempre lembrado. É sua autoapresentação.[12]
Ninguém pode atribuir nome a Deus. Se entre os pagãos há uma certa magia comum na atribuição de determinados nomes a seus deuses, isso não acontece na revelação bíblica. Deus é quem vem a nós e diz que é. E mais, Ele mesmo tem sido conhecido na vivência de nossos pais Ex 3.6,13,15,16; 6.3=8. É o Senhor que chama a Abrão de entre os pagãos (Gn 12.1) e cumpre a sua promessa que é rememorada, por Josué, na recordação pública da graça de Deus (Js 24.1-2).[13]
Deus não tem nome no sentido de distingui-lo ou descritivo de sua natureza essencial.[14] Os nomes fazem parte de sua autorrevelação. É o desvelar-se adequado e ao mesmo tempo, acomodatício de suas perfeições, aludindo a aspectos de sua identidade santa e perfeita.[15] No entanto, nenhum nome ou todos os nomes coligados esgotam as suas perfeições. Deus é um ser simples. Ele não é compósito. A junção do que podemos conhecer por graça não esgotam a majestade de Deus. Aliás, nem pensemos nisso.
O Senhor é o Deus da Aliança que se revelou por meio de seus atos e da sua Lei. Como temos insistido, é um Deus Pessoal que se relaciona pessoalmente com o seu povo (Ex 3.14). A grandeza de Deus é-nos manifesta de forma concreta por meio de sua revelação. O mistério é enaltecido no ato de Deus desvelar-se. Isso é grandioso demais para nós.[16]
Como bem sabemos, o texto hebraico original não constava de vogais, entretanto, com o decréscimo do conhecimento da língua hebraica, tornou-se ainda mais difícil a compreensão dos textos, visto que a introdução mental de uma vogal errada, conduziria o leitor a uma interpretação equivocada. Por isso, desde a Antiguidade várias tentativas foram feitas para se introduzir as vogais, o que finalmente ocorreu de forma satisfatória, pelos judeus da escola massorética de Tiberías, por volta do ano 950 da Era Cristã.
No caso do nome hwhy (YHWH), que ocorre 5321 vezes no AT.,[17] há algumas particularidades curiosas: Por volta do ano 300 a.C. ou um pouco antes, não sabemos ao certo, os judeus devido:
1) sua reverência para com Deus;
2) sua interpretação de Lv 24.16 e Ex 3.15, e
3) o temor de serem culpados do pecado de profanação, deixaram de pronunciar o nome YHWH. O que eles passaram a fazer, foi o seguinte: Todas as vezes que liam o nome YHWH em voz alta, este nome era substituído por yfnOdf) (‘âdônây)(“Senhor”).[18] “Para indicar que esta substituição se devia fazer, os Massoretas[19] intercalavam as vogais de ‘aDõNãY[20] sob as consoantes de JaHWeH, daí surgiu a palavra JeHowah ou ‘Jeová'”, comenta Archer Jr. (1916-2004).[21]
O certo é que hoje nós não temos condições de saber qual era a pronúncia correta do tetragrammaton[22] divino, daí pronunciar-se de diversas formas: Yavé, Javé, Jeová, entre outras.
“É especialmente no nome Yhwh que o Senhor se revela como o Deus de Graça”, assevera Bavinck.[23] Aqui, de modo especial, encontramos a afirmação da imutabilidade de Deus, a confirmação do eterno cumprimento das suas promessas decorrentes do Pacto (Ex 3.13,14; 6.2,3; 15.3; Is 42.8; Os 12.5-6). Deus não muda em seu relacionamento com o seu povo.[24] Deus será o que é independentemente das circunstâncias históricas, sobre as quais Ele tem perfeito e total controle. Deus está comprometido com a história de Seu povo. Ele é o Deus presente; o Deus fiel. Ele é o único e soberano Senhor.
São Paulo, 29 de abril de 2023.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Francis A. Schaeffer, A Arte e a Bíblia, Viçosa, MG.: Editora Ultimato, 2010, p. 17.
[2] Dionísio Pape, Cristo é o Senhor, 3. ed. São Paulo: ABU Editora, 1983, p. 26.
[3] Veja-se Dionísio Pape, Cristo é o Senhor, 3. ed. São Paulo: ABU Editora, 1983, p. 26-27.
[4] Quanto à inadequação desta ênfase, veja-se: Terence Fretheim, Javé: In: Willem A. VanGemeren, org. Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 4, p. 737.
[5] Cf. Edmond Jacob, Theology of the Old Testament, New York: Harper & Row, Publishers, 1958, p. 49; Paulo Anglada, Soli Deo Gloria: O Ser e as obras de Deus, Ananindeua, PA.: Knox Publicações, 2007, p. 35. Vejam-se: Gottfried Quell, ku/rioj: In: G. Kittel, ed. Theological Dictionary of the New Testament,v. 3, p. 1065-1066; J. Barton Payne, Hawa: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 348; Murray J. Harris, Jesus as God: The New Testament use of Theos in Reference to Jesus, Eugene, Oregon: Wipf & Stock, 2008, p. 24-25. Para uma discussão a respeito, veja-se: D.N. Freedman; M.P. O’Connor; Helmer Ringgren, YHWH: In: G. Johannes Botterweck; Helmer Ringgren, eds., Theological Dictionary of the Old Testament, Grand Rapids, MI.: Eerdmans, 1986, v. 5, p. 502ss.
[6]Geerhardus Vos, Teologia Bíblica, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 139.
[7]“14 Disse Deus a Moisés: EU SOU O QUE SOU. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me enviou a vós outros. 15 Disse Deus ainda mais a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel: O SENHOR, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó, me enviou a vós outros; este é o meu nome eternamente, e assim serei lembrado de geração em geração” (Ex 3.14-15). “2 Falou mais Deus a Moisés e lhe disse: Eu sou o SENHOR. 3 Apareci a Abraão, a Isaque e a Jacó como Deus Todo-Poderoso; mas pelo meu nome, O SENHOR, não lhes fui conhecido” (Ex 6.2-3). “Eu sou o SENHOR, este é o meu nome; a minha glória, pois, não a darei a outrem, nem a minha honra, às imagens de escultura” (Is 42.8). “Por amor de mim, por amor de mim, é que faço isto; porque como seria profanado o meu nome? A minha glória, não a dou a outrem” (Is 48.11). “Procurai o que faz o Sete-estrelo e o Órion, e torna a densa treva em manhã, e muda o dia em noite; o que chama as águas do mar e as derrama sobre a terra; SENHOR é o seu nome” (Am 5.8). “Deus é o que edifica as suas câmaras no céu e a sua abóbada fundou na terra; é o que chama as águas do mar e as derrama sobre a terra; SENHOR é o seu nome” (Am 9.6). “E reconhecerão que só tu, cujo nome é SENHOR, és o Altíssimo sobre toda a terra” (Sl 83.18).
[8]“2 Respondeu Abrão: SENHOR Deus, que me haverás de dar, se continuo sem filhos e o herdeiro da minha casa é o damasceno Eliézer? (…) 7 Disse-lhe mais: Eu sou o SENHOR que te tirei de Ur dos caldeus, para dar-te por herança esta terra. 8 Perguntou-lhe Abrão: SENHOR Deus, como saberei que hei de possuí-la?” (Gn 15.2,7-8).
[9] Cf. Joel R. Beeke; Paul M. Smalley, Teologia Sistemática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2020, v. 1, p. 482-483. Henry 1913-2003) discute sobre as possíveis traduções, dialogando com eruditos de várias correntes, concluindo que o estudo etimológico não é suficiente para nos conduzir além do que nos é fornecido nas Escrituras (Veja-se: Carl F.H. Henry, Deus, Revelação e Autoridade v. 2: Deus que fala e age – 15 teses – parte um, São Paulo: Hagnos, 2017, p. 315-332)
[10] Cf. Walter Eichrodt, Teologia del Antiguo Testamento, Madrid: Ediciones Cristiandad, 1975, v. 1, p. 171.
[11] Uma breve, porém, ótima discussão sobre o assunto temos em Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 144-147. Mais atual, porém, menos crítico: Terence Fretheim, Javé: In: Willem A. VanGemeren, org. Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 4, p. 736-741. Temos uma revisão bibliográfica excelente em: Carl F.H. Henry, Deus, Revelação e Autoridade v. 2: Deus que fala e age – 15 teses – parte um, São Paulo: Hagnos, 2017, p. 311ss.
[12] Cf. Carl F.H. Henry, Deus, Revelação e Autoridade v. 2: Deus que fala e age – 15 teses – parte um, São Paulo: Hagnos, 2017, p. 225.
[13]É muito sugestivo o livro de Buber. (Martin Buber, The Prophetic Faith, New York: Harper & Row, Publishers, ©1949, 1960, p. 8-42.
[14]Veja-se: François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 253.
[15] “Na Escritura o nome de Deus é autorrevelação. Somente Deus pode dar nome a si mesmo; seu nome é idêntico às perfeições que ele exibe no mundo e para o mundo. Ele se faz conhecido ao seu povo por meio de seus nomes próprios: a Israel, como YHWH, à igreja cristã, como Pai. Os nomes revelados de Deus não revelam seu ser como tal, mas sua acomodação à linguagem humana” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 97). Do mesmo modo havia se expressado Turretini. Veja-se: François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 253.
[16]“O verdadeiro mistério só pode ser entendido como um mistério genuíno mediante a revelação. (…) Porque a revelação do Nome é a automanifestação do Deus que é livre, e exaltado acima deste mundo, é só isto que nos confronta com o verdadeiro mistério de Deus. Por isso a revelação do Nome de Deus está no centro do testemunho bíblico da revelação” (Emil Brunner, Dogmática, São Paulo: Novo Século, 2004, v. 1, p. 157).
[17]Cf. Gottfried Quell, ku/rioj: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament,8. ed. Grand Rapids, Michigan: WM. B. Eerdmans Publishing Co., (reprinted) 1982, v. 3, p. 1067. Fretheim fala-nos de cerca de 6800 vezes (Cf. Terence Fretheim, Javé: In: Willem A. VanGemeren, org., Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 4, p. 736).
[18] Palavra usada exclusivamente para Deus. Cf. Gesenius’ Hebrew-Chaldee Lexicon to the Old Testament, 13. ed. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1978, p. 12b.
[19]Sobre os Massoretas, Veja-se: Gleason L. Archer Jr., Merece Confiança o Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1974, p. 65ss.
[20]Ainda que em menor escala, os Massoretas também intercalavam com o tetragrammaton, as vogais de ‘Elohim. Cf. L. Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990, p. 51; G. Hendriksen, El Evangelio Segun San Mateo, Grand Rapids, Michigan: Subcomision Literatura Cristiana, 1986, p. 343.
[21]Gleason L. Archer Jr., Merece Confiança o Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1974, p. 66. Veja-se: Terence Fretheim, Javé: In: Willem A. VanGemeren, org., Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 4, p. 737.
[22]Cf. L. Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990, p. 51; H. Bavinck, The Doctrine of God, 2. ed. Grand Rapids, Michigan: W. M. Eerdmans Publishing Co., 1955, p. 102ss.; A.R. Crabtree, Teologia do Velho Testamento, 2. ed. Rio de Janeiro: JUERP, 1977, p. 64; J. Barton Payne, Hawa: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 346; François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 253-254. Vejam-se também: J. Barton Payne, The Theology of the Older Testament, Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 1962, p. 147-149; Joel R. Beeke; Paul M. Smalley, Teologia Sistemática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2020, v. 1, p. 483.
[23]Herman Bavinck, The Doctrine of God, 2. ed. Grand Rapids, Michigan: W. M. Eerdmans Publishing Co., 1955, p. 103. Cf. também, L. Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990, p. 51.
[24]Veja-se: Walter C. Kaiser, Jr., Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1980, p. 111-112. G. Aulén: “A fé entende a imutabilidade como expressão da direção inalterável da vontade de Deus e como a afirmação de que essa vontade, sob todas as circunstâncias e em toda a sua atividade, caracteriza-se pelo amor” (G. Aulén, A Fé Cristã, São Paulo: ASTE, 1965, p. 131).