Uma oração intercessória pela Igreja (2)
Introdução: Sobre pastores, teologias e a Igreja (Continuação)
Ensino desde à juventude
O salmista na velhice reconhece que Deus o tem ensinado desde a sua mocidade, sendo este o seu testemunho constante: “Tu me tens ensinado (למד) (lamad), ó Deus, desde a minha mocidade; e até agora tenho anunciado as tuas maravilhas (al’P’) (pala) (admiráveis, extraordinárias)” (Sl 71.17).
Quando somos jovens ou inexperientes em determinadas áreas, costumamos considerar fantásticas determinadas dicas e aprendizados. Com o passar do tempo, é possível que olhemos aquilo tudo como algo que foi útil no início ou, que já não mais faz sentido.
É difícil amadurecermos com a convicção de que o que aprendemos continua sendo maravilhoso, grandioso e extraordinário. No entanto, o salmista continuava se guiando pela Palavra de Deus e tem constatado ao longo da vida, as grandiosas maravilhas e as coisas extraordinárias que Deus tem realizado.
Devemos, portanto, buscar aprender com Deus desde a nossa juventude. Não deixemos escapar as oportunidades que o Senhor nos confere. Sabemos que conhecimento não é necessariamente sabedoria. Porém, a sabedoria consiste em saber se valer positivamente do conhecimento que adquirimos. O que aprendemos hoje, amanhã poderá se configurar de grande valia em nossa vida como resultado da sabedoria adquirida, por graça, ao longo dos anos.
Deus é o originador de todo conhecimento e sabedoria. Devemos, portanto, nos valer desde cedo, do que santamente nos ensina a fim de vivermos com sabedoria para a sua glória.
Notemos que o salmista aprendeu a confiar em Deus desde cedo; não esperou para aprender apenas na velhice. O seu testemunho também foi uma constante. Agora, com os dias avançados, pôde, então, fazer a sua síntese como ato de gratidão e contínua instrução.
O Senhor nos ensina constantemente, de muitas formas. O ponto capital é a Palavra. Por meio dela podemos interpretar os fatos.
Podemos conhecer a Deus e o seu ensino
O filósofo I. Kant (1722-1804), um dos maiores expoentes do Iluminismo (1650-1800),[1] estabeleceu uma distinção entre a “coisa-em-si” (uma realidade tal como ela é) (Noúmeno) onde o homem não pode atingir pela experiência, e a coisa (essa realidade) como se apresenta perceptível a ele (Fenômeno). Assim, dentro destas duas categorias, temos:
O homem não consegue apreender o Noúmeno. As suas categorias intelectuais não dispõem de instrumentos para conhecê-lo, contudo, a partir do fenômeno, ele consegue, inevitavelmente, deduzi-lo. Escreve:
De fato, quando consideramos os objetos dos sentidos – como é justo – simples fenômenos, então admitimos, ao mesmo tempo, que uma coisa em si mesma lhes serve de fundamento, apesar de não a conhecermos como é constituída em si mesma, mas apenas seu fenômeno, isto é, a maneira como nossos sentidos são afetados por este algo desconhecido. O entendimento, portanto, justamente por admitir fenômenos, aceita também a existência das coisas em si mesmas, donde podemos afirmar que a representação de tais seres, que servem de fundamento aos fenômenos, e, por conseguinte, a representação de simples seres inteligíveis, não só é admissível como inevitável.[2]
Toda a nossa intuição não é senão representação de fenômenos; que as coisas que intuímos não são o próprio em si, em vista do qual as intuímos, nem que as suas relações são em si mesmas constituídas do modo como nos aparecem e que, se suprimíssemos o nosso sujeito ou apenas a constituição subjetiva dos sentidos em geral, em tal caso toda a constituição, todas as relações do objeto no espaço e no tempo, e mesmo espaço e tempo, desapareceriam. Todas essas coisas enquanto fenômenos não podem existir em si mesmas, mas somente em nós. Qual seja a natureza dos objetos em si e separados de toda receptividade da nossa sensibilidade, permanece-nos inteiramente desconhecido. Não conhecemos senão o nosso modo de perceber os objetos.[3]
Ainda segundo Kant, diferindo de Tomás de Aquino (1225-1274), mesmo que esgotássemos o “fenômeno”, jamais conseguiríamos chegar ao “objeto em si”:
Mesmo se pudéssemos elevar a nossa intuição ao grau supremo de clareza, não nos teríamos com isso aproximado mais da natureza dos objetos em si mesmos. Com efeito, em qualquer caso conheceríamos inteiramente apenas o nosso modo de intuição, isto é, a nossa sensibilidade, e conheceríamos estar sempre sob as condições, inerentes originariamente ao sujeito, de espaço e tempo. O que possam ser os objetos em si mesmos não podemos jamais conhecer, mesmo por meio do conhecimento mais esclarecido do seu fenômeno, que unicamente nos é dado (…). Esta receptividade da nossa capacidade de conhecimento denomina-se sensibilidade, a qual – mesmo que se pudesse penetrar com o olhar até o fundo do fenômeno – permanece infinitamente distinta do conhecimento do objeto em si mesmo.[4]
Assim, na concepção kantiana, Deus, Alma e Liberdade, são coisas que pertencem ao mundo do Noúmeno onde não temos acesso por meio razão. E mesmo que essa razão humana seja dotada de ideias, a priori, de Alma-Deus-Liberdade, é impotente para lhes dar conteúdo. Por isso, tais conceitos são incognoscíveis como coisa em si. Desse modo, não se tem como provar, nem negar, racionalmente, a existência de Deus.
Kant não considerou o fato de que todo conhecimento é um ato de fé.[5] Pessoalmente, entendo que Kant, mesmo sem cair num agnosticismo teológico,[6] cai num deísmo.
Nesse particular, Conn (1933-1999) comenta o efeito devastador dessas colocações kantianas:
O efeito de tudo isso foi, e continua sendo devastador. Kant aprisiona Deus com um muro de contenção à prova de som; sua única vinculação com o mundo fenomenal é por meio de um cordão umbilical (que Kant propõe) da necessidade que tem o homem da ideia de Deus para o seu mundo ético. Não se fecha por completo a porta a Deus, porém resulta tão pequena que por ela não pode entrar o Deus soberano.[7]
Desse modo, Deus está alheado do homem e o homem de Deus. Não há acesso. Deus permanece como um ser distante.
Kant deu uma forte interpretação ética à religião, ali, demonstrando a necessidade, ainda que teórica, da existência de Deus que tem sido uma característica do Liberalismo teológico a partir de então até o tempo presente. Houve, pouco a pouco, um descrédito da Religião sobrenatural.[8]
Davi e Paulo: O caminho livre entre Fenômeno e Noúmeno
Davi e o apóstolo Paulo transitaram com muita segurança entre o mundo “noumenal” e o “fenomenal” quando escreveram que Deus pode ser conhecido por meio da Criação:
1Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos. 2 Um dia discursa a outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra noite. 3 Não há linguagem, nem há palavras, e deles não se ouve nenhum som; 4 no entanto, por toda a terra se faz ouvir a sua voz, e as suas palavras, até aos confins do mundo. Aí, pôs uma tenda para o sol, 5 o qual, como noivo que sai dos seus aposentos, se regozija como herói, a percorrer o seu caminho. 6 Principia numa extremidade dos céus, e até à outra vai o seu percurso; e nada refoge ao seu calor. (Sl 19.1-6).
19 Porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. 20 Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis; 21 porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se lhes o coração insensato. (Rm 1.19-21).[9]
São Paulo, 27 de março de 2023.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Veja-se: Stanley J. Grenz, Pós-Modernismo: Um guia para entender a filosofia do nosso tempo, São Paulo: Vida Nova, 1997, p. 97. McGrath o coloca entre 1720 e 1780 (Alister E. McGrath, Teologia Sistemática, histórica e filosófica: Uma introdução à teologia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 125; Alister E. McGrath, Teologia Histórica, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 239.
[2]I. Kant, Prolegômenos, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 25), 1974, § 32, p. 143-144.
[3]I . Kant, Crítica da Razão Pura, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 25), 1974, § 8, p. 49.
[4]I. Kant, Crítica da Razão Pura, § 8, p. 50.
[5]Veja-se: Gordon H. Clark, Uma visão cristã dos Homens e do Mundo, Brasília, DF.: Monergismo, 2013, p. 305.
[6] Após redigir estas linhas, constatei que Sproul sustenta que Kant é um agnóstico metafísico e teológico (R.C. Sproul, Filosofia para iniciantes, São Paulo: Vida Nova, 2002, p. 126; R.C. Sproul, A mão Invisível, São Paulo: Cultura Cristã, 2014, p. 54).
[7]Harvie M. Conn, Teologia Contemporanea en el Mundo, Michigan: Subcomision Literatura Cristiana de la Iglesia Cristiana Reformada, (s.d.), p. 12.
[8]Veja-se: C. Brown, Filosofia e Fé Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 61-69.
[9]Entre outros, vejam-se: João Calvino,Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 11.3), p. 299; Prefácio de Calvino à tradução do Novo Testamento feita por Pierre Olivétan. In: Eduardo Galasso Faria, ed. João Calvino: Textos Escolhidos, São Paulo: Pendão Real, 2008, p. 15; João Calvino,O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 19.1), p. 414; João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1997, (1Co 1.21), p. 62.