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Uma fé que investiga e uma ciência que crê (36) - Hermisten Maia

Uma fé que investiga e uma ciência que crê (36)


4.5. Ciência e Religião no Pensamento Moderno (Continuação)

Mas, o fato é que a Ciência Moderna, que teve a sua gênese no século XVII, não estava em princípio dissociada da fé cristã. Francis Bacon (1561-1626) – quem revolucionou o método científico, sendo uma figura fundamental na transição do pensamento humanista-renascentista para o Iluminismo[1] – combatendo o método dedutivo de Aristóteles (384-322 a.C.) – a quem considerava uma espécie de Anticristo –[2] e o pensamento escolástico – que contribuiu no processo de distanciamento do homem em relação a Deus e às Escrituras[3] -, sustentou que a única esperança da ciência estava na indução.[4]

No frontispício da primeira edição do Novum Organum, Bacon colocou as palavras do texto bíblico de Daniel 12.4: “Muitos o esquadrinharão, e o saber se multiplicará”.[5]

            Bacon demonstra crer na supremacia da fé sobre a razão, entendendo que a filosofia nada pode contra as Escrituras, antes, ela é a sua fiel serva:

Finalmente, constatar-se-á, mercê da infâmia de alguns teólogos, foi quase que totalmente barrado o acesso à filosofia, mesmo depurada. Alguns, em sua simplicidade, temem que a investigação mais profunda da natureza avance além dos limites permitidos pela sua sobriedade, transpondo, e dessa forma distorcendo, o sentido que dizem as Sagradas Escrituras a respeito dos que querem penetrar nos mistérios divinos, para os que se volvem para os segredos da natureza, cuja exploração não está além de maneira alguma interdita. Outros, mais engenhosos, pretendem que, se se ignoram as causas segundas, será mais fácil atribuir-se os eventos singulares à mão e à férula divinas – o que pensam ser do máximo interesse para a religião. Na verdade, procuram “agradar a Deus pela mentira” (Jó 13.7).

Outros temem que, pelo exemplo, os movimentos e as mudanças da filosofia acabam por recair e abater-se sobre a religião. Outros finalmente, parecem temer que a investigação da natureza acabe por subverter ou abalar a autoridade da religião, sobretudo para os ignorantes. Mas estes dois últimos temores parecem-nos saber inteiramente a um instinto próprio de animais, como se os homens, no recesso de suas mentes e no segredo de suas reflexões, desconfiassem e duvidassem da firmeza da religião e do império da fé sobre a razão e, por isso, temessem o risco da investigação da verdade na natureza. Contudo bem consideradas as coisas, a filosofia natural, depois da palavra de Deus, é a melhor medicina contra a superstição, e o alimento mais substancioso da fé. Por isso, a filosofia natural é justamente reputada como a mais fiel serva da religião, uma vez que uma (as Escrituras) torna manifesta a vontade de Deus, outra (a filosofia natural) o seu poder.[6]

O supremo motivo de esperança emana de Deus (…) que é Autor do bem e Pai das luzes.[7]

Que o gênero humano recupere os seus direitos sobre a natureza, direitos que lhe competem por dotação divina. Restitua-se ao homem esse poder e seja o seu exercício guiado por uma razão reta e pela verdadeira religião.[8]

            O astrônomo luterano[9] alemão, Johannes Kepler (1571-1630),[10] o “Lutero da astrologia”,[11] que pacientemente, conforme a sua obsessão por medidas,[12] procurou dar precisão matemática às descobertas de N. Copérnico (1473-1543) – descobrindo as leis dos movimentos dos planetas, “sentia-se como se estivesse ‘pensando os pensamentos de Deus após Ele’; sentia-se como sendo ‘um sumo sacerdote no livro da natureza, religiosamente obrigado a não alterar nenhum jota ou til daquilo que havia agradado a Deus escrever nele’.”[13]

            O polonês Nicolau Copérnico (1473-1543) entendia que os astrônomos, como sacerdotes de Deus, no exame do livro da natureza deveriam glorificar a Deus.[14] Reconhecendo a sua dívida para com os cientistas que viveram antes dele e admitindo os obstáculos na pesquisa, escreve: “Contudo, para evitar dar a impressão de que esta dificuldade é uma desculpa para a indolência, pela graça de Deus, sem O qual nada podemos aperfeiçoar, vou tentar fazer um estudo mais largo sobre estas matérias.”[15]

            Tomás Campanella (1568-1639),[16] apesar de sua filosofia ter um forte teor panteísta, afirmou (1602) que “a verdade do evangelho é conforme a natureza”.[17]

            N. Copérnico (1473-1543); G. Galilei (1564-1642), I. Newton (1642-1727) e G.W. Leibniz (1646-1716), foram cientistas que reconheceram o poder de Deus na natureza, não encontrando nenhuma contradição entre sua fé em Deus e as suas pesquisas científicas. Newton – ainda que pese o fato dele conceber um mundo ordenado que funcionava segundo as suas próprias leis[18] e, mesmo sendo protestante,[19] refletisse uma teologia ariana, não crendo na divindade de Jesus[20] – nos seus Princípios Matemáticos (1687), reconhecendo a soberania de Deus, escreve:

Esse Ser governa todas as coisas, não como a alma do mundo, mas como Senhor de tudo; e por causa de seu domínio costuma-se chamá-lo Senhor Deus (…). O Deus Supremo é um Ser eterno, infinito, absolutamente perfeito (…). Ele é eterno e infinito, onipotente e onisciente; isto é, sua duração se estende da eternidade à eternidade; sua presença do infinito ao infinito; ele governa todas as coisas que são ou podem ser feitas. Ele não é eternidade e infinitude, mas eterno e infinito; ele não é duração ou espaço, mas ele dura e está presente. (…) Deus é o mesmo Deus, sempre e em todos os lugares. Ele é onipresente não somente virtualmente, mas também substancialmente; pois a virtude não pode subsistir sem substância. Nele, são todas as coisas contidas e movidas; todavia nenhum afeta o outro. (…) Assim como um homem cego não tem ideia das cores, nós também não temos ideia da maneira pela qual o todo-sábio Deus percebe e entende todas as coisas. Ele é completamente destituído de todo corpo e figura corporal, e não pode portanto nem ser visto, nem ouvido, nem tocado; nem deve ser ele adorado sob a representação de qualquer coisa corporal. Temos ideias de seus atributos, mas o que a substância real de qualquer coisa é nós não sabemos.[21]

Leibniz em 1714, seguindo argumentos de Anselmo (1033-1109) e de Tomás de Aquino (1225-1274), escreveu na sua Monadologia:

A razão última das coisas deve encontrar-se numa substância necessária, na qual o pormenor das modificações só esteja eminentemente, como na origem. É o que chamamos Deus.

Ora, sendo esta substância razão suficiente de todo aquele pormenor que, por sua vez, está entrelaçada em toda parte, há um só Deus, e esse Deus é suficiente.

     Esta suprema substância única, universal e necessária, sem nada externo independente dela, e simples resultado da sua possibilidade, pode também julgar-se que não é suscetível de limites e que contém o máximo possível de realidade.

Segue-se daí que Deus é absolutamente perfeito, pois a perfeição é, apenas, a grandeza da realidade numa rigorosa mente, excluídos os limites ou restrições nas coisas em que os há. E onde não houver quaisquer limites, quer dizer, em Deus, a perfeição é absolutamente infinita.[22]

            Notemos que na Idade Média, a Bíblia desfrutava o status de autoridade em assuntos espirituais e Aristóteles, a autoridade em questões científicas. A partir de Copérnico (1473-1543), o método experimental – que permite a comprovação ou não das hipóteses, por meio de sua experimentação – desenvolveu-se. A autoridade de Aristóteles foi questionada e relegada à “crendices” medievais. A história e a ciência gradativamente vão se emancipando da filosofia – que, por sua vez, havia se libertado da teologia[23] – existindo autonomamente como disciplinas empíricas independentes. Aos poucos, os pensadores modernos passaram a falar de uma nova física e nova geografia. Esta compreensão moderna era resultado natural do descobrimento da existência de outros povos e culturas e da aplicação do método empírico.

            A “autonomia” pretendida pela ciência não significa o abandono da fé cristã, antes, ela estava repleta de valores cristãos.

            Sobre isso, interpreta Schaeffer:

A Ciência moderna nos seus primórdios era uma ciência natural porque tratava de coisas naturais, mas longe estava de ser naturalista, pois, embora sustentasse a uniformidade das causas naturais, não concebia a Deus e ao homem como presos dentro do mecanicismo. Tais cientistas nutriam a convicção, primeiro, de que Deus propiciou conhecimento ao homem – conhecimento de si próprio e também do universo e da história; e, segundo, de que Deus e o homem eram partes do mecanismo e poderiam afetar a operação do processo de causa e efeito (…). Assim se desenvolveu a ciência, uma ciência que tratava do mundo natural e real que, porém, ainda não se havia tornado naturalista.[24]

Maringá, 27 de abril de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Grenz acentua com perspicácia que “sob diversos aspectos, a quintessência do pensamento renascentista foi a obra…. (de) Francis Bacon. Embora fruto da Renascença, Bacon floresceu no limiar da Idade da razão. Em certo sentido, portanto, ele marca a transição da Renascença para o Iluminismo […]. A visão de Bacon lançou os fundamentos da sociedade tecnológica moderna.” (Stanley J. Grenz, Pós-Modernismo: Um guia para entender a filosofia do nosso tempo,São Paulo: Vida Nova, 1997, p. 94,96. Do mesmo modo: Stanley J. Grenz; Roger E. Olson, A Teologia do Século XX,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 15).

[2]Ver: Paolo Rossi, A Ciência e a Filosofia dos Modernos: aspectos da Revolução Científica, São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992, p. 66.

[3]Cf. Paolo Rossi, A Ciência e a Filosofia dos Modernos: aspectos da Revolução Científica, p. 69.

[4] F. Bacon, Novum Organum,I.14. p. 21.

[5]Cf. nota nº 71, feita por José Aluysio Reis de Andrade, à referida edição da obra de Bacon, p. 68. Bacon ainda que não fosse puritano foi educado dentro deste espírito (Cf. R. Hooykaas, A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna, p. 180).

[6]F. Bacon, Novum Organum, I.89. p. 64-65. A este respeito, o cientista católico, Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955), em 1921, disse: “A Ciência não deve, portanto, perturbar-se em nossa Fé, por suas análises. Deve, ao contrário, ajudar-nos a melhor conhecer, compreender e apreciar a Deus. Quanto a mim, tenho a convicção de que não existe mais poderoso alimento natural para a vida religiosa que o contacto das realidades científicas bem compreendidas. O homem que vive habitualmente na companhia dos elementos deste mundo, o homem que pessoalmente experimentou a esmagadora imensidade das coisas e sua miserável dissociação – este, tenho certeza, adquire uma consciência mais aguda que ninguém tanto da imensa necessidade de unidade que impele o Universo sempre para a frente quanto do inaudito futuro que lhe está reservado. Ninguém como o Homem debruçado sobre a Matéria compreende até que ponto o Cristo, por sua Encarnação, é interior ao Mundo, enraizado no Mundo, até ao coração do menor dos átomos” (Ciência e Cristo, Petrópolis, RJ.: Vozes, 1974, p. 43).

[7] F. Bacon, Novum Organum,I.93. p. 68.

[8] F. Bacon, Novum Organum,I.129. p. 95.

[9]Cf. R. Hooykaas, A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna, p. 146; Johannes Hirschberger, História da Filosofia Moderna,p. 62; Paolo Rossi, O Nascimento da Ciência Moderna na Europa, p. 133; Bertrand Russell, História da Filosofia Ocidental, 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967, v. 3, p. 49-50; Bertrand Russel, Religion and Science, New York; Oxford: Oxford University Press, (1935), 1997, p. 25; Stephen Hawking, Os Gênios da Ciência: Sobre os ombros do Gigante: as mais importantes ideias e descobertas da física e da astronomia, Rio de Janeiro: Elsevier Editora, 2005, p. 339; Claude-Gilbert Dubois, O Imaginário da Renascença, Brasília, DF.: Editora Universidade de Brasília, 1995, p. 101.

[10] As pesquisas de Kepler estavam entrelaçadas de aspectos místicos e científicos o que criava grande dificuldade em sua aceitação mesmo por parte de cientistas tais como Galileu e Descartes, entre outros. “As leis de Kepler se tornaram leis ‘científicas’ somente depois que Newton se serviu delas, sendo as mesmas leis aceitas pela maioria dos astrônomos somente no decorrer da década de sessenta do século XVII” (Paolo Rossi, O Nascimento da Ciência Moderna na Europa, p. 145). Do mesmo modo: Klaas Woortmann, Religião e Ciência no Renascimento, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 83, 115. Rossi, seguindo a tese de Lynn Thorndike (History of Magic and Experimental Sciences, New York: Columbia University Press, 1923-1956, 8 Vols. e The True Place of Astrology in the History of Science: In: Isis, XLVI, 1955: 273-278) sobre a transição entre a astrologia e a ciência moderna, diz: “O fim da astrologia, que não era uma forma de superstição, mas uma coerente e orgânica visão do mundo, foi determinado pela gradual obliteração da distinção entre céu e terra que se verificou no curso dos séculos XVI e XVII e, enfim, pela radical destruição, operada por Newton, de qualquer diferença entre o mundo superior dos corpos celestes e o mundo inferior dos elementos.” (Paolo Rossi, A Ciência e a Filosofia dos Modernos: aspectos da Revolução Científica, São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992, p. 30). “A astrologia era, segundo os conhecimentos de então, um sistema perfeitamente racional” (Lucien Febvre; Henry-Jean Martin, O Aparecimento do Livro,São Paulo: Hucitec., 1992, p. 391). “No século XVI, a distinção entre astronomia e astrologia era bastante ambígua” (Stephen Hawking, Os Gênios da Ciência: Sobre os ombros do Gigante: as mais importantes ideias e descobertas da física e da astronomia, Rio de Janeiro: Elsevier Editora, 2005, p. 337).

[11]Veja-se: Peter Harrison, The Bible, Protestantism, and the rise of natural science, Cambridge: Cambridge University Press,© 1998, 2006, p. 106.

[12] Cf. Stephen Hawking, Os Gênios da Ciência: Sobre os ombros do Gigante: as mais importantes ideias e descobertas da física e da astronomia, Rio de Janeiro: Elsevier Editora, 2005, p. 335.

[13] Apud Michael Green, O Mundo em Fuga, São Paulo: Vida Nova, (s.d.), p. 37. Do mesmo modo: Klaas Woortmann, Religião e Ciência no Renascimento, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 80.

[14] Cf. R. Hooykaas, A Religião e o Desenvolvimento da Ciência Moderna, p. 137.

[15] Nicolau Copérnico, As Revoluções dos Orbes Celestes, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1984), p. 15.

[16] Que perseguido pela Inquisição passou por terríveis torturas permanecendo quase 30anos preso em masmorras italianas (Cf. Christopher Hill, Origens Intelectuais da Revolução Inglesa,São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 42).

[17]T. Campanella, A Cidade do Sol, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 12), 1973, p. 274.

[18]Cf. John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã,São Paulo: Pendão Real, 1997, p. 173-174.

[19] Cf. James Hannam, Ciência e Reforma. In: Paul Copan, et al., ed. Dicionário de Cristianismo e Ciência,  Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2018 (Edição do Kindle), posição 4500 de 34343).

[20] Cf. Alister E. McGrath, A Revolução Protestante, Brasília, DF.: Editora Palavra, 2012, p. 371; James Hannam, Ciência e Renascimento. Cristianismo no início da Idade Moderna. In: Paul Copan, et al., ed. Dicionário de Cristianismo e Ciência,  Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2018 (Edição do Kindle), posição 4655 de 34343).

[21]Isaac Newton, Princípios Matemáticos, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v, 19), 1974, III, p. 26,27.

[22]G.W. Leibniz, Monadologia, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 19), 1974, § 38-41. p. 67.

[23] Apesar de ser ponto pacífico o fato de que na Idade Média a Filosofia estava atrelada à Teologia, parece-nos que isto não é um dado uniforme, havendo pensadores medievais, que estavam mais propensos a fazer o oposto. (Veja-se: André Lalande, Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia, (Suplemento) sobre “Escolástica”, p. 1257).

[24] F.A. Schaeffer, A Morte da razão,p. 31. (Vejam-se: também, F.A. Schaeffer, A Igreja no Final do Século XX, p. 12ss; 17ss; 109ss.).

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