Uma fé que investiga e uma ciência que crê (31)
4.2. O conhecimento científico: compromisso e limites
A ciência é demonstravelmente falível. (…) Não há nada no aparato cognitivo da mente humana, nem ninguém da comunidade de cientistas, que possa nos proteger do erro ou da incerteza. O melhor que podemos fazer, pelo jeito, é ser eternamente críticos, eternamente vigilantes, eternamente céticos. – John Ziman (1925-2005).
A palavra “ciência”, vem do latim “scientia” (conhecimento), derivado de “sciens” (o que sabe), traduzindo o grego e)pisth/mh, que significa “arte”, “habilidade”, “conhecimento”, “ciência”, “saber” etc. O termo grego por sua vez, é constituído de dois outros: e)pi/ (Preposição cujo sentido radical é “sobre”; todavia apresenta vários significados, inclusive o de direção[1]) & i(/sthmi (“Estabelecer”, “firmar”, “fixar”). Partindo deste ponto, Cassirer (1874-1945), diz que “o processo científico conduz a um equilíbrio estável, à estabilização e à consolidação do mundo das nossas percepções e pensamentos”.[2] Platão (427-347 a.C.), dizia ser a e)pisth/mh, o conhecimento perfeito, se caracterizando por ser teórico e prático, tendo como objeto o ser.[3] Na sua visão a e)pisth/mh é a forma mais elevada de conhecimento, sendo resultado de um “encadeamento racional”. No Mênon, escreveu:
E assim, pois, quando as opiniões certas (do/ca) são amarradas, transformam-se em conhecimento, em ciência (e)pisth/mh), e, como ciência, permanecem estáveis. Por esse motivo é que dizemos ter a ciência mais valor do que a opinião certa: a ciência (e)pisth/mh) se distingue da opinião certa (do/ca) por seu encadeamento racional.[4]
Devemos observar que nem todo saber é considerado científico, visto haver graus de conhecimento, bem como o conhecimento empírico, fragmentado, que carece de demonstração, mas, que nem por isso deve ou pode ser desprezado; e o conhecimento da fé[5] que ultrapassa a possibilidade racional de explicação e demonstração. Aliás, Deus não é passível de demonstração racional. Ele a transcende.[6] Contudo, mesmo que isso fosse possível, satisfatoriamente, tal demonstração não conduziria ninguém a Deus. A nossa “sabedoria” não conta neste campo, a menos que seja guiada pela fé (1Co 1.21; 2.14), e esta é um dom de Deus, não uma conquista da razão. Obviamente, aqui, não podemos acompanhar o positivismo lógico em sua priorização ao “escrutínio da verificação empírica”.[7]
O conhecimento científico – como uma forma sofisticada de conhecimento –apesar de relevante, é extremamente limitado,[8] não sendo estranho observar na história, que a “ciência” de hoje pode se tornar o mito de amanhã.[9]
Apesar dessa limitação, o conhecimento científico julga-se capaz de descrever os fenômenos de forma objetiva, metódica e sistemática, identificando o seu objeto e tendo condições de discorrer sobre ele. Ele almeja ser uma leitura da experiência por meio de uma ótica que se esforça por ser objetiva e sistemática, buscando, dentro de princípios definidos, ordenar os fenômenos[10] de forma a poder elucidá-los.
A função da ciência – dentro do âmbito que lhe compete – é substituir a experiência por uma sistematização passível de verificação experimental. Ela faz uma “correspondência simbólica”,[11] sendo a linguagem o meio de que a ciência dispõe como forma de expressão:“A linguagem é o primeiro grau do esforço em direção à ciência”, interpreta Nietzsche (1844-1900).[12]
Por isso, o conhecimento científico deve ser passível de compreensão, demonstração e comprovação. Ele se propõe a compreender, descrever, controlar e até predizer os fenômenos por ele analisados; por isso, é que a ciência pode ser considerada como “a consciência dos gêneros”.[13]
Deste modo, a ciência deve realizar-se novamente e de forma aperfeiçoada. Contudo, como ter a certeza de que este modo aperfeiçoado é o derradeiro? E se o pós-considerado-derradeiro negar o que parecia final? Simples: posso me alegrar com a nova descoberta, mas o processo de desconfiança criativa continua… É possível também, descobrir que o rejeitado como “pré-científico” se mostre agora verdadeiro. De qualquer forma, o processo continua. Desespero? Não, consolo: “Porque nada podemos contra a verdade, senão em favor da própria verdade” (2Co 13.8).
A ciência, como um empreendimento humano, é extremamente complexa, estando associada a diversos elementos históricos e sociais, tendo, consequentemente, profundas implicações sociais.[14] Talvez muitos dos seus projetos tenham que se contentar em permanecer como meras projeções não atingidas ainda que o “não atingidas” também seja provisória dentro da efemeridade de nossa existência.
A ciência não é o único caminho para se chegar ao conhecimento e, na realidade, não pode esgotar o real.[15] Este é mais abrangente e complexo do que o instrumental disponível pelo cientista. A questão é a seguinte: como ter pretensão de esgotar o que nem sequer tenho a sua dimensão? A ciência – aliás, não só ela, todas as esferas de nossos conhecimentos – não consegue perceber toda a extensão do real, portanto, as suas pretensões são por demais ambiciosas.
Talvez falte a ela a consciência de sua própria limitação. Ela pouco se conhece. Daí, por vezes, a sua angústia desnecessária.[16] “A questão ‘o que é a ciência?’ é a única que ainda não tem nenhuma resposta científica”.[17] Nesta consciência teórica, a sua atividade empírica se tornará mais abrangente e positivamente útil. Isto me faz lembrar o comentário de Braudel (1902-1985) de que quando o sociólogo Edgar Morin se despediu do Partido Comunista, logo depois, disse: “O marxismo, meu velho, estudou a economia, as classes sociais; é maravilhoso, meu velho, mas ele se esqueceu de estudar o homem”.[18] Talvez falte à ciência o instrumental necessário para o seu autoexame. Nas palavras de Vieira, “O homem, filho do tempo, reparte com o mesmo a sua ciência, ou a sua ignorância; do presente sabe pouco, do passado menos, e do futuro nada”.[19]
Maringá, 20 de abril de 2020.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Em palavras compostas, pode ter também o sentido de “descansar em um lugar”, ainda que não exclusivamente (Entre outros, Veja-se: Liddell; Scott, Greek-English Lexicon, Oxford: At The Clarendon Press, 1935).
[2] Ernst Cassirer, Antropologia Filosófica, 2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1977, p. 326.
[3] Compare: Platão, A República, VII, 534 A; Filebo, 55 D, 58 E; 62 A-D. Veja-se: André Lalande, Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia, São Paulo, Martins Fontes, 1993, “Ciência“, especialmente, p. 154-156; Federico Klimke; Eusebio Colomer, Historia de la Filosofía, 3. ed. (Revisada y Ampliada), Barcelona: Editorial Labor, 1961, p. 51ss.
[4] Platão, Mênon, Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint, (s.d.), 98. p. 108-109. (Veja-se também: Platão, Teeteto, 190 A-C). Ernst Cassirer (1874-1945) observa: “O cientista não atinge seu objetivo sem uma estrita obediência aos fatos da natureza. Mas esta obediência não é uma submissão passiva. A obra de todos os grandes cientistas naturais – de Galileu e Newton, de Maxwell e Helmholtz, de Planck e Einstein – não foi uma simples reunião de fatos; foi um trabalho teórico, o que quer dizer, construtivo” (Ernst Cassirer, Antropologia Filosófica, p. 345).
[5]Platão (427-347 a.C.) de forma lúcida afirmou que: “Como a inteligência está para a opinião, está a ciência (e)pisth/mh) para a fé e o entendimento para a suposição” (Platão, A República, 7. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, (1993), 534a. p. 350. De fato, a ciência começa sempre por um ato de fé; é impossível haver ciência sem fé (Vejam-se: Abraham Kuyper, Calvinismo, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p. 137-138; Hendrik van Riessen, Enfoque Cristiano de la Ciencia, 2. ed. Países Bajos: FELIRE, 1990, p. 61ss).
[6] Veja-se: Jean Guitton, In: Jean Guitton, Grichka Bogdanov; Igor Bogdanov, Deus e a Ciência, em direção ao metarrealismo, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p. 17. Blaise Pascal (1623-1662) expressou bem a compreensão do limite da razão, ao escrever: “A última tentativa da razão é reconhecer que há uma infinidade de coisas que a ultrapassam. Revelar-se-á fraca se não chegar a percebê-lo. Pois, se as coisas naturais a ultrapassam, que dizer das sobrenaturais?” (Blaise Pascal, Pensamentos, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 16), 1973, IV. 267. p. 110). Ernst Cassirer faz um comentário mordaz a respeito do pensamento de Pascal, dizendo que “a tese que ele sustenta é a de impotência radical da razão, incapaz por si mesma da menor certeza, que só pode chegar à verdade renunciando a ela própria e submetendo-se inteiramente, sem reservas, à fé. Mas, justamente, Pascal não pretende exigir ou pregar a necessidade dessa submissão: quer prová-la” (Ernst Cassirer, A Filosofia do Iluminismo, p. 199).
[7] Alister E. McGrath, Fundamentos do Diálogo entre Ciência e Religião, São Paulo: Loyola, 2005, p. 97.
[8] “[A ciência] é provisória e limitada” (Karl Barth, Esboço de uma Dogmática, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 7). Veja-se: Hendrik van Riessen, Enfoque Cristiano de la Ciencia, p. 59.
[9]“A prevalência de uma crença pode não ser um indicador confiável de sua verdade, mas apenas um reflexo das modas intelectuais ou culturais transitórias. O que hoje parece ser permanente e globalmente aceito é com frequência descartado amanhã como uma forma ultrapassada de pensar” (Alister E. McGrath, Surpreendido pelo sentido: ciência, fé e o sentido das coisas, São Paulo: Hagnos, 2015, p. 19).
[10] Veja-se: Ernst Cassirer. Antropologia Filosófica, p. 328-329.
[11] J. Ortega y Gasset, Que é Filosofia?, Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1961, p. 40.
[12]F. Nietzsche, Humano, Demasiado Humano, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 32), 1974, I.1.11. p. 101. Dentro de uma perspectiva semelhante, escreveu Cassirer: “A linguagem é a primeira tentativa do homem para articular o mundo de suas percepções sensoriais. Esta tendência é uma das características fundamentais da linguagem humana” (Ernst Cassirer. Antropologia Filosófica, p. 328).
[13] L. Feuerbach, A Essência do Cristianismo, Campinas, SP.: Papirus 1988, p. 43.
[14]Edgar Morin, Ciência com Consciência, 7. ed. (Revista e modificada pelo autor), Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 8-9, 20; Pierre Bourdieu, Os usos sociais da ciência, São Paulo: UNESP., 2004, passim.
[15]John Ziman, O Conhecimento Confiável: uma exploração dos fundamentos para a crença na ciência, Campinas, SP.: Papirus, 1996, p. 12-13.
[16] Veja-se exemplo desta angústia in: John Horgan, O Fim da Ciência: uma discussão sobre os limites do conhecimento Científico, 3. reimpressão, São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
[17]Edgar Morin, Ciência com Consciência, p. 21. À frente:*** “A questão “o que é ciência?” não tem resposta científica. A última descoberta da epistemologia anglo-saxônica afirma ser científico aquilo que é reconhecido como tal pela maioria dos cientistas. Isso quer dizer que não existe nenhum método objetivo para considerar ciência objeto de ciência, e o cientista, sujeito” (Edgar Morin, Ciência com consciência, 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 119). “A ciência não controla sua própria estrutura de pensamento. O conhecimento científico é um conhecimento que não se conhece. Essa ciência que desenvolveu metodologias tão surpreendentes e hábeis para apreender todos os objetos a ela externos, não dispõe de nenhum método para se conhecer e se pensar” (Edgar Morin, Ciência com consciência, p. 20).
[18] Fernand Braudel, Gramática das Civilizações, 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 315.
[19] Pe. António Vieira, Historia do Futuro, 3. ed.?, Lisboa: J.M.C. Seabra e T. Q. Antunes, 1855, 6.