Uma fé que investiga e uma ciência que crê (10)
Analisemos alguns aspectos do senhorio e reinado de Deus:
Lutero (1483-1546), comentando o Cântico de Maria (Magnificat) (1521), escreve:
“Creio em Deus-Pai, Todo-poderoso”. Ele é todo-poderoso, de modo que em todos e através de todos e sobre todos reina exclusivamente seu poder. (…) Este é um artigo muito elevado e que encerra muita coisa; ele põe por terra toda arrogância e petulância, todo orgulho, glória, falsa confiança e enaltece somente a Deus; sim, ele indica a razão porque se deve enaltecer somente a Deus.[1]
Um dos aspectos fundamentais relacionados à essência do poder de Deus, é sua autonomia.[2] Somente em Deus há a autonomia total e absoluta. Somente Ele é um fim em si mesmo sem acréscimo ou diminuição do que é. Não há nada maior do que Deus e a sua glória.
E mais: todo o poder procede de Deus, que é a sua fonte inesgotável.
Spurgeon (1834-1892) enfatiza corretamente: “Deus é independente de tudo e de todos. Ele age de acordo com Sua própria vontade. Quando Ele diz: ‘Eu farei’, o que quer que diga será feito. Deus é soberano, e Sua vontade, não a vontade do homem, será feita”.[3]
O poder de Deus é soberanamente livre. Deus é soberano em si mesmo. A onipotência faz parte da essência dele. Por isso mesmo, para Ele não há impossíveis. Apesar de qualquer oposição, ele executa o seu plano.[4]
Tudo o que Ele deseja, pode realizar (Mt 19.26; Jó 23.13[5]).[6] No entanto, Deus não precisa exercitar o seu poder para ser o que é. Não há em Deus um vácuo entre ato é potência. Ele pode fazer tudo o que desejar. Porém, Ele não deseja tudo o que poderia fazer se assim o determinasse. A sua ação é determinada por seus sábios e voluntários decretos os quais, por sua vez, não estão sujeitos a conselhos ou pressões externas; Os seus decretos são consistentes consigo mesmo e uma expressão deliberativa de sua natureza.
Deus é. Somente em Deus temos uma identidade inseparável entre essência e existência.[7] Em Deus tudo é essência. A sua essência é infinita e inacessível (Sl 145.3/Jó 11.7-9). Ele eternamente é o que é por si mesmo. Portanto, nele nada é acidente. Ele como “causa não causada”, nada o antecede ou acrescenta elementos a si mesmo. Ele é o que é. Ou: Será o que será porque é o que será bem como é o que foi (Ex 3.14; Jó 36.22-23; 41.11; Is 40.13-14; Rm 11.33-36; 1Co 2.16).
A eternidade, a história e as circunstâncias nada acrescentam a Deus que, como ser absolutamente simples é completo[8] e, por isso mesmo perfeito. A partir da compreensão dessa condição absoluta, necessária e eterna, é que toda a ontologia, epistemologia e ética tornam-se possíveis.
As pessoas e as coisas existem. Como criação do Deus absoluto, toda a natureza, luta contra a sua extinção. O seu existir, tem em si o senso, ainda que longínquo do absoluto que permanece. É um senso de autopreservação que lhe é inerente.[9]
Ontologicamente Deus não precisa de nada fora de si mesmo. Ele se basta a si. Deus é. Ele é “independente e verdadeiramente autopoderoso”, sintetiza Turretini (1623-1687).[10] A criação nada lhe acrescenta ou diminui. Nenhuma alteração ocorre no seu ser[11] que diminua ou aperfeiçoe a sua essência.
O “existir de Deus” é uma categoria divina comunicativa acomodatícia à fragilidade e limitação de nossa compreensão, já que pensamos sempre com categorias delimitadas pela transitoriedade do existir. Falar do existir de Deus é por si só uma categorização humana e, por isso mesmo, com a permissão de Deus, restritiva.[12] Conhecemos a Deus porque Ele se revela. O nosso conhecimento é limitado, porém, pode ser real e verdadeiro.[13] A criação do nada pressupõe a existência de um Deus soberanamente livre e autopoderoso que se basta eternamente a si mesmo.[14] Ele existe por si mesmo, não dependente de nada fora dele (Ex 3.14/Ap 1.4). Ele é a causa eficiente de tudo o que existe (Is 44.24/Jo 1.1-3).[15] Deus antecede à criação. Permanece para sempre e não muda.
Asseidade divina
Partindo da asseidade[16] de Deus – sua independência total e absoluta, todas as suas demais perfeições, conforme podemos conhecer, se deduzem necessariamente, quer logicamente,[17] quer biblicamente,[18] quer de ambas as formas, visto que a lógica e as Escrituras não estão em contradição e, se completam.[19]
Ele se revela em doses homeopáticas correspondente fielmente a seu ser. Conhecemos a Deus pela sua Palavra e atos. Os nomes de Deus são formas importantes e pedagógicas usadas para que possamos conhecê-lo.[20]
Maringá, 29 de março de 2020.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]Martinho Lutero, Magnificat: In: Obras Selecionadas, São Leopoldo, RS.; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia, 1996, v. 6, p. 50-51.
[2]Sobre a soberania de Deus, veja-se: Hermisten M.P. Costa, A Soberania de Deus e a responsabilidade humana, Goiânia, GO.: Editora Cruz, 2016.
[3]C.H. Spurgeon, Sermões Sobre a Salvação, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 42-43.
[4]Ver: Herman Bavinck, Teologia Sistemática,Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 479-512.
[5]“Jesus, fitando neles o olhar, disse-lhes: Isto é impossível aos homens, mas para Deus tudo é possível” (Mt 19.26). “Mas, se ele resolveu alguma coisa, quem o pode dissuadir? O que ele deseja, isso fará” (Jó 23.13).
[6] Stott (1921-2011) coloca nestes termos: “A liberdade de Deus é perfeita, no sentido de que Ele é livre para fazer absolutamente qualquer coisa que Ele queira”(John Stott, Ouça o Espírito, Ouça o Mundo,São Paulo: ABU Editora, 1997, p. 58).
[7] “Logo, é impossível que, em Deus, a existência seja diferente da essência. (…) A existência está para a essência, da qual difere, como o ato para a potência. Ora, Deus nada tendo de potencial, como demonstramos, resulta que a sua essência não difere da sua existência e, portanto, são idênticas. (…) Deus é a sua essência. (…) Deus é a sua existência e não somente, a sua essência” (Tomás de Aquino, Suma Teológica, 2. ed. Caxias do Sul, RS.; Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes; Universidade de Caxias do Sul; Livraria Sulina Editora; GRAFOSUL, 1980, v. 1, Primeira Parte, Questão 2, Artigo 4, Solução, p. 26-27).
[8] “A essência de Deus é perfeitamente simples e livre de toda e qualquer composição. (…) Toda composição infere em mutação, por meio da qual uma coisa se torna parte de um todo, o que ela não era antes” (François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 262,263).
[9] Veja-se: Herman, Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, 156.
[10]François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 334. Do mesmo modo, veja-se também a p. 547. Veja-se o instrutivo e edificante capítulo de MacArthur: John F. MacArthur, Jr., Deus: face a face com Sua Majestade, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2013, p. 91-107.
[11]Veja-se: François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 550.
[12] Como bem escreve Clark (1902-1985): “É, portanto, relativamente sem importância se uma pessoa crê ou não na existência de Deus. Existência é um pseudoconceito. A questão importante é ‘Quem é Deus?’. A esta pergunta o Cristianismo oferece uma resposta trinitariana” (Gordon H. Clark, Ateísmo: In: Carl Henry, org. Dicionário de Ética Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 63. Do mesmo modo, na mesma obra, ver o verbete escrito pelo autor, “Dios”, p. 164).
[13] “É claro que todo o nosso conhecimento de Deus é ectípico ou derivado da Escritura. Somente o autoconhecimento de Deus é adequado, não-derivado ou arquetípico. Apesar disso, nosso conhecimento finito, inadequado, ainda é verdadeiro, puro e suficiente” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a criação, São Paulo, Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 97). Vejam-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a criação, São Paulo, Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 98,99,110; Emil Brunner, Dogmática, São Paulo: Novo Século, 2004, v. 1, p. 156-157; Francis A. Schaeffer, O Deus que Intervém, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 151; John M. Frame, A doutrina de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 164ss.
[14] “A substância suprema (…) tudo o que ela é, é por si mesma e de si mesma” (St. Anselmo de Cantuária, Monológio, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 7), 1973, I.6, p. 21).
[15] “Deus é aquele que existe de si mesmo e por meio de si mesmo, o ser perfeito que é absoluto em sabedoria e bondade, justiça e santidade, poder e bem-aventurança” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 98).
[16] Quanto ao conceito, veja-se: Richard A. Muller, Dictionary of Latin and Greek Theological Terms, 4. ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1993, p. 47.
[17] Cf. Gordon H. Clark, Atributos divinos: In: E.F. Harrison, ed., Diccionario de Teologia, Grand Rapids, MI.: T.E.L.L., 1985, p. 72-74.
[18] Cf. Herman, Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, 154-156; Cornelius Van Til, An Introduction to Systematic Theology, Phillipsburg, NJ.: Presbyterian and Reformed Publishing Co., 1974, p. 206-210.
[19] Cf. John M. Frame, A doutrina de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 453-454, 624 (nota 3).
[20] A palavra “Senhor” geralmente é a tradução do tetragrama hebraico hwhy (YHWH), que é reconhecido como sendo o nome pessoal, real, essencial e pactual de Deus (hw”hoy>) (Yehovah), o qual não é atribuído a nenhum outro suposto deus ou seres angelicais. (Cf. Paulo Anglada, Soli Deo Gloria: O Ser e as obras de Deus, Ananindeua, PA.: Knox Publicações, 2007, p. 35). “O ‘nome’ é Deus em revelação” (Geerhardus Vos, Teologia Bíblica, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 139).[20] (hw”hoy>) (Yehovah) é o nome revelacional de Deus (Ex 3.14-15; 6.2-3), “Eu sou o que sou” ou, “Eu sou o que serei” ou ainda: “Eu serei o que serei”. Porém, a sua origem é disputada entre os eruditos, não se tendo uma opinião consensual. (Uma breve, porém, ótima discussão sobre o assunto temos em Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 144-147. Mais atual, porém, menos crítico: Terence Fretheim, Javé: In: Willem A. VanGemeren, org. Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 4, p. 736-741). No entanto, é o nome com o qual Deus se manifesta a Moisés e pelo nome que quer ser sempre lembrado.
Oi, caro amigo e irmão Hermisten. Muito bom texto. Bem elaborado, pedagogicamente acessível e completo no seu conteúdo. Um verdadeiro curso de “O Ser de Deus”. Felicitações.
Obrigado por passar por aqui meu amigo, Rev. Manoel Peres. Deus o abençoe.