Teologia da Evangelização (91)
2.4.9.5. Deus chama os seus
Deus chama os seus eleitos por meio da pregação da Palavra. “Deus quer que o Evangelho seja proclamado ao mundo todo e em todo o tempo para que seja congregada a soma total dos eleitos”, escreve Kuiper.[1] A Palavra de Deus é sempre um ato criador, por meio da qual Deus chama, convence, transforma e edifica os seus.
Cada um de nós que foi alcançado pela graça de Deus, tornou-se um instrumento de testemunho da bendita salvação, a fim de que o povo de Deus seja salvo (Rm 10.14-17/At 18.9-11).[2]
O meio ordinário de Deus agir é chamando, persuadindo e congregando o seu povo por intermédio do seu povo. Em outras palavras, nós somos instrumentos, “elos vitais” no desenvolvimento do propósito salvífico de Deus, proclamando a sua Palavra de salvação.[3] Deus opera por meio da sua Palavra, tanto por meio da pregação como, iluminando os nossos olhos espirituais para recebê-la como Palavra autoritativa de Deus.
Comenta Calvino:
Não existe outra forma de edificar a igreja de Deus senão pela luz da Palavra, em que o próprio Deus, por sua própria voz, aponta o caminho da salvação. Até que a verdade brilhe, os homens não podem se unir juntos, na forma de uma verdadeira Igreja.[4]
Cabe aqui uma palavra de advertência e consolo quanto à nossa responsabilidade e limite:
Quem será salvo?
Quantos serão salvos?
São perguntas que não nos compete fazer. Contudo, a nossa responsabilidade é de cumprirmos a ordem expressa de Cristo, de anunciar o Evangelho a todas as pessoas, sabendo que a conversão é uma operação do Espírito, que ultrapassa à nossa capacidade.[5]
Compete-nos apenas pregar, não especular.[6] Calvino nos ensina mais uma vez:
Ademais, devemos depreender dessa passagem que a doutrina da predestinação não serve para nos arrebatar para as especulações extravagantes, mas para abater todo orgulho em nós, bem como a tola opinião que sempre concebemos do nosso valor e mérito próprios, e para mostrar que Deus tem livre poder sobre nós, bem como privilégio e domínio soberano, de tal modo que pode reprovar a quem quiser e eleger a quem lhe apetecer.[7]
Comentando o Salmo 96, Calvino sustenta que:
O salmista está exortando o mundo inteiro, e não apenas os israelitas, ao exercício da devoção. Isso não poderia ser efetuado, a menos que o evangelho fosse universalmente difundido como meio de comunicar conhecimento de Deus. (…) O salmista notifica, consequentemente, que o tempo viria quando Deus erigiria seu reino no mundo de uma maneira totalmente imprevista. Ele notifica ainda mais claramente como ele procede, ou, seja: que todas as nações partilhariam do favor divino. Ele convoca a todos a anunciarem sua salvação e, desejando que a celebrassem dia após dia, insinua que ela não era de uma natureza transitória ou evanescente, mas que duraria para sempre.[8]
Prudência recomendada:
Se alguém assim se dirige ao povo: “Se não credes é porque Deus já os há predestinado à condenação”, esse não somente alimentaria a negligência como também a malícia. Se alguém também para com o tempo futuro estenda a asserção de que não hajam de crer os que ouvem, porquanto hão sido condenados, isto seria mais maldizer do que ensinar. (…) Como nós não sabemos quem são os que pertencem ou deixam de pertencer ao número e companhia dos predestinados, devemos ter tal afeto, que desejemos que todos se salvem; e assim, procuraremos fazer a todos aqueles que encontrarmos, sejam participantes de nossa paz (…). Quanto a nós concerne, deverá ser a todos aplicada, à semelhança de um remédio, salutar e severa correção, para que não pereçam eles próprios, ou a outros não percam. A Deus, porém, pertencerá fazê-la eficaz àqueles a Quem preconheceu e predestinou.[9]
Beeke observa que, de forma equivocada, “uma das acusações mais comuns suscitadas contra o calvinismo como perspectiva teológica é que ele não fomenta uma paixão duradoura por evangelização e missões”.[10]
Na realidade, conforme pudemos ver, Calvino, com seu espírito missional, em meio a tantas dificuldades se tornou o teólogo, teórico e agente missional de rara grandeza, estando totalmente comprometido no preparo de missionários e seu envio, sendo, possivelmente, o Pai da Missões Reformadas.
A doutrina da eleição longe de ser um obstáculo à evangelização, é na realidade, um estímulo vital e consolador.[11] Esta doutrina ainda que nem sempre tenha sido vista por este ângulo; tendo inclusive alguns tentado justificar a sua inércia partindo de uma interpretação racionalizada, a verdade é que o zelo missionário de Calvino tem muito a ver com este ensinamento da Escritura.
A doutrina da predestinação não tornou a evangelização desnecessária; antes, a torna fundamental, já que é por meio do Evangelho que Deus chama o seu povo. Calvino, conforme temos visto, em diversas partes de seus escritos demonstrou a compreensão de que o Evangelho deveria ser pregado a todos e, como esta missão ainda não foi completada, obviamente compete a nós realizá-la.[12]
O nosso trabalho deve ser feito com total confiança em Deus, sabendo que cabe a Ele converter o coração do homem e, que a rejeição do Evangelho neste momento não implica necessariamente na rejeição absoluta. Esta convicção nos estimula a trabalhar com fervor e alegre perseverança:
Visto que a conversão de uma pessoa está nas mãos de Deus, quem sabe se aqueles que hoje parecem empedernidos subitamente não sejam transformados pelo poder de Deus em pessoas diferentes? E assim, ao recordarmos que o arrependimento é dom e obra de Deus, acalentaremos esperança mais viva e, encorajados por essa certeza, aceleraremos nosso labor e cuidaremos da instrução dos rebeldes. Devemos encará-lo da seguinte forma: é nosso dever semear e regar e, enquanto o fazemos, devemos esperar que Deus dê o crescimento (1Co 3.6). Portanto, nossos esforços e labores são por si sós infrutíferos; e no entanto, pela graça de Deus, não são infrutíferos.[13]
Portanto, se não vermos os frutos não devemos desanimar. Obedeçamos a Deus e descansemos em suas promessas. Caminhemos obedientemente pela fé:
Em nossos dias, Deus parece ordenar algo impossível quando requer que seu Evangelho seja proclamado em cada, cada lugar do mundo inteiro, com o propósito de restaurá-lo da morte para a vida. Pois vemos quão grande é a obstinação de quase todos os homens, e que numerosos e poderosos métodos de resistência Satanás emprega, de modo que, em suma, todas as vidas de acesso a esses princípios se acham obstruídas. Contudo, cabe aos indivíduos cumprir seu dever e não ceder diante dos impedimentos; e, finalmente, nossos esforços e nossos labores de modo algum deixarão de ter sucesso, mesmo que este ainda não seja visto.[14]
Maringá, 07 de outubro de 2022.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica,p. 21. (Veja-se, também, p. 39).
[2] “Como, porém, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados? Como está escrito: Quão formosos são os pés dos que anunciam coisas boas! Mas nem todos obedeceram ao evangelho; pois Isaías diz: Senhor, quem acreditou na nossa pregação? E, assim, a fé vem pela pregação, e a pregação, pela palavra de Cristo” (Rm 10.14-17). “Teve Paulo durante a noite uma visão em que o Senhor lhe disse: Não temas; pelo contrário, fala e não te cales; porquanto eu estou contigo, e ninguém ousará fazer-te mal, pois tenho muito povo nesta cidade. E ali permaneceu um ano e seis meses, ensinando entre eles a palavra de Deus” (At 18.9-11). O pequenino e edificante livro de Tyler é baseado neste texto. Ver: Bennet Tyler, Eleição: incentivo para pregar o Evangelho, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, [s.d.], 24p.
[3] Veja-se: J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus,2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 66-67.
[4] Ver: John Calvin, Commentary on the Prophet Micah. In: John Calvin Collection,[CD-ROM], (Albany, OR: Ages Software, 1998), (Mq 4.1-2), p. 101.
[5] Na manhã do domingo de 2 de outubro de 1859, o então jovem ministro Charles Spurgeon (1834-1892), pregava em Londres sobre “O Sangue do Concerto Eterno”(Hb 13.20).Ao aproximar-se do final de sua exposição, diz: “O decreto da eleição é limitado, porém as boas novas abrangem o mundo todo. A ordem que recebi de Deus é a de proclamar as boas novas a toda criatura debaixo do céu. A aplicação eficaz do evangelho está restringida aos eleitos de Deus, e consequentemente pertence à vontade secreta de Deus, porém não é assim com a mensagem; esta deve ser anunciada a todas as nações” (C.H. Spurgeon, Sermões no Ano do Avivamento, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, p. 60).
[6]“A predestinação divina se constitui realmente num labirinto do qual a mente humana é completamente incapaz de desembaraçar-se. Mas a curiosidade humana é tão insistente que, quanto mais perigoso é um assunto, tanto mais ousadamente ela se precipita para ele. Daí, quando a predestinação se acha em discussão, visto que o indivíduo não pode conter-se dentro de determinados limites, imediatamente, pois, mergulha nas profundezas do oceano de sua impetuosidade” (J. Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 9.14), p. 329-330). Ver: João Calvino, Efésios,(Ef 1.4), p. 26. A Palavra é-nos concedida para obediência, não para especulações (John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 7/1, (Is 2.3), p. 95).
[7]João Calvino, Sermões em Efésios, Brasília, DF.: Monergismo, 2009, p. 82.
[8] João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 96.1), p. 514-515.
[9] João Calvino, As Institutas,III.23.14.
[10] Joel Beeke, Calvino e a Evangelização: In: Joel R. Beeke, org., Vivendo para Glória de Deus: uma introdução à Fé Reformada, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2010, 2012, [293-306], p. 293.
[11]O conceituado teólogo batista Millard Erickson, conclui: “A predestinação não anula o incentivo para a evangelização e as missões. Não sabemos quem são os eleitos e os não eleitos, portanto, precisamos continuar a divulgar a Palavra. Nossos esforços evangelísticos são os meios que Deus usa para levar a salvação aos eleitos. A ordenação de Deus para o fim também inclui a ordenação dos meios para atingir tal fim. O conhecimento de que as missões são o meio de Deus é uma forte motivação para o empenho e nos dá confiança de que será bem-sucedido” (Millard J. Erickson, Introdução à Teologia Sistemática, p. 390). Veja-se também: James M. Boice, Fundamentos da Fé Cristã: Um manual de teologia ao alcance de todos, Rio de Janeiro: Editora Central Gospel, 2011, p. 450.
[12] Veja-se: John Calvin, Commentary on the Prophet Micah. In: John Calvin Collection,(CD-ROM), (Albany, OR: Ages Software, 1998), (Mq 4.3), p. 101.
[13]João Calvino, As Pastorais, (2Tm 2.25), p. 246-247.
[14] João Calvino, Série Comentários Bíblicos – Gênesis Volume 1, Recife, PE.: CLIRE, 2018, (Gn 17.23), p. 483-484.