Teologia da Evangelização (80)
2.4.9.2. Uma questão pastoral
Esta doutrina que é alvo de tantas especulações, tem o seu lugar aqui de forma bastante evidente e prática. Aliás, quando Calvino tratou deste tema partiu de uma questão concreta – comum a todos nós ainda hoje –: por que nem todos creem no Evangelho proclamado?[1]
Nas Institutas (1541), quando Calvino vai tratar da Predestinação e da Providência de Deus,inicia o capítulo com palavras sóbrias oriundas de uma constatação comum aos crentes. Ao mesmo tempo revela a orientação pastoral de sua teologia, preocupada com a compreensão da Palavra de Deus por parte do Seu povo:
Tendo-se em vista o fato de que a Aliança da Vida não é pregada igualmente a todos, e também que onde é pregada não é recebida igualmente por todos, vê-se nessa diversidade um admirável mistério do juízo de Deus. Não há dúvida nenhuma de que essa variedade atende ao Seu beneplácito, agrada ao Seu querer. Pois bem, como é evidente que isto é feito pela vontade de Deus – que a salvação é oferecida a uns e os outros são deixados de lado – daí decorrem grandes e altas questões, as quais só se resolvem ensinando aos crentes o que eles podem compreender da eleição e da predestinação de Deus.[2]
Na sequência, acrescenta, conforme citamos no início desses estudos:
Quando os homens quiserem fazer pesquisa sobre a predestinação, é preciso que se lembrem de entrar no santuário da sabedoria divina. Nesta questão, se a pessoa estiver cheia de si e se intrometer com excessiva autoconfiança e ousadia, jamais irá satisfazer a sua curiosidade. Entrará num labirinto do qual nunca achará saída.[3] Porque não é certo que as coisas que Deus quis manter ocultas e das quais Ele não concede pleno conhecimento sejam esquadrinhadas dessa forma pelos homens. Também não é certo sujeitar a sabedoria de Deus ao critério humano e pretender que este penetre a Sua infinidade eterna. Pois Ele quer que a Sua altíssima sabedoria seja mais adorada que compreendida (a fim de que seja admirada pelo que é). Os mistérios da vontade de Deus que Ele achou bom comunicar-nos, Ele nos testificou em Sua Palavra. Ora, Ele achou bom comunicar-nos tudo o que viu que era do nosso interesse e que nos seria proveitoso.[4]
Comentando o texto de 2Pe 3.9, – “Não retarda o Senhor a sua promessa, como alguns a julgam demorada; pelo contrário, ele é longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento” (2Pe 3.9) –, revela a sua preocupação pastoral e, ao mesmo tempo, a sua honestidade diante da aparente antinomia:[5]
Tão maravilhoso é seu amor pela humanidade, que ele poderia salvar a todos, e que ele mesmo está preparado para dar salvação ao perdido. A ordem é para ser noticiada, que Deus está pronto para receber todos ao arrependimento, de modo que nenhum se perca. (…) Pode ser perguntado aqui: se Deus não quer que ninguém pereça, por que então muitos perecem? Para isso, minha resposta é que não há menção, aqui, sobre o decreto secreto de Deus pelo qual os ímpios são condenados à sua própria ruína, mas somente de sua própria vontade como feita conhecida para nós no Evangelho. Pois, ali, Deus estende a mão sem distinção a todos, mas só segura, de forma a conduzi-los a si, aqueles que Ele escolheu antes da fundação do mundo.[6]
Mcgrath enfatiza: “Longe de ser uma especulação teológica árida e abstrata, a análise de Calvino sobre a predestinação se inicia a partir de fatos empíricos”.[7]
Portanto, continua:
A crença na predestinação não é uma questão de fé em si mesma, mas representa o resultado final de uma reflexão, informada pelas Escrituras, a respeito dos efeitos da graça sobre os indivíduos, à luz dos enigmas da experiência. A experiência ensina que Deus não toca todo coração humano (As Institutas, III.24.15).[8]
Prossegue:
Para Calvino, a predestinação é apenas um exemplo adicional do mistério da existência humana, por meio do qual alguns são inexplicavelmente favorecidos por dons materiais e intelectuais, os quais são negados a outros. A predestinação não levanta qualquer dificuldade que já não esteja presente em outras áreas da existência humana.[9]
Deste modo, este assunto é para ser tratado pelo povo de Deus. Não tem nenhum sentido debates “acadêmicos” sem um coração novo: a revelação de Deus não visa satisfazer a nossa curiosidade ou perguntas acidentais da nossa vida; Deus sempre trata do que é vital para esta existência e para a por vir. Quando vemos a abordagem de Calvino a este assunto, percebemos que a sua preocupação é fortemente pastoral e não especulativa.[10]
Ele nos instrui: “Quão perigoso para a Igreja é esse conhecimento que conduz às controvérsias, ou seja, o conhecimento que ignora a piedade e se preocupa só com a ostentação pessoal. Toda a assim chamada teologia especulativa dos papistas pertence a essa categoria”.[11]
Maringá, 27 de setembro de 2022.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]“O ponto de partida de sua doutrina (predestinação) foi sempre a experiência cristã e o reconhecimento de que a graça não é oferecida a todos igualmente, e nem por todos igualmente recebida – fatos que via confirmados na Escritura e pela observação diária” (Henry Strohl, O Pensamento da Reforma, São Paulo: ASTE, 1963, p. 151).
[2]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.8), p. 37. Este mesmo princípio orientador foi mantido na edição final (1559): “Já, porém, que o pacto de vida não é pregado entre todos os homens igualmente e, entre aqueles a quem é pregado, não acha a mesma receptividade, ou qualitativa, ou continuativamente, nessa diversidade se manifesta a admirável profundeza do juízo divino. Pois, nem padece dúvida de que esta variedade sirva também ao arbítrio da eterna eleição de Deus” (J. Calvino, As Institutas, III.21.1).
[3]Calvino usa a mesma expressão quando se refere à doutrina da Trindade: “Ora, se a distinção que em uma só é única divindade subsiste de Pai, Filho e Espírito, posto que é difícil de apreender-se, causa a certos espíritos mais dificuldade e problema do que é justo, lembrar-se devem de que as mentes humanas penetram em um labirinto quando cedem à sua curiosidade e, destarte, por mais que não alcancem a altura do mistério, deixem-se reger dos oráculos celestes” (As Institutas, I.13.21).
[4]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.8.1), p. 38.
[5] Uso a expressão “antinomia” do mesmo sentido que Packer a emprega (J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus,2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 16ss.). Podemos chamar também este conceito de “paradoxo lógico” (Para uma visão crítica do emprego do termo “antinomia”, não do conceito teológico sustentado por Packer, ver: R.C. Sproul, Eleitos de Deus, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998, p. 38-40 e Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 18. Veja-se também: K.S. Kantzer, Paradoxo: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã,São Paulo: Vida Nova, 1990, v. 3, p. 98-99 e Anthony Hoekema, Salvos pela Graça, São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 11-13.
[6]John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996, v. 22, (2Pe 3.9), p. 419-420. Por outro lado, orienta: “Deus não é destituído de sua misericórdia em manifestar, em ocasiões próprias, a severidade do Juiz, ao tentar de todas as formas, porém em vão, em trazer o pecador ao arrependimento, tampouco pode o exercício de tal severidade ser considerado uma impugnação de sua clemência” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Edições Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 58.10), p. 526). Motivação semelhante encontramos em Lloyd-Jones. Veja-se: D.M. Lloyd-Jones, Deus o Espírito Santo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1998, p. 72ss.).
[7]Alister E. McGrath, A Vida de João Calvino, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 195.
[8]Alister E. McGrath, A Vida de João Calvino, p. 195.
[9]Alister E. McGrath, A Vida de João Calvino, p. 196. Ver também: I. John Hesselink, Calvin’s First Catechism: A Commentary, Louisville, Kentucky: Westminster; John Knox Press, 1997, p. 94.
[10] Philip Schaff (1819-1893) referindo-se a Calvino, diz que “seu principal interesse foi mais religioso do que metafísico. Ele achou nesta doutrina [predestinação] o apoio mais forte para a sua fé. Ele combinou com isto a certeza da salvação, que é o privilégio e conforto de todo crente. Neste ponto ele diferiu de Agostinho, que ensinou o conceito católico da incerteza subjetiva de salvação. Calvino fez da certeza, Agostinho a incerteza, um estímulo ao zelo e santidade” (Philip Schaff; David S. Schaff, History of the Christian Church,Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1996, v. 8, p. 549). Ver também: Philip Schaff; David S. Schaff, History of the Christian Church,v. 8, p. 561.
[11]João Calvino, As Pastorais, (2Tm 2.14), p. 232. “A ambição é sempre contenciosa e nos conduz às polêmicas, de modo que aqueles que desejam aparecer estão sempre prontos a desembainhar a espada a pretexto de qualquer tema” (João Calvino, As Pastorais,(1Tm 6.20), p. 186). Como os jovens são mais irritáveis, dá uma orientação mais específica: “Os jovens, em meio às controvérsias, se irritam muito mais depressa do que os de mais idade; se iram mais facilmente, cometem mais equívocos por falta de experiência e se precipitam com mais ousadia e temeridade. Daí ter Paulo boas razões para aconselhar a um jovem a precaver-se contra os erros próprios de sua idade, os quais, de outra forma, poderiam facilmente envolvê-lo em disputas inúteis” (João Calvino, As Pastorais,São Paulo: Paracletos, 1998, (2Tm 2.22), p. 244).