Teologia da Evangelização (73)
2.4.4.2. O Homem como ser responsável
O homem foi criado como um ser pessoal que tem consciência e determinação própria. Diferentemente de todos os outros animais, faz a distinção entre o eu, o mundo e Deus; daí a capacidade de se relacionar com Deus (Gn 3.8-14; Jr 29.13; Mt 11.28-30) e com o seu semelhante, podendo entender (racionalmente) a vontade de Deus, fazer-se entender e avaliar todas as coisas (Gn 1.28-30; 2.18,19).
Como também já demonstramos, apesar de o pecado ter comprometido, de forma gravíssima todas as suas faculdades originais, o homem não deixou de ser a imagem e semelhança de Deus – visto que isto implicaria em deixar de ser homem. Contudo, ele se tornou uma imagem desfigurada, desfocalizada, mais propriamente uma “caricatura” do Seu Criador.[1]
Calvino escrevendo sobre isso, disse:
Quando de seu estado (original) decaiu Adão, não há a mínima dúvida de que por esta defecção se haja alienado de Deus. Pelo que, embora concedamos não haja sido aniquilada e apagada de todo a imagem de Deus, foi ela, todavia, corrompida a tal ponto que, o que quer que resta, é horrenda deformidade.[2]
A Bíblia apresenta o Evangelho como uma mensagem que deve ser anunciada a todos os homens a fim de que eles possam entendê-la e crer. Deus não simplesmente arrasta o pecador para si sem que ele deseje. Ninguém será salvo a contragosto. Deus não simplesmente nos “nocauteia”;[3] Ele nos convence, amável e docemente, ainda que de forma efetiva e poderosa. O homem precisa desejar a salvação e recebê-la pela fé. Sabemos que a fé é um dom de Deus (Ef 2.8) e é Deus mesmo quem desperta em nós a consciência de nossa necessidade de salvação e, ao mesmo tempo, a capacitação para crer no Evangelho.[4]
O Espírito libera a vontade do homem dominada pelo pecado, para que desejemos alegremente a salvação que nos é proposta por graça.
2.4.4.3. Uma Proclamação poderosamente submissa e inteligente
A proclamação compete a nós; é uma responsabilidade inalienável e essencial de toda a Igreja.[5] Como temos visto, não compreendemos exaustivamente a relação entre a Soberania de Deus e a responsabilidade humana, contudo, a Bíblia ensina estas duas verdades: Deus é Soberano e o homem é responsável diante de Deus por suas decisões (Rm 1.18-2.16).[6] O nosso confronto com os mistérios da Palavra deve nos conduzir à adoração sincera (Rm 11.33-36).
Em nosso testemunho, procuramos anunciar o Evangelho de forma inteligível, nos dirigindo a seres racionais a fim de que entendam a mensagem e creiam; por isso, ao mesmo tempo em que sabemos que é Deus quem converte o pecador, devemos usar os recursos de que dispomos – que não contrariem a Palavra de Deus -, para atingir a todos os homens.[7]
A nossa proclamação deve ser apaixonada, no sentido de que queremos alertar os homens para a realidade do Evangelho, “persuadindo-os” pelo Espírito, a se arrependerem de seus pecados e a se voltarem para Deus. (Vejam-se: Lc 5.10; Rm 11.13-14; 1Co 9.19-23; 2Co 5.11)[8].[9] Cremos que o Espírito da Verdade nos capacita a proclamar o Evangelho com fidelidade e sabedoria. Evangelizar não é um exercício de aniquilamento da razão, antes é um desafio à utilização de uma mente sã, que só pode ser restaurada pelo poder do Espírito. Toda verdade procede de Deus e, o Espírito de Deus nos concede este discernimento na compreensão e no uso da verdade. “O Espírito Santo é o Espírito da verdade, que se importa com a verdade, ensina a verdade e dá testemunho da verdade”, comenta Stott.[10]
A fé cristã fundamenta-se na história. Ela não exige uma crença destituída de fundamento, antes nos desafia a verificar e analisar os fatos conforme são registrados nas Escrituras.
Maringá, 27 de setembro de 2022.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]Veja-se: Anthony A. Hoekema, Criados à Imagem de Deus,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 87.
[2]João Calvino, As Institutas, I.15.4. “É verdade que ao vir a este mundo, trazemos conosco um remanescente da imagem de Deus com a qual Adão foi criado: porém esta mesma imagem está tão desfigurada que estamos repletos de injustiças e em nossas mentes não há senão cegueira e ignorância” (Juan Calvino, Se Deus fuera nuestro Adversario: In: Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 6), p. 86). Vejam-se: Juan Calvino, Breve Instruccion Cristiana, Barcelona: Fundación Editorial de Literatura Reformada, 1966, p. 13; João Calvino, Efésios, (Ef 4.24), p. 142. Para uma exposição mais ampla sobre o conceito de Calvino a respeito de imagem e semelhança, ver: Hermisten M.P. Costa, Calvino 500 anos, São Paulo: Cultura Cristã, 2009.
[3]Para usar uma expressão de Lloyd-Jones (D.M. Lloyd-Jones, O Caminho de Deus não o Nosso, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2003, p. 161).
[4] “Ninguém jamais foi convertido ao cristianismo à força. Todo verdadeiro converso volta-se para Cristo porque quer – embora seja certo que este querer é dom de Deus, transmitido a ele por ocasião do seu novo nascimento” (R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, p. 27). Do mesmo modo, vejam-se: D.M. Lloyd-Jones, O Supremo Propósito de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 230-231; Joel R. Beeke, Vivendo para a Glória de Deus: Uma introdução à Fé Reformada, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2012 (reimpressão), p. 122ss.
[5] “A evangelização é a inalienável responsabilidade de toda comunidade cristã, bem como de todo indivíduo crente” (J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, p. 21).
[6] Vejam-se: J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, p. 16-27; R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, p. 27.
[7] Vejam-se: John Piper, Pense – A Vida da Mente e o Amor de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2011, p. 114; Nathan Busenitz, A Palavra da Verdade em um mundo de erro: Fundamentos da apologética Cristã: In: John MacArthur, et. al. Evangelismo: compartilhando o Evangelho com fidelidade, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2012, p. 72ss.
[8]“….Disse Jesus a Simão: Não temas; doravante serás pescador de homens” (Lc 5.10). “Dirijo-me a vós outros, que sois gentios! Visto, pois, que eu sou apóstolo dos gentios, glorifico o meu ministério, para ver se, de algum modo, posso incitar à emulação os do meu povo e salvar alguns deles” (Rm 11.13-14). “Porque, sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos, a fim de ganhar o maior número possível. Procedi, para com os judeus, como judeu, a fim de ganhar os judeus; para os que vivem sob o regime da lei, como se eu mesmo assim vivesse, para ganhar os que vivem debaixo da lei, embora não esteja eu debaixo da lei. Aos sem lei, como se eu mesmo o fosse, não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo, para ganhar os que vivem fora do regime da lei. Fiz-me fraco para com os fracos, com o fim de ganhar os fracos. Fiz-me tudo para com todos, com o fim de, por todos os modos, salvar alguns. Tudo faço por causa do evangelho, com o fim de me tornar cooperador com ele” (1Co 9.19-23). “E assim, conhecendo o temor do Senhor, persuadimos os homens e somos cabalmente conhecidos por Deus; e espero que também a vossa consciência nos reconheça” (2Co 5.11).
[9] Veja-se: J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, p. 36-37.
[10]John R.W. Stott, A Verdade do Evangelho: um apelo à Unidade, Curitiba, PR.; São Paulo, SP.: Encontro; ABU., 2000, p. 130.