Teologia da Evangelização (58)
2.4.3.2.2.9.1. Uma bendita convicção
Calvino escrevendo sobre a graça e a certeza que, como Davi, podemos ter do cuidado de Deus em nossa vida até à eternidade, afirmou: “…. seria uma condição muitíssimo miserável viver tremente em meio à incerteza, a todo instante, sem sentir qualquer segurança na continuidade da graça de Deus em nosso favor”.[1]
Em outro lugar, acrescenta: “A graça de Cristo, pois, não flui para nós por um breve tempo, mas transborda para uma bendita imortalidade, pois ela não cessa de fluir até que a vida incorruptível, que tem início aqui e agora, chegue à perfeição”.[2]
De fato, se a nossa salvação é obra da graça de Deus, podemos confiar em Deus que, como expressão de sua fidelidade, nos manterá firmes a despeito de alguma inconsistência nossa pelo caminho. A nossa esperança[3] de entrar na glória fundamente-se unicamente no poder de Deus, demonstrado de forma majestosa na obra de Cristo por nós. Analisemos alguns aspectos deste ponto.
A doutrina da Perseverança dos Santos é conhecida como um dos cinco pontos do Calvinismo. Mas, o que significa esta doutrina?
Os Cânones de Dort em resposta à posição denominada de arminiana,[4] declaram:
Aqueles que, de acordo com o seu propósito, Deus chama à comunhão do seu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, e regenera pelo seu Santo Espírito, ele certamente os livra do domínio e da escravidão do pecado. Mas nesta vida, ele não os livra totalmente da carne e do corpo de pecado (Rm 7.24).
Portanto, pecados diários de fraqueza surgem e até as melhores obras dos santos são imperfeitas.
Estes são para eles constante motivo para humilhar‑se perante Deus e refugiar‑se no Cristo crucificado. Também são motivo para mais e mais mortificar a carne através do espírito de oração e através dos santos exercícios de piedade, e ansiar pela meta da perfeição. Eles fazem isto até que possam reinar com o Cordeiro de Deus nos céus, finalmente livres deste corpo de morte.
Pois Deus, que é rico em misericórdia, de acordo com o imutável propósito da eleição, não retira completamente o seu Espírito dos seus, mesmo em sua deplorável queda. Nem tampouco permite que venham a cair tanto que recaiam da graça da adoção e do estado de justificados. Nem permite que cometam o pecado que leva à morte, isto é, o pecado contra o Espírito Santo e assim sejam totalmente abandonados por ele, lançando‑se na perdição eterna.[5]
Berkhof (1873-1957), assim define: “A doutrina da perseverança dos santos tem o sentido de que aqueles que Deus regenerou e chamou eficazmente para um estado de graça não podem cair nem total nem definitivamente, mas certamente perseverarão nele até o fim e serão salvos para toda a eternidade”.[6]
Portanto, a despeito de possíveis desvios e quedas resultantes do pecado sobrevivente em nós, a graça de Deus jamais será extinta na vida do eleito. Isso porque, na realidade, ele vive pela graça buscando orientar-se por toda vontade revelada de Deus.
Em outras palavras, aqueles a quem Deus elegeu na eternidade, chamando-os eficazmente no tempo, regenerando-os, produzindo fé em seus corações para que pudessem atender ao chamado divino, tendo, portanto, a verdadeira fé salvadora, jamais poderão perdê-la total nem finalmente. A eleição é o fundamento de todos os atos salvadores de Deus na história.
A doutrina da perseverança dos santos, inclui em sua essência, a perseverança em santidade, não uma justificativa acomodatícia à prática e permanência no pecado.[7] A graça de Deus que nos chama, nos acompanha até à consumação de sua obra em nós, nos conduzindo à glorificação perfeita em Cristo. O próprio Filho, senhor da glória (1Co 2.8), é quem nos conduzirá ao Pai (1Pe 3.18).[8]
Deus nos chama fazendo com que o seu gracioso e eterno propósito passe a fazer parte da experiência do regenerado:
Nele [Jesus Cristo], digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados (proori/zw) segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade. (Ef 1.11).
Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou (proori/zw) para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou (proori/zw) esses também chamou (kale/w) e aos que chamou (kale/w), a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou. (Rm 8.29-30).
Esta ordem divina é eficaz porque Deus opera eficazmente em nossa mente e coração. Deus age na história conforme o seu decreto. Ele nos chama e adota como filhos benditos e herdeiros da Aliança! Aqui a Palavra de Deus é definitivamente colocada e sedimentada em nosso coração.
A vocação de Deus permanece e nos sustenta até o fim (Fp 1.6).[9] Este chamado é para a glória eterna do seu reino:
Devemos sempre dar graças a Deus por vós, irmãos amados pelo Senhor, porque Deus vos escolheu (ai(re/omai) desde o princípio para a salvação, pela santificação do Espírito e fé na verdade, para o que também vos chamou (kale/w) mediante o nosso evangelho, para alcançardes a glória de nosso Senhor Jesus Cristo. (2Ts 2.13-14).
O Deus de toda a graça, que em Cristo vos chamou (kale/w) à sua eterna glória, depois de terdes sofrido por um pouco, ele mesmo vos há de aperfeiçoar, firmar, fortificar e fundamentar. (1Pe 5.10). (Ver: 1Ts 2.12).
A mesma graça que nos elege e chama, nos confirma. Deus nos chama para a sua glória. Não há nada maior do que isso, nem aqui, nem na eternidade. A nossa salvação não é o fim último. Ela é o meio: somos destinados desde a eternidade à glória de Deus. Como filhos, glorificaremos ao Senhor por toda a eternidade.[10]
Considerando que foi Deus mesmo quem nos chamou (vocacionou) (Fp 3.14; 2Tm 1.9; Hb 3.1; 2Pe 1.10), devemos instar com nossos irmãos e, interceder junto ao Senhor para que Ele torne nossos irmãos dignos dessa vocação. Este foi o procedimento de Paulo:
Rogo-vos (parakale/w),[11] pois, eu, o prisioneiro no Senhor, que andeis de modo digno (a)cio/w)[12] da vocação (klh=sij) a que fostes chamados. (Ef 4.1).
Não cessamos de orar por vós, para que o nosso Deus vos torne dignos (a)cio/w) da sua vocação (klh=sij)e cumpra com poder todo propósito de bondade e obra de fé. (2Ts 1.11).
Alegremo-nos na doce, graciosa e gloriosa condição de filhos de Deus. O Pai nos chamou a este privilégio: “Vede que grande amor nos tem concedido o Pai, a ponto de sermos chamados (kale/w) filhos de Deus; e, de fato, somos filhos de Deus” (1Jo 3.1).[13]
Maringá, 09 de setembro de 2022.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 16.8), p. 318.
[2]João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 4.13), p. 163.
[3]“Certamente que, embora, com respeito a nós mesmos, nossa salvação esteja ainda oculta na esperança, todavia em Cristo já possuímos a bem-aventurada imortalidade e glória” (João Calvino, Efésios,São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 2.6), p. 36).
[4] O respeitado teólogo da Igreja do Nazareno, H. Orton Wiley (1877-1961), tratando das questões debatidas no Sínodo de Dort (1618-1619), apresenta os cinco pontos arminianos defendidos ali. Transcrevo o quinto ponto: “Que aqueles que estão unidos a Cristo pela fé são carregados de força abundante e socorro suficiente para habilitá-los a triunfar sobre as seduções de Satanás, e os fascínios do pecado; no entanto, eles podem, ao negligenciar esse socorro, cair da graça e, morrendo em tal estado, podem perecer de forma final”. Acrescenta: “Esse ponto foi iniciado primeiramente de maneira duvidosa, mas depois, positivamente afirmado como uma doutrina estabelecida” (H. Orton Wiley, Christian Theology, Kansas City: Beacon Hill, 1952, v. 2, p. 351). Apenas uma curiosidade: Grudem considera essa obra de Wiley, como “provavelmente a melhor teologia sistemática arminiana publicada no século XX” (Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática,São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 1046).
[5] Os Cânones de Dort, São Paulo: Cultura Cristã, [s.d.], V.1,2,6.
[6] Louis Berkhof, Teologia Sistemática, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 501. (Edição de 1990, p. 549.
[7]“É totalmente errado afirmar que o crente está seguro, independentemente de sua vida posterior de pecado e infidelidade. A verdade é que a fé em Jesus Cristo está sempre atrelada à vida de santidade e fidelidade. Sendo assim, não é apropriado pensar a respeito de um crente independentemente dos frutos na fé e na santidade. Dizer que o crente está seguro, qualquer que seja a extensão de seu hábito de pecado em sua vida subsequente, é abstrair a fé em Cristo de sua definição mais exata e ensinar o tipo de abuso que torna a graça de Deus em lascívia. A doutrina da perseverança é a doutrina daqueles crentes que perseveram (…). A Perseverança dos santos faz lembrar forçosamente que somente aqueles que perseveram até o fim são verdadeiramente santos, mas a conquista do prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo não é automática. Perseverança significa o engajamento de nossa pessoa na devoção mais intensa e concentrada aos meios ordenados por Deus para a realização de seu propósito de salvação. A doutrina escriturística da perseverança não tem nenhuma afinidade com o quietismo e o antinomismo prevalecentes nos círculos evangélicos” (John Murray, Redenção: consumada e aplicada, 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 138-139).
[8] “Pois também Cristo morreu, uma única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos, para conduzir-vos a Deus; morto, sim, na carne, mas vivificado no espírito” (1Pe 3.18).
[9]Veja-se: C.H. Spurgeon, Sermões Sobre a Salvação, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 20.
[10]Veja-se: J. Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (Tt 1.2), p. 301.
[11] O verbo tem o sentido de: implorar (Mt 8.5; 18.29), suplicar (Mt 18.32); exortar (Lc 3.18; At 2.40; 11.23); conciliar (Lc 15.28); consolar (Lc 16.25; 15.32; 1Ts 5.11; 2Ts 2.17); confortar (At 16.40; 2Co 1.4; 7.6); contemplar (2Co 1.4); convidar (At 8.31); pedir (At 9.38; 1Co 4.13; 16.15); pedir desculpas (At 16.39); fortalecer (At 20.2,12); solicitar (At 25.2; Fm 9,10); chamar (At 28.20); admoestar (1Co 4.16; Hb 10.25); recomendar (1Co 16.12; 2Co 8.6; 9.5; 1Tm 6.2).
O apelo de Paulo era frequentemente fundamentado numa questão teológica; não se amparava simplesmente em sua idoneidade ou autoridade, antes em Deus mesmo. Assim ele o faz pelas misericórdias de Deus (Rm 12.1/1Ts 2.12) e pelo Senhor Jesus (Rm 15.30; 1Co 1.10; Fp 4.2). Como cooperador de Deus exorta a que os coríntios não recebam em vão a graça de Deus (2Co 6.1); roga também pela mansidão e benignidade de Cristo (2Co 10.1).
[12] Este advérbio tem o sentido primário de “contrabalança”, aquilo que é de “igual valor”, “equivalente”. A ideia da palavra é a de estabelecer uma relação de compatibilidade e equilíbrio.
[13] Veja-se: John Murray, Redenção: Consumada e Aplicada, 2. ed. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2010, p. 83.