Teologia da Evangelização (38)
2.4.3.2.2.3. Arrependimento (Continuação)
O arrependimento e a fé são passos iniciais, inseparáveis e complementares[1] da vida cristã como resposta ao chamado divino. No entanto, ambos devem acompanhar a nossa vida. Devemos continuar crendo em Deus em todas as circunstâncias e cultivar, pelo Espírito, uma atitude de arrependimento pelas nossas falhas.[2] “O espírito quebrantado e o coração contrito são as marcas permanentes da alma crente”, resume Murray (1898-1974).[3]
Isso indica o fato de que somos pecadores e, ainda que não mais dominados pelo pecado, continuamos mantendo esta luta em nosso coração. As nossas quedas seguidas de um arrependimento sincero, nos envergonham porque percebemos o quão distantes estamos do alvo proposto por Deus para nós. Como temos demonstrado, o arrependimento pleno é um ideal da vida cristã que jamais será concretizado neste estado de existência.
Olyott escreve sobre isso com a sua costumeira sensibilidade:
Arrependimento é ter vergonha de quem você é. Você faz o que você faz porque você é quem você é. E o que você é, é o que Deus diz que você é: um pecador! O evangelho é que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar pecadores! E sem esse sentido claro de pecado, você não pode ser salvo.[4]
O famoso pregador londrino, Lloyd-Jones (1899-1981), na sua juventude tinha como pastor um homem que, conforme nos conta o seu principal biógrafo, Iain Murray, enchia os seus sermões “com muitas anedotas e ilustrações. Sensação e emoção eram o que ele visava alcançar”.
Mais tarde, Lloyd-Jones rememorando este período, testificou com certa tristeza:
O que eu precisava era de pregação que me convencesse de pecado e me fizesse enxergar a minha necessidade, que me levasse ao arrependimento e me dissesse algo sobre regeneração. Mas eu nunca ouvi isso. A pregação que tínhamos era sempre baseada na suposição de que todos nós éramos cristãos, que não estaríamos ali na congregação a não ser que fôssemos cristãos.[5]
Lloyd-Jones está correto.
Sensível demais
O cristão de hoje, em especial, tende a gostar de ser mimado pelos seus líderes. No culto ficam numa posição confortável e climatizada, analisando com certa indiferença o que é dito, percorrendo os olhos sobre os demais frequentadores buscando algo curioso, manuseando o celular, fazendo carinho em algum familiar próximo, chamando a atenção do seu familiar para alguma curiosa mensagem que chegou via zap, talvez comunicando o nascimento do filhotinho lindo do “Golden retriever” (“oh meu Deus que lindinho!”), partilhando o celular com alguém que insensivelmente quer participar do culto mas, já que não está conseguindo entender nada que não tenha muitas figuras e luzes, aproveita para perguntar quantos filhos nasceram porque tem interesse, etc.
O culto parece um exercício de relaxamento – onde não preciso pensar –, desfile de moda e amenidades. Desse modo, passamos o tempo brincando com as coisas de Deus sem nenhum tipo de escrúpulo, constrangimento ou sentimento de culpa. Afinal, a graça de Jesus é maravilhosa!, complacentemente diz para si mesmo.
Enquanto isso, nos levantamos para alguns cânticos/hinos, aproveitamos para olhar para trás ver se determinado irmão chegou… Cantamos com certa sensibilidade alguns cânticos, nos sentamos, dando uma última olhada para trás e continuamos em nossa jornada.
Somos hábeis em buscar justificativas para os nossos erros, colocando todo o ônus do mal uso de nossa liberdade, sobre os ombros dos outros, ficando assim, ilusoriamente leves. Se for caso, buscamos ainda o discurso genérico da vitimização: Deus sabe que somos pecadores… Deus é misericordioso, etc.
Todas essas atitudes são danosas, porque nos afastam ainda mais do real confronto com a Palavra, a única que pode apresentar uma ressonância de nossa alma e de sua necessidade.
Quando o diagnóstico for a própria dor, talvez percebamos quanto tempo perdemos em futilidades sem atentarmos realmente para a instrução de Deus.
Horton pontua:
A necessidade de misericórdia só é sentida depois que a realidade da culpa impressiona. (…) O grito pelo socorro da graça nunca cativará o ouvido enquanto não houver novamente um sentimento de culpa e desespero em nossas igrejas.[6]
Por isso, entendemos que somente pela graça, por meio da Palavra, podemos ter uma clara consciência de nossa pecaminosidade ativa e concreta e de sua afronta a Deus.[7] Só conseguimos mensurar a graça, ainda que limitadamente, quando somos confrontados com o nosso pecado e a possibilidade concreta de perdão e restauração.
Ter consciência do pecado significa reconhecer o quão urgentemente precisamos de perdão. O Evangelho só se torna subjetivamente necessário – enquanto na realidade ele é urgentemente necessário – quando as pessoas percebem, por Deus, a sua necessidade. Enquanto isso não acontecer, ele soará sempre como algo descartável, ultrapassado ou loucura.
Permanecemos, assim, mortos espiritualmente, tendo a liberdade de um morto em decomposição.
Reafirmamos que a questão primeira não é a quantidade ou intensidade de nossos pecados, mas, o fato de que pecamos – e, diferentemente da compreensão de determinados pensadores humanistas, inclusive cristãos[8] –; a gravidade do pecado está no ponto de que todo pecado é primeiramente contra Deus, o eternamente santo,[9] que não tolera o mal (Hc 2.13).
Uma compreensão atenuada e adocicada da gravidade e horror do pecado, esvazia o significado da graça manifesta na cruz de Cristo. O que intensifica ainda mais a complexidade de nossa rebelião é o mal uso que fazemos de seus esplêndidos dons que nos foram conferidos[10] e, o fato de rejeitarmos o seu infinito e santo amor plenificado em Jesus Cristo.[11]
Outro elemento agravante em nosso diagnóstico, é que o pecado não nos deixa perceber as suas consequências: estamos totalmente alienados de Deus. O pecado faz conosco o que determinados remédios fazem como efeito: mascaram os sintomas, tornando a possível enfermidade imperceptível. Lloyd-Jones está correto ao resumir: “Não podemos ser cristãos sem convicção do pecado. Ser cristão significa que compreendemos que somos culpados diante de Deus e que estamos sob a ira de Deus”.[12]
Nem vitimização, nem arrogância
O caminho proposto por Deus é o arrependimento e a confissão. Deus não quer saber de nossas maquiagens e truques espirituais. Deus não é simplesmente de festas e aparências: decotes, brilhos, emoções perpetuadas em closes, e sorrisos fáceis.
Antes, trata com dignidade a nossa indignidade. Trata com santidade e misericórdia o nosso pecado. Deus vai ao cerne da questão, já quase inacessível a nós pelo monte de entulhos que, assimilados pela cultura e manipulados pelo nosso pecado conivente, a sobrepõem.
O fato, portanto, é este: Deus perdoa a todos aqueles que, arrependidos, tristes com o seu pecado, sinceramente o procuram de mãos vazias, sem arrogância ou vitimizações. Deus mesmo declara: “Eu, eu mesmo, sou o que apago as tuas transgressões ((a$ep) (pesha’)p or amor de mim”(Is 43.25). “Desfaço as tuas transgressões ((a$ep)(pesha’) como a névoa, e os teus pecados como a nuvem; torna-te para mim, porque eu te remi”(Is 44.22).
Temos uma boa síntese do significado bíblico de arrependimento no Catecismo Menor de Westminster, em resposta à pergunta 87: “O que é arrependimento para a vida?”:
Arrependimento para a vida é uma graça salvadora, pela qual o pecador, tendo uma verdadeira consciência de seu pecado, e percepção da misericórdia de Deus em Cristo, se enche de tristeza e de aversão pelos seus pecados, os abandona e volta para Deus, inteiramente resolvido a prestar-lhe obediência (At 11.18; At 2.37; Jl 2.13; 2Co 7.11; Jr 31.18,19; At 26.18; Sl 119.59).
A boa nova exclusiva do Evangelho de Cristo, é que há salvação para todo aquele que se arrepender de seus pecados e confessar a Cristo como Senhor. Este é sentido da mensagem vivenciada e proclamada pela igreja, como comunidade de pecadores inteiramente perdoados pela graça.
São Paulo, 12 de agosto de 2022.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] “O arrependimento é fruto da fé, que é, ela própria, fruto da regeneração. Contudo, na vida real, o arrependimento é inseparável da fé, sendo o aspecto negativo (a fé é o aspecto positivo) de voltar-se para Cristo como Senhor e Salvador. A ideia de que pode haver fé salvadora sem arrependimento, e que uma pessoa pode ser justificada por aceitar Jesus como Salvador, e ao mesmo rejeitá-lo como Senhor, é uma ilusão destrutiva” (J.I. Packer, Teologia Concisa, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 152-153). Vejam-se: João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 2, (II.5), p. 129ss.; A.A. Hoekema, Salvos pela graça, São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 129.
[2] Ferguson argumenta de forma simples, porém, objetiva destacando o perigo de entendermos o “arrependimento” apenas como ato único (“emoção inicial”) na vida cristã (Veja-se: Sinclair Ferguson A Graça do Arrependimento. São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2014, p. 46ss.).
[3]John Murray, Redenção: Consumada e Aplicada, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1993, p. 130.
[4]Stuart Olyott, Jonas – O Missionário bem-sucedido que fracassou, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2012, p. 58.
[5] Apud Iain H. Murray, A Vida de Martyn Lloyd-Jones 1899-1981: Uma biografia, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2014, p. 56.
[6] Michael S. Horton, Os Sola’s de Reforma: In: J.M. Boice; B. Sasse, Reforma Hoje, São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 123.
[7] “É mister graça e iluminação espiritual para crermos que nossos pecados são um problema sério aos olhos de Deus, conforme a Bíblia nos diz. Precisamos orar para que Deus nos torne humildes e dispostos a aprender, quando estudamos esse tema” (J.I. Packer, Vocábulos de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 1994, p. 63. Ver também p. 70s.).
[8] Dentro desta perspectiva limitante do sentido do pecado, incluímos, entre outros, Cecil Osborne (1904-1999), que seguindo o pensamento de Erich Fromm (1900-1980), escreveu: “Pecado é essencialmente um erro contra si mesmo ou contra outro ser humano” (Cecil Osborne, A Arte de Compreender-se a Si Mesmo, Rio de Janeiro: JUERP., 1977, p. 139). Fromm (1900-1980) escrevera: “Pecado não se dirige primariamente contra Deus, mas contra nós mesmos” (Erich Fromm, Psicanálise e religião, 2. ed. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, Ltda., 1962, p. 105). Veja-se também: E. Fromm, Análise do Homem, São Paulo: Círculo do Livro, [s.d.], 218p. De modo semelhante, esse conceito tem sido amplamente difundido por um discípulo de Norman Vincent Peale (1898-1993), o Dr. Robert Schuller (1926-2015), que enfatiza: “o pecado é uma ofensa psicológica a si mesmo” (Vejam-se as pertinentes críticas a esta posição em: John MacArthur Jr., Sociedade sem Pecado, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p. 78ss.).
[9] “O pecado envolve uma certa responsabilidade, por um lado, responsabilidade esta surgida da santidade de Deus, e, por outro lado, da seriedade do pecado como oposição àquela santidade” (John Murray, Redenção: consumada e aplicada, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1993, p. 29). “Jamais compreenderemos o que o pecado realmente é, enquanto não aprendermos a pensar nele em termos de nosso relacionamento com Deus” (J.I. Packer, Vocábulos de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 1994, p. 64).
[10]Veja-se: Anthony A. Hoekema, Criados à Imagem de Deus,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 101-102.
[11] “O incrédulo despreza o amor de Deus. Se este amor fosse pequeno, seria um pecado pequeno ignorá-lo. Se é grande, é grande pecado rejeitá-lo. Mas o fato é que este amor é infinito. Isso faz da rejeição deste amor um pecado de proporções infinitas” (R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1976, p. 19). “Como o amor de Deus é infinito, desprezar esse amor é pecado de proporções infinitas No entanto, é o que fazem aqueles que, por sua descrença, rejeitam o Filho de Deus, dom do Seu amor. (…) Rejeitar este amor é incorrer no banimento eterno da presença de Deus. Responder com fé e amor é herdar a vida eterna. Nada pode ser mais urgente do que a escolha de uma destas atitudes” (R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, p. 72).
[12]D.M. Lloyd-Jones, O supremo propósito de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 227.