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Teologia da Evangelização (35) - Hermisten Maia

Teologia da Evangelização (35)

2.4.3.2.2.3. Arrependimento (Continuação)

A Lei de Deus e a nossa miséria

Em certa ocasião, provavelmente entre a primeira (At 28) e a segunda prisão de Paulo, período não coberto pelo livro de Atos, Paulo pede a Timóteo que permaneça com os efésios justamente porque havia alguns supostos mestres com ensinos heterodoxos (1Tm 1.3). Entre eles, havia aqueles que usavam a Lei de modo ilegítimo, alvoroçando-se como prodigiosos mestres da lei porém, nada entendendo, exceto de seu grande ego que os permitiam fazer afirmações ousadas, como quem tem grande domínio do assunto. No entanto, eles estavam perdidos no cipoal de sua ignorância ignorada. Assim, propunham o cumprimento da lei como meio de salvação, tornando a salvação uma questão de merecimento (1Tm 1.3-8).

            Paulo então argumenta que a Lei é boa (1Tm 1.8). Ela nos foi dada para o nosso bem. Ela se tornou maldição devido ao nosso pecado. A quebra da Lei fez com que merecêssemos o justo castigo. Aliás, a Lei precisa ser enfatizada para que o homem, por graça, se disponha a ouvir o Evangelho.Sem a Lei, a impressão que cultivamos, é a de que temos uma vida correta e satisfatória, de nada precisamos, muito menos, de salvação.

            Analisando sob a perspectiva do pecador que carece de perdão – já que todos pecamos –, sem a consciência do pecado não há Evangelho. Somente o Evangelho trata o pecado com seriedade.[1] A Lei é o Evangelho ainda que não em sua plenitude. Contudo, sem a Lei não há consciência do pecado e, por isso mesmo, a convicção da necessidade de salvação.

            É natural que os homens se inclinem prazerosamente para os ensinamentos que falam de suas virtudes e capacidade.[2] “O Cristianismo é a religião do coração ferido”, resume Machen.[3]

            O homem é hábil em buscar “uma capa e subterfúgio para seu pecado”.[4] Ou, quem sabe, podemos nutrir até alguma noção sobre pecado, contudo, tendemos a pensar que isso é coisa praticada por pessoas ignorantes, deste modo, o conhecimento, por si só, nos liberta desta prática, supomos.

            Em geral a mente secular é profundamente otimista em relação às suas potencialidades. Portanto, falar de pecado é algo que não encontra tão facilmente ouvidos prazerosos ou mesmo atentos. Daí, uma tendência comum é a tentativa de suavizar esta doutrina, mudando nomes, perspectivas ou simplesmente silenciado a respeito.

            Dentro de uma perspectiva mais filosófica, tenta-se driblar a real questão por meio da amenização da realidade com a apresentação do perdão, como se a noção de perdão, por si só, trouxesse alívio, enquanto a proclamação da realidade do pecado assustasse as pessoas, as afastassem da mensagem do Evangelho. Pois bem, talvez isso seja assim no campo especulativo onde o pecado e o perdão são apenas conceitos vagos sobre os quais reflito por meio de uma análise fenomenológica, não me importando com a sua essência e fundamentação teológica.

            Deste modo, o que importa é a percepção subjetiva do conceito, não a veracidade e implicações dos fatos. Neste sentido, recordo-me da declaração de Erasmo de Roterdã (1466-1536): “Por certo são numerosos e fortes os argumentos contra a instituição da confissão pelo próprio Senhor. Mas como negar a segurança em que se encontra aquele que se confessou a um padre qualificado?”.[5]

            Na realidade, a Lei de Deus, como que por um espelho, reflete a nossa miséria espiritual resultante de nossa total incapacidade de cumprir as exigências divinas. O confronto com a Lei de Deus é algo profundamente angustiante e destruidor de alguma presunção orgulhosamente autônoma.

            A Lei de Deus não afaga as nossas pretensões entusiasticamente egocêntricas, antes, revela as nossas imperfeições. Via-nos saciados e ricos, com trajes finos e elegantes. A Lei vem nos mostrar que estamos famintos, carentes e nus.

As nossas vestes autônomas – com todos seus valores agregados por marcas, etiquetas e nomes exóticos – só servem para certificar de forma eloquente a nossa nudez. Não passam de folhas arrancadas às pressas de um jardim já corrompido pelo pecado. Evidenciam, às vezes, de modo abrupto, as nossas imperfeições.

Como tratar consciente e eficazmente de um mal não percebido? A Lei coloca em destaque a nossa condição de pecador, revelando de forma contundente os nossos pecados.[6]

            Por isso, entendemos que somente pela graça, por meio da Lei, podemos ter uma clara consciência de nossa pecaminosidade ativa e concreta e de sua afronta a Deus.

            Ter consciência do pecado significa reconhecer o quão urgentemente precisamos de perdão. O Evangelho só se torna subjetivamente necessário – enquanto na realidade ele é urgentemente necessário – quando as pessoas percebem, por Deus, a sua necessidade.

            Enquanto isso não acontecer, ele soará sempre como algo descartável. “Não podemos ser cristãos sem convicção do pecado. Ser cristão significa que compreendemos que somos culpados diante de Deus e que estamos sob a ira de Deus”, resume Lloyd-Jones.[7]

            A boa nova de salvação engloba o pecado, as suas consequências e a libertação de suas mazelas pela graça de Deus. Por isso é que podemos dizer que a lei é graça. A lei em seu primeiro aspecto, nos cala de vergonha. A graça que nos justifica, nos faz confessar a Jesus como Senhor.[8] A Lei, portanto, nos conduz à graça que brilha de forma magnífica na face de Cristo.[9]

Sproul (1939-2017) afirma com precisão: “Não pense que o Evangelho que o liberta da maldição da lei é uma licença para você desprezar e ignorar a lei”.[10]

            Paulo diz que“Cristo nos resgatou da maldição da lei”(Gl 3.13). Ele satisfez perfeitamente todas as exigências dela. Por isso, ele pode nos libertar definitivamente do seu aspecto condenatório,  restaurando-nos à comunhão com Deus por meio de sua obra sacrificial, fazendo-se maldito em nosso lugar.

19 Ora, sabemos que tudo o que a lei diz, aos que vivem na lei o diz para que se cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus, 20 visto que ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado. 21 Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas; 22 justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos e sobre todos os que creem; porque não há distinção, 23 pois todos pecaram e carecem da glória de Deus, 24 sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus, 25 a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente cometidos; 26 tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus. 27 Onde, pois, a jactância? Foi de todo excluída. Por que lei? Das obras? Não; pelo contrário, pela lei da fé. 28 Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei. 29 É, porventura, Deus somente dos judeus? Não o é também dos gentios? Sim, também dos gentios, 30 visto que Deus é um só, o qual justificará, por fé, o circunciso e, mediante a fé, o incircunciso. 31 Anulamos, pois, a lei pela fé? Não, de maneira nenhuma! Antes, confirmamos a lei. (Rm 3.19-31).

            A Lei, portanto, no seu aspecto moral, não foi abolida. Escreve Calvino:

A lei moral de Deus é a verdadeira e perpétua regra de justiça, ordenada a todos os homens, de todo e qualquer país e de toda e qualquer época em que vivam, se é que pretendem reger a sua vida segundo a vontade de Deus. Porque esta é a vontade eterna e imutável de Deus: que Ele seja honrado por todos nós, e que todos nós nos amemos uns aos outros.[11]

            A Lei não nos salva, contudo nos mostra a necessidade que temos do perdão e da purificação efetuada por Deus. “A regra de nossa santidade é a lei de Deus”.[12]

            O anúncio do Evangelho envolve a Lei, a mesma que evidenciou o nosso pecado, apontou para a necessidade de salvação, se concretizando em Cristo Jesus: “O Evangelho e a Lei não devem ser separados, constituem uma única entidade no interior da qual o Evangelho é a coisa primordial e a Lei permanece contida na Boa Nova”, enfatiza Barth (1886-1968).[13] Sem Lei não há Evangelho.

            Por intermédio de Cristo, somos libertos da tentativa insana de tentar ser salvo pelo cumprimento da Lei, o que é impossível. Além do mais, este desejo ainda que fosse moralmente possível, não o seria dentro do propósito glorioso de glorificar o nome de Deus, que deve ser o alvo final de todas as coisas, inclusive de nossa obediência (1Co 10.31).

            Diante a Lei restam-nos hipoteticamente duas opções: cumprir as suas exigências, o que nos é impossível, arcando, assim, com o reto juízo condenatório de Deus, ou buscar refúgio na misericórdia de Deus por meio de Jesus Cristo.

            Calvino orienta-nos:

Na Lei de Deus nos é apresentado um padrão perfeito de toda a justiça que pode, com razão, ser chamada de vontade eterna do Senhor. Deus condensou completa e claramente nas duas tábuas tudo o que Ele requer de nós. Na primeira tábua, com uns poucos mandamentos, Ele prescreve qual é o culto agradável à Sua majestade. Na segunda tábua, Ele nos diz quais são os ofícios de caridade devidos ao nosso próximo. Ouçamos a Lei, portanto, e veremos que ensinamentos devemos tirar dele e, similarmente, que frutos devemos colher dela.[14]

            Contudo, o que a Lei exige, ela mesma não nos capacita a cumprir, deixando-nos sozinhos.[15] Esta capacitação é somente pela graça que, se envolve a Lei, não se restringe a ela.

            Calvino comenta:

Pela lei Deus exige o que lhe é devido, todavia não concede nenhum poder para cumpri-la. Entretanto, por meio do Evangelho os homens são regenerados e reconciliados com Deus através da graciosa remissão de seus pecados, de modo que ele é o ministério da justiça e da vida.[16]

            Insistimos: desprezar a Lei de Deus é um ato de insanidade pecaminosa. Na Lei de Deus temos o princípio de sabedoria que deve nortear a nossa vida. Devemos, portanto, nos aplicar no estudo da Lei,[17] visto que “a Escritura outra coisa não é senão a exposição da lei”.[18]

  São Paulo, 12 de agosto de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Veja-se: J. Gresham Machen, Cristianismo e Liberalismo, São Paulo: Os Puritanos, 2001, p. 69ss.

[2]Cf. João Calvino, As Institutas,II.1.2.

[3] J. Gresham Machen, Cristianismo e Liberalismo, São Paulo: Os Puritanos, 2001, p. 71.  

[4]João Calvino, O Livro dos Salmos,São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 105.6), p. 671.

[5] Erasmo, Opera Omnia, Leyde, 1704, v, col. 145-6, Apud Jean Delumeau, A Confissão e o Perdão: As Dificuldades da Confissão nos Séculos XIII a XVIII, São Paulo: Companhia das Letras, 1991,p. 37. Em outro lugar, também indagou: “Por que se dar ao trabalho de confessar seus pecados a outro ser humano apenas pelo fato de ser um sacerdote, quando pode confessá-los diretamente a Deus?” (Apud Alister E. McGrath, Teologia, sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005,p. 84).

[6]”Aqueles (…) que foram instruídos na lei de Deus e no Evangelho, como descrito na Bíblia, normalmente têm uma consciência mais viva de seu estado pecaminoso, e de seus pecados particulares, porque a luz divina que brilha neles e que vem das Escrituras para expor-lhes é mais intensa” (J.I. Packer, A Redescoberta da santidade,  2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2018, p. 42).

[7]D.M. Lloyd-Jones, O Supremo Propósito de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 227.

[8] “Se o leitor separar a lei da pessoa de Cristo, nada ficará nela senão formas vazias. (…) A verdade consiste no fato de que através de Cristo obtemos a graça que a lei não poderia dar” (João Calvino, O Evangelho segundo João,  São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 1.17),  p. 57).

[9] Veja-se: João Calvino, As Institutas, II.7.8.

[10] R.C. Sproul, Oh! Como amo a tua lei!: In: Don Kistler, org. Crer e Observar: o cristão e a obediência, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 14.

[11]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 4, (IV.16), p. 160.

[12]J.I. Packer, O Plano de Deus para Você, 2. ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2005, p. 155.

[13]Karl Barth, Esboço de uma Dogmática, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 22.

[14]João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003,Cap. 8, p. 21.

[15] “A lei deixa o homem entregue às suas próprias forças e o desafia a empregá-las ao máximo; o Evangelho, porém, coloca o homem diante do dom de Deus e lhe pede que faça deste dom inefável o verdadeiro fundamento de sua vida” (J. Jeremias, O Sermão do Monte, 4. ed. São Paulo: Paulinas, 1980, p. 57).

[16]João Calvino, Exposição de Segunda Coríntios,São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 3.7), p. 70.

[17]Calvino comenta: “…. só são dignos estudantes da lei aqueles que se achegam a ela com uma mente disposta e se deleitam com suas instruções, não considerando nada mais desejável e delicioso do que extrair dela o genuíno progresso. Desse amor pela lei procede a constante meditação nela….” (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, (Sl 1.2), p. 53).

[18]João Calvino, O Livro dos Salmos,v. 1, (Sl 1.2), p. 53. “No que tange à substância da Escritura, nada se acrescentou. Os escritos dos apóstolos nada contêm além de simples e natural explicação da lei e dos profetas juntamente com uma clara descrição das coisas expressas neles” (João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998,(2Tm 3.17), p. 264).

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