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Teologia da Evangelização (27) - Hermisten Maia

Teologia da Evangelização (27)

2.4.3.2.2.1. Eleição[1]

A nossa eleição caracteriza o Reino da Graça de Deus como antecedendo à história (Rm 11.5-6; Gl 1.15; 2Tm 1.9).[2]

            Se o homem pudesse antecipar-se à graça de Deus com algo que fosse agradável a Deus, a liberdade de Deus estaria condicionada ao feito humano; não haveria, portanto, na escolha divina a manifestação da sua graça soberana.[3]

            Deus nos elegeu conforme a sua sábia, amorosa e eterna vontade. A escolha de Deus não sofre nenhum tipo de constrangimento no seu exercício. Por isso, não podemos nem devemos tentar buscar razões para a nossa eleição fora do beneplácito de Deus.

            Deus não tem razões fora de si mesmo para fazer o que fez (Mt 11.25,26; Jo 15.16,19; Rm 9.10-18; Ef 1.5-11; 2Tm 1.9).[4]   

            Coenen escreve:

Perguntando-se quais são os princípios que subjazem a escolha feita por Deus, a única resposta positiva que se pode dar é que Ele concede Seu favor aos homens, e os vincula a Si mesmo, unicamente com base em Sua própria decisão livre e no Seu amor que independe de quaisquer circunstâncias temporais.[5]

            Desejar ultrapassar estes limites, além de se constituir numa atitude iníqua e estéril, significa tentar a Deus, diminuindo a sua liberdade soberana e, ao mesmo tempo supor pecaminosamente, que a vontade de Deus não seja por si só motivo suficiente para Deus fazer todas as coisas como faz (Sl 115.3; 135.3-6; Is 46.10).

            Calvino (1509-1564), insiste neste ponto: Procurar relacionar a nossa eleição a causas externas, é tentar a Deus. A vontade de Deus deve ser suficiente para nós.[6] Nas Institutas ele interpreta como uma tentação maligna buscar a origem da nossa eleição fora da Palavra:

Nenhuma tentação do Diabo é mais perigosa para abalar os fiéis do que quando, fazendo com que os inquiete a dúvida quanto à sua eleição, provoca neles o estulto desejo de buscar essa certeza fora do caminho. Chamo buscar fora do caminho a atitude na qual o pobre homem se esforça para penetrar nos segredos incompreensíveis da sabedoria divina, e, para saber o que a respeito dele foi ordenado no juízo de Deus, quer ir ao princípio da eternidade em sua busca. Nessa tentativa ele se precipita como que num imenso e profundo golfo em que se afoga; enrosca-se como que em laços de armadilha dos quais jamais conseguirá se desembaraçar; e entra numa espécie de abismo de trevas do qual nunca poderá sair. Porque com justa razão a presunção do entendimento humano é assim punido com horrível desgraça, quando tenta elevar-se por seu poder ao altíssimo nível da sabedoria divina. Agora, a tentação que acabo de mencionar vê-se tanto mais perniciosa quanto é fato que quase todos nós somos inclinados a cair nela. Porque são bem poucos os que não se deixam tocar no coração por este pensamento: Donde vem que você obtém a salvação somente pela eleição de Deus? E como se revela essa eleição? Uma vez que esse pensamento encontre guarida no homem, ou lhe causará assombroso tormento, ou o fará sucumbir de espanto. Não pretendo ter argumento mais próprio para mostrar quão perversamente esse tipo de gente imagina a predestinação. Porque o espírito do homem não pode ser infeccionado por erro mais virulento que quando a consciência é destituída da sua tranquilidade e paz, que lhe cabe ter com Deus. Esta questão é como um mar, no qual, se tememos perecer, tenhamos cuidado acima de tudo com o rochedo que, se não for evitado, só nos causará desgosto. Entretanto, embora se considere a discussão sobre a predestinação um mar perigoso, a navegação é segura e calma, e até alegre, se não acontecer que alguém queira por vontade própria meter-se em perigo. Pois, assim como aqueles que, desejando ter certeza da sua eleição, invadem o conselho eterno de Deus sem a Sua Palavra, precipitam-se e afundam num abismo mortal, assim também, por outro lado, os que buscam certeza corretamente, e segundo a ordem revelada na Escritura, recebem singular consolação. Portanto, seja este o caminho que sigamos em nossa busca: começar pela vocação de Deus e terminar nela. Pois o Senhor quer que ela seja para nós como um marco ou um sinal para nos certificar de tudo o que nos é lícito saber do Seu conselho.[7]

A eleição é causa de nossa salvação, não o seu fruto.[8] Calvino considera pueril e sofístico o argumento que diz que fomos eleitos porque Deus previu que seríamos dignos.[9]

Em outro lugar, conclui:

Se porventura Deus escolheu uns e rejeitou outros, em consonância com sua previsão, se serão dignos ou não da salvação, então o galardão das obras já foi estabelecido, e a graça de Deus jamais reinará soberana, mas será apenas uma metade de nossa eleição.[10]

            A eleição não é condicionada ou dependente de “boas obras” nossas, nem de fé ou mesmo, de previsão de fé, mas sim do beneplácito de Deus (At 13.48; Rm 9.11,16,23; 11.4-7; Ef 1.7,12; 2Tm 1.9; 1Pe 1.2).[11]

            Notemos que, se a fé e as obras são resultantes da eleição, obviamente, elas não podem ser a condição de nossa salvação (At 15.11; 1Co 4.7; Ef 2.8-10).[12] Na realidade, “tanto a fé quanto as boas obras são uma resposta à graça e um dom desta”, assevera Veith.[13]

            Se Deus previsse fé, como “prevê” todas as coisas – aqui estou me valendo de uma categoria humana bastante limitada –, a fé ainda assim não seria meritória, visto que a fé que Deus “preveria” teria sido dada por Ele mesmo.

            “Se as pessoas foram eleitas porque Deus sabia que elas iam crer,[14] por que então precisavam ser eleitas? Os que têm fé hão de ser salvos, de qualquer modo! Se a fé já existe, a eleição é desnecessária”, conclui Booth (1734-1806).[15] Ou, seguindo o argumento combatido por Agostinho (354-430), neste caso, tais pessoas mereceriam ser eleitas.[16]

            Por outro lado, se Deus nos escolheu para sermos santos (Ef 1.4; 2Ts 2.13), é porque de fato não éramos.[17] Logo, não foi devido às nossas obras que Deus nos escolheu.

            A declaração de Paulo elimina qualquer centelha de orgulho por parte do suposto eleito (1Co 1.26-31). “A graça não teria razão de ser se os méritos a precedessem. Mas a graça é graça. Não encontrou méritos, foi a causa dos méritos. Vede, caríssimos, como o Senhor não escolhe os bons mas escolhe para fazer bons”, orienta pastoralmente Agostinho (354-430).[18]

São Paulo, 05 de agosto de 2022.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Para um estudo detalhado deste ponto, vejam-se: Hermisten M.P. Costa, Calvino 500 anos: introdução ao seu pensamento e obra, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 135-190; Idem.,  Efésios – O Deus Bendito, São Paulo: Cultura Cristã, 2011; Idem., O Caminhar dos eleitos de Deus, Eusébio, CE.: Peregrino, 2021.

[2]5 Assim, pois, também agora, no tempo de hoje, sobrevive um remanescente segundo a eleição da graça.  6E, se é pela graça, já não é pelas obras; do contrário, a graça já não é graça(Rm 11.5-6). Quando, porém, ao que me separou antes de eu nascer e me chamou pela sua graça, aprouve(Gl 1.15). “Que nos salvou e nos chamou com santa vocação; não segundo as nossas obras, mas conforme a sua própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus, antes dos tempos eternos” (2Tm 1.9).

[3] Veja-se: João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 65.4), p. 611.

[4] Veja-se: Os Cânones de Dort, São Paulo: Cultura Cristã, [s.d.], I.10.

[5] L. Coenen, Eleger: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1982, v. 2, p. 35.

[6] Vejam-se: João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 9.15), p. 331-333; João Calvino, Sermões em Efésios, Brasília, DF.: Monergismo, 2009, p. 74, 75,109; João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.8), p. 37-38. “Não busquemos a causa em parte alguma, senão na vontade divina. Notemos particularmente as expressões de quem quer e a quem lhe apraz. Paulo não permite que avancemos além disto” (J. Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 9.18), p. 337). Jorge Fisher acentua que “no calvinismo considerado como sistema teológico e em contraste com outros tipos da teologia protestante, se vê um princípio característico e elevado, a saber, o da soberania de Deus, não só de seu governo ilimitado dentro da esfera intelectual e material, senão também que a vontade divina é a causa última da salvação de alguns e do abandono de outros à perdição” (Jorge P. Fisher, Historia de la Reforma, Barcelona: CLIE., (1984), p. 231-232). Aquino, séculos antes de Calvino, já havia escrito: “Só a divina vontade é a razão da eleição de uns para a glória e da reprovação de outros” (Tomás de Aquino, Suma Teológica, 2. ed. Porto Alegre, RS.; Caxias do Sul, RS.: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes; Livraria Sulina Editora; Universidade de Caxias do Sul, 1980, v. 1, I, Q. 23, Art. 5, p. 238).

[7]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.8), p. 60.

[8] “A eleição não foi condicionada pela previsão dos méritos humanos, nem ainda pela previsão de sua fé. Ela é a raiz da salvação, não seu fruto” (W. Hendriksen, Efésios, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1992, (Ef 1.4), p. 99).

[9] Ver: João Calvino, Efésios, (Ef 1.4), p. 24-25.

[10] João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 11.6), p. 389. Vejam-se também: As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v.. 3, (III.8), p. 42; Charles Hodge, Teologia Sistemática, São Paulo: Hagnos, 2001, p. 738-739.

[11]Vejam-se, Cânones de Dort, I.9,10 e João Calvino, Exposição de Romanos,(Rm 8.29), p. 295 e (Rm 11.6). p. 388-389; John Murray, Romanos, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2003. (Rm 8.29), p. 343-348. Kuiper observa corretamente: “A eleição foi inteiramente incondicional. Não foi condicionada à fé e à obediência do homem. Deus não escolheu os pecadores para a vida eterna dependendo se eles iam crer e obedecer. Nem escolheu certas pessoas para a salvação, porque previu que iriam crer e obedecer” (R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1976, p. 57).

[12] Mas cremos que fomos salvos pela graça do Senhor Jesus, como também aqueles o foram (At 15.11). Pois quem é que te faz sobressair? E que tens tu que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te vanglorias, como se o não tiveras recebido?(1Co 4.7). Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; 9 não de obras, para que ninguém se glorie. 10 Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (Ef 2.8-10).

[13]Gene Edward Veith, Jr., De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 43.

[14] Esta era a compreensão Pelagiana combatida por Agostinho. Ver: S. Agostinho, A Graça (II),São Paulo: Paulus, 1999, p. 196ss.

[15] Abraham Booth, Somente pela Graça, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1986, p. 18.

[16]S. Agostinho, A Graça (II),São Paulo: Paulus, 1999, p. 194.

[17] Ver: S. Agostinho, A Graça (II),p. 198-199.

[18]St. Augustin, On the Gospel of St. John, Tractate 86.2-3. In: Philip Schaff; Henry Wace, eds. Nicene and Post-Nicene Fathers of Christian Church, (First Series), 2. ed. Peabody, Massachusettes:Hendrickson Publishers, 1995, v. 7, (Jo 15.16), p. 353-354. (Quanto aos principais conceitos de Agostinho a respeito deste assunto, Ver: Reinhold Seeberg, Manual de Historia de las Doctrinas,El Paso, Texas; Buenos Aires; Santiago: Casa Bautista de Publicaciones; Editorial “El Lucero”, 1963, v. 1, p. 347ss.

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