Teologia da Evangelização (21)
2.4.3.1. A Liberdade de Deus e do seu poder
Lutero (1483-1546), comentando o Cântico de Maria (Magnificat) (1521), escreve:
“Creio em Deus-Pai, Todo-poderoso”. Ele é todo-poderoso, de modo que em todos e através de todos e sobre todos reina exclusivamente seu poder. (…) Este é um artigo muito elevado e que encerra muita coisa; ele põe por terra toda arrogância e petulância, todo orgulho, glória, falsa confiança e enaltece somente a Deus; sim, ele indica a razão porque se deve enaltecer somente a Deus.[1]
Uma das doutrinas fundamentais de toda Escritura Sagrada é a Soberania de Deus. “Creio em Deus Pai Todo-Poderoso….”, esta tem sido a declaração feita pelos cristãos desde o século II, por meio do Credo Apostólico. A Igreja, amparada nas Escrituras, tem afirmado a sua fé no Deus “Todo-Poderoso”, Senhor de todas as coisas e, que ao mesmo tempo, é o nosso Pai Bondoso.[2]
Um dos aspectos fundamentais da soberania é a independência. Quando a nossa suposta independência depende de algo alheio ao nosso controle, percebemos então que a nossa suposta capacidade de decidir livremente está ameaçada ou sofre de limitações que podem ser bastante comprometedoras. Na realidade, somente em Deus há a autonomia total e absoluta.
Spurgeon (1834-1892) enfatiza corretamente: “Deus é independente de tudo e de todos. Ele age de acordo com Sua própria vontade. Quando Ele diz: ‘Eu farei’, o que quer que diga será feito. Deus é soberano, e Sua vontade, não a vontade do homem, será feita”.[3]
O poder de Deus é soberanamente livre. Deus é soberano em si mesmo. A onipotência faz parte da sua natureza essencial. Ele não tem primariamente compromissos com terceiros. Em outras palavras: Deus é soberano em si e por si mesmo. A onipotência faz parte da sua essência. Por isso mesmo, para Ele não há impossíveis. Apesar de qualquer oposição, Ele executa o seu plano.[4] Tudo o que Ele deseja, pode realizar (Mt 19.26; Jó 23.13[5]).[6] No entanto, Deus não precisa exercitar o seu poder para ser o que é.
Deus se apresenta nas Escrituras como de fato é, o Deus Todo-Poderoso (Onipotente), com capacidade para fazer todas as coisas conforme a sua vontade (Sl 115.3; 135.6; Is 46.10; Dn 4.35; Ef 1.11).[7]
Ele pode fazer tudo o que quer ou venha a querer, da forma, no tempo e com o propósito que determinar.[8]
Deus também se mostra coerente com as suas demais perfeições. Ou seja: Deus exercita o seu poder em harmonia com todas as perfeições de sua natureza (2Tm 2.13).[9]
A sua vontade é ética e santamente determinada. O poder de Deus se harmoniza perfeitamente com a sua vontade.[10] A sua vontade é eticamente determinada. Em outras palavras: “A vontade de Deus é uma com seu ser, sua sabedoria, bondade e todas as suas outras perfeições”, pontua Bavinck.[11]
A soberania de Deus se manifesta no fato dele poder fazer tudo o que faz (poder ordenado) e mesmo aquilo que não realiza, visto que não determinou fazê-lo (poder absoluto). O poder absoluto de Deus envolve o seu poder ordenado.[12] E o poder ordenado delimita o poder absoluto pela própria decisão restritiva de Deus: quando Deus decide fazer o que faz, delimitou a sua ação de forma que não mais pode fazer o que não determinou fazer e, na realidade, não pretende fazer diferente. O poder de Deus é sempre condizente com a totalidade de seus atributos.
Deus exerce o seu poder no cumprimento do que decretou e nas obras da providência. Aliás, as obras da providência consistem na execução temporal dos decretos eternos de Deus.[13] Contudo, o que Deus realiza não serve de limites para o seu poder. “Destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão”, adverte João Batista aos arrogantes descendentes da carne, mas, não da fé de Abraão (Mt 3.9).
Na Criação e preservação temos uma magnífica amostragem da majestade de Deus e de seu poder, não, contudo, a totalidade. O poder de Deus transcende infinitamente o seu poder revelado. O seu poder é maior que tudo o que criou. Todavia, o seu poder sempre será, em ato e potência, consoante com as suas eternas perfeições.[14]
Tudo o que Ele deseja, pode realizar (Mt 19.26; Jó 23.13[15]).[16] No entanto, Deus não precisa exercitar o seu poder para ser o que é. Não há em Deus um vácuo entre ato é potência. Ele pode fazer tudo o que desejar. Porém, não deseja tudo o que poderia fazer se assim o determinasse.
A sua ação é determinada por seus sábios e voluntários decretos os quais, por sua vez, não estão sujeitos a conselhos ou pressões externas, ou compulsões internas. Os seus decretos, além de eternos – portanto, antes da criação –, são consistentes consigo mesmo e uma expressão deliberativa de sua natureza.
Deus realiza o que realiza porque, além de plenos poderes para fazê-lo, Ele age conforme a sua santa vontade e, quando houver uma promessa, conforme o que foi prometido.
Declarar a liberdade soberana de Deus é reconhecer que Deus é Deus, contemplando-o na real esfera de sua natureza e revelação.[17]
Maringá, 28 de julho de 2022.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Martinho Lutero, Magnificat: In: Obras Selecionadas, São Leopoldo, RS.; Porto Alegre: Sinodal; Concórdia, 1996, v. 6, p. 50-51.
[2] Veja-se: Hermisten M.P. Costa, Eu Creio: no Pai, no Filho e no Espírito Santo, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2014.
[3]C.H. Spurgeon, Sermões Sobre a Salvação, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 42-43.
[4] Ver: Herman Bavinck, Teologia Sistemática,Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 479-512.
[5]“Jesus, fitando neles o olhar, disse-lhes: Isto é impossível aos homens, mas para Deus tudo é possível” (Mt 19.26). “Mas, se ele resolveu alguma coisa, quem o pode dissuadir? O que ele deseja, isso fará” (Jó 23.13).
[6] Stott coloca nestes termos: “A liberdade de Deus é perfeita, no sentido de que Ele é livre para fazer absolutamente qualquer coisa que Ele queira”(John Stott, Ouça o Espírito, Ouça o Mundo,São Paulo: ABU Editora, 1997, p. 58).
[7] “No céu está o nosso Deus e tudo faz como lhe agrada” (Sl 115.3). “Tudo quanto aprouve ao SENHOR, ele o fez, nos céus e na terra, no mar e em todos os abismos” (Sl 135.6). “… O meu conselho permanecerá de pé, farei toda a minha vontade” (Is 46.10). “Todos os moradores da terra são por ele reputados em nada; e, segundo a sua vontade, ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem lhe possa deter a mão, nem lhe dizer: Que fazes?” (Dn 4.35). “Nele (Jesus Cristo), digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade” (Ef 1.11).
[8]Veja-se: François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 326-327.
[9] “Se somos infiéis, ele permanece fiel, pois de maneira nenhuma pode negar-se a si mesmo” (2Tm 2.13).
[10] “Deus tem poder para fazer tudo quanto Ele queira; e com certeza a pessoa que tenta separar o poder de Deus de Sua vontade, ou retratá-lo como incapaz de fazer o que Ele queira, o que o tal faz é simplesmente tentar rasgá-lo em pedaços” (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 3, (Sl 78.18), p. 212). (Veja-se também: João Calvino, As Institutas, Campinas, SP.; São Paulo: Luz para o Caminho; Casa Editora Presbiteriana, 1985-1989, III.23.2). “Quanto a nós, basta-nos lembrar apenas duas coisas importantes: de um lado, o direito de Deus é supremo e absoluto, e acima do qual não podemos pensar nem falar, e Ele pode fazer com o que é seu tudo quanto lhe apraz; de outro, Ele é sempre santo e agradável à natureza perfeitíssima de Deus, de modo que em seu uso Ele nada faz em oposição à sua sabedoria, bondade e santidade” (François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 336). Do mesmo modo, veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 247.
[11]Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 247.
[12]Vejam-se: Stephen Charnock, The Existence and Attributes of God, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Two Volumes in one), 1996 (Reprinted), v. 2, p. 12; Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 252ss.; Agostinho, A Cidade de Deus contra os pagãos, 2.ed. Petrópolis, RJ.; São Paulo: Vozes; Federação Agostiniana Brasileira, 1990, v. 1, 5.10, p. 204-205; François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 335-336.
[13]No Catecismo Maior de Westminster(1647) temos a pergunta 14: “Como executa Deus os seus decretos?”. Responde: “Deus executa os seus decretos nas obras da criação e da providência, segundo a sua presciência infalível e o livre e imutável conselho da Sua vontade”. (Veja-se também: Agostinho, A Trindade,São Paulo: Paulus, 1994, III.4.9.
[14]Vejam-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 256; François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 329ss.
[15]“Jesus, fitando neles o olhar, disse-lhes: Isto é impossível aos homens, mas para Deus tudo é possível” (Mt 19.26). “Mas, se ele resolveu alguma coisa, quem o pode dissuadir? O que ele deseja, isso fará” (Jó 23.13).
[16] Stott (1921-2011) coloca nestes termos: “A liberdade de Deus é perfeita, no sentido de que Ele é livre para fazer absolutamente qualquer coisa que Ele queira”(John Stott, Ouça o Espírito, Ouça o Mundo,São Paulo: ABU Editora, 1997, p. 58).
[17]Veja-se: A.W. Pink, Deus é Soberano, Atibaia, SP.: Editora Fiel, 1977, p. 19,21,138.