Teologia da Evangelização (20)
2.4.3. A Soberania de Deus e de sua graça (Continuação)
Tomemos um caso específico. No Salmo 11 vemos que a vida de Davi está em perigo; os fundamentos do seu reino estão ameaçados; seus amigos aconselham-no a fugir para as montanhas onde teria melhor abrigo.
No entanto, o salmista indaga a respeito desta atitude, considerando-a inadequada (Sl 11.1-3). É possível[1] que este salmo tenha sido escrito no tempo em que Absalão preparava de forma sorrateira uma rebelião contra seu pai para tentar assumir o trono.[2]
Em princípio o conselho que fora dado não lhe era estranho. Afinal, Davi já tivera a experiência de esconder-se nos montes devido à perseguição de Saul, no entanto o texto no livro de Samuel nos diz:“Permaneceu Davi no deserto, nos lugares seguros, e ficou na região montanhosa no deserto de Zife. Saul buscava-o todos os dias, porém Deus não o entregou na sua mão”(1Sm 23.14).
Davi sabia que quem lhe protegia não eram os montes, mas, Deus. Ele tinha consciência de que não podemos substituir Deus pelos montes. É Deus quem criou e sustenta os montes. Os montes podem servir como instrumentos de proteção, no entanto, quem nos protege é Deus. Por isso, Davi rejeita o conselho de seus amigos, porque se refugia em Deus (Sl 16.1; 36.7).[3]
Davi também não apelou para uma suposta bondade sua, ou para uma pergunta retórica: “o que eu fiz para merecer isso?”, antes, tem uma perspectiva objetiva dos fatos, ainda que não se limite à percepção de seus conselheiros.
Nesta rejeição, que poderia parecer mera teimosia, há, na realidade, uma questão de princípio teológico, uma experiência de fé. A nossa fé é sempre um transpirar de nossa teologia. Posso me valer da fuga, contudo, devo entender que, o meu socorro está em Deus. É dentro desta perspectiva que devo caminhar. A sua visão teológica regia a sua percepção e, consequentemente a sua atitude.
Qual era, então, o fundamento de sua fé?
O salmista nos responde: “O SENHOR está no seu santo templo (lk’yhe) (heykal); nos céus tem o SENHOR seu trono (aSeK) (kisse)[4] os seus olhos estão atentos, as suas pálpebras sondam os filhos dos homens”(Sl 11.4).
Davi tem como um dos fundamentos de sua fé, a certeza de que Deus reina. Ele é santo e rei: “Nos céus tem o Senhor o seu trono”(Sl 11.4). O trono celestial de Deus é o seu verdadeiro templo (lk’yhe) (heykal) (Mq 1.2; Hc 2.20).[5] Seus amigos têm uma visão apenas terrena, enquanto Davi vai além da aparente onipresença desta crise, que sabe ser circunstancial. O difícil para nós é enxergar de forma confiante as circunstâncias como tais, sem permitir que o nosso coração perenize a dor em ansiedade paralisante e destrutiva.
O Reino de Deus é o reinado de Deus. O seu governo absoluto sobre todas as coisas, visíveis e invisíveis. A sua providência é exercida sobre todos os homens; nada lhe escapa.
Todo o poder é derivado de Deus. Toda autoridade tem a Deus como Autor supremo. Confiar em qualquer manifestação de poder ou autoridade fora de Deus é pura tolice. Deus é a fonte de todo o poder. Todo poder está em Deus e todo poder é preservado por Deus, fora de Deus nada nem ninguém pode autoexistir. Como autor de todas as coisas, Ele tem autoridade sobre toda a realidade e poderes.
O Deus soberano com a sua vontade perfeita tem todo o poder. O Reino e a Glória lhe pertencem eternamente. Nada lhe é acrescentado ou retirado. A sua soberana vontade é caracterizada pela perfeição: a sua vontade é perfeita (Rm 12.2) envolvendo todas as nossas necessidades.
Davi sabia quem era o seu Deus: Aquele que reina sobre todas as coisas. Por isso, não há impedimentos na concretização de suas promessas. É justamente isso que diz o anjo a Maria, surpresa, diante de sua gravidez anunciada: “Porque para Deus não haverá impossíveis em todas as suas promessas” (Lc 1.37).
Como mais um ingrediente de cautela, devemos entender que o nosso conhecimento de Deus por meio de sua revelação é um “conhecimento-de-servo” delimitado pelo próprio Senhor, considerando, inclusive, o pecado humano. Em outras palavras, resume Frame: “É um conhecimento acerca de Deus como Senhor, e um conhecimento que está sujeito a Deus como Senhor”.[6]
A revelação de Deus já de início nos mostra que somos criaturas e continuaremos assim. Conhecer a Deus não nos diviniza ou nos põe em um andar superior, como uma espécie de superstar quase divino revestido de uma áurea de santidade e infalibilidade. Para nossa angústia e frustração – por vezes tão intensa –, continuamos pecadores, com inclinações ao pecado e possíveis quedas.[7]
O nosso conhecimento nunca é autorreferente com validade própria e por iniciativa nossa.[8] Dito de outro modo: “Visto que somos seres finitos e não podemos enxergar o todo da realidade de uma vez, nossa perspectiva da realidade é necessariamente limitada por nossa finitude”, interpretam Geisler (1932-1919) e Bocchino.[9]
Poder conhecer a Deus é sempre uma iniciativa de graça divina. O nosso conhecimento é um ato de fé; e esta é procedente da graça[10] que se manifesta no fato de Deus se revelar e de nos possibilitar conhecer.
Mais: nunca somos ou seremos o padrão de verdade, antes, precisamos sempre validar o nosso pensamento na Palavra, que é a verdade (Jo 17.17). Só pensamos verdadeiramente quando pensamos à luz da Palavra. Por isso, é que conhecer a Deus é algo singular, porque somente Deus é soberano e, somente a partir dele podemos conhecê-lo. E tudo isso, por meio de Jesus Cristo, o Deus encarnado.[11] a revelação pessoal de Deus.[12]
Conhecer a Deus em sua soberania e beleza, portanto, é um dom da graça do soberano Deus. Este conhecimento, por sua vez, nos liberta para que possamos conhecer genuinamente a nós mesmos e as demais coisas da realidade, possibilitando-nos ter uma dimensão adequada de todas as coisas com as quais nos deparemos.[13]
Somente a partir de um genuíno conhecimento de Deus poderemos nos conhecer verdadeiramente bem como toda a realidade. O conhecimento de Deus possibilita-nos enxergar a realidade em suas múltiplas facetas com os seus valores próprios conferidos pelo próprio Deus que a sustenta. A verdade nos liberta (Jo 8.32) de uma visão puramente terrena ou mesmo, metafísica, para que possamos visualizar cada aspecto da realidade dentro de um referencial fornecido pelo próprio Deus que a criou.
Estudemos este ponto doutrinário de tão grande relevância, como pressuposto da evangelização.
Maringá, 17 de julho de 2022.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Cf. C.F. Keil; F. Delitzsch, Commentary on the Old Testament, Grand Rapids, MI: Eerdmans, (1871), v. 5, (I/III), (Sl 11), p. 186.
[2] Há quem pense que o contexto deste salmo é o período no qual Davi fugia de Saul (João Calvino,O Livro dos Salmos,São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 11), p. 233; F.B. Meyer, Joyas de los Salmos, 2. ed., Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1972, p. 18; Leslie S. M’Caw, Salmos: In: F. Davidson, ed., O Novo Comentário da Bíblia, São Paulo: Vida Nova, 1976 (reimpressão), p. 508; J.A. Motyer, Salmos. In: D. A. Carson, et. al., orgs. Comentário Bíblico: Vida Nova, São Paulo: Vida Nova, 2010, p. 747; Spurgeon e Simeon Cf. James M. Boice, Psalms: an expositional commentary, Grand Rapids, MI.: Baker Book House, 1994, v. 1, (Sl 11), p. 91). Se o Salmo foi escrito durante o período de Saul ou de Absalão, é uma “controvérsia perpétua” (Cf. Ernst W. Hengstenberger; John Thomson, Commentary of the Psalms, Tennessee: General Books, 2010 (Reprinted), (Sl 11), v. 1, p. 119). Por isso a indefinição: H.C. Leupold, Exposition of The Psalms, 6. impressão, Grand Rapids, MI.: Baker, 1979, p. 125. Para uma visão panorâmica das interpretações, veja-se: W.S. Plumer, Psalms, Carlisle, Pennsylvania: The Banner of Truth Trust, © 1867, 1975 (Reprinted), p. 164. Especialmente devido à construção do verso três quando Davi fala de destruir os fundamentos, inclino-me a pensar que o Salmo foi escrito quando ele já era rei de Israel, havendo, portanto, uma subversão da ordem por meio de Absalão.
[3]“Guarda-me, ó Deus, porque em ti me refugio” (Sl 16.1). “Como é preciosa, ó Deus, a tua benignidade! Por isso, os filhos dos homens se acolhem à sombra das tuas asas” (Sl 36.7).
[4]Indica a realeza, perenidade, autopoder e o justo juízo de Deus. Ele é o Senhor dos senhores. Ele, com o seu poder estável e perene, é quem estabelece ou tira o trono do rei: “Porque sustentas o meu direito e a minha causa; no trono (aSeK) (kisse) te assentas e julgas retamente” (Sl 9.4).“Mas o SENHOR permanece no seu trono (aSeK) (kisse) eternamente, trono que erigiu para julgar” (Sl 9.7) “O teu trono (aSeK) (kisse), ó Deus, é para todo o sempre; cetro de equidade é o cetro do teu rei” (Sl 45.6). “Deus reina sobre as nações; Deus se assenta no seu santo trono (aSeK) (kisse)” (Sl 47.8). “Justiça e direito são o fundamento do teu trono (aSeK) (kisse); graça e verdade te precedem” (Sl 89.14). “Desde a antiguidade, está firme o teu trono; tu és desde a eternidade” (Sl 93.2). “Nuvens e escuridão o rodeiam, justiça e juízo são a base do seu trono (aSeK) (kisse)” (Sl 97.2). “Nos céus, estabeleceu o SENHOR o seu trono (aSeK) (kisse), e o seu reino domina sobre tudo” (Sl 103.19).“Tu, SENHOR, reinas eternamente, o teu trono (aSeK) (kisse) subsiste de geração em geração” (Lm 5.19). (Veja-se: John N. Oswalt, Kisse: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 734-735).
[5] Veja-se: Leonard J. Coppes, Hêkãl: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento,São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 352-354.
[6] John M. Frame, A Doutrina do conhecimento de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 56.
[7] “A verdade mais básica da Teologia é que há um Deus e Ele não é você. (…) Portanto, não fazemos Teologia como deuses ou como seres iguais a Deus, mas como criaturas. Essa verdade tem duas consequências, ambas as quais nos chamam à humildade” (Joel R. Beeke; Paul M. Smalley, Teologia Sistemática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2020, v. 1, p. 64).
[8]A respeito de um comportamento oposto, escreveu Lloyd-Jones: “Não há maior obra-prima do diabo do que seu sucesso em persuadir as pessoas de que é seu conhecimento superior que as leva a rejeitar o cristianismo. Mas exatamente o oposto é que é verdadeiro. O diabo as mantém na ignorância porque, enquanto permanecerem nela, elas farão o que ele manda. A partir do momento em que recebem a luz – o evangelho é chamado de ‘luz’ – elas veem o diabo e o abandonam” (David Martyn Lloyd-Jones, Uma Nação sob a Ira de Deus: estudos em Isaías 5, 2. ed. Rio de Janeiro: Textus, 2004, p. 68).
[9]Norman Geisler; Peter Bocchino, Fundamentos Inabaláveis: resposta aos maiores questionamentos contemporâneos sobre a fé cristã, São Paulo: Vida Nova, 2003, p. 50. Da mesma maneira, veja-se: Vern S. Poythress, Redimindo a filosofia: uma abordagem teocêntrica às grandes questões, Brasília, DF.: Monergismo, 2019, p. 74ss. Calvino comenta a necessidade da revelação de Deus em Cristo. Argumenta: “Porque, visto que Deus é incompreensível, a fé poderia jamais alcançá-lo, a menos que ela tenha uma consideração imediata por Cristo. Além disso, há duas razões por que a fé poderia estar não em Deus, a não ser que Cristo interviesse como Mediador: primeiro, a grandeza da glória divina deve ser levada em conta e, ao mesmo tempo, a pequenez de nossa capacidade. Nossa acuidade sem dúvida está muito longe de ser capaz de subir tão alto a ponto de compreender a Deus. Daí, todo conhecimento de Deus sem Cristo é um vasto abismo que deglute imediatamente todos nossos pensamentos” (John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 22, (1Pe 1.21), p. 53).
[10] “Todo conhecimento é fé” (Gordon H. Clark, Uma visão cristã dos Homens e do Mundo, Brasília, DF.: Monergismo, 2013, p. 305).
[11] “Toda nossa luz e conhecimento consistem (…) em conhecer a Deus na pessoa de seu Filho unigênito. Com isso, digo eu, é que devemos nos contentar” (João Calvino, Sermões em Efésios, Brasília, DF.: Monergismo, 2009, p. 146-147).
[12] “A plenitude do ser de Deus é revelada nEle. Ele não apenas nos apresenta o Pai e nos revela Seu nome, mas Ele nos mostra o Pai em Si mesmo e nos dá o Pai. Cristo é a expressão de Deus e a dádiva de Deus. Ele é Deus revelado a Si mesmo e Deus compartilhado a Si mesmo, e portanto Ele é cheio de verdade e também cheio de Graça” (Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 25-26). Veja-se: Emil Brunner, Dogmática, São Paulo: Novo Século, 2004, v. 1, p. 167.
[13]Veja-se: Hermisten M.P. Costa, A Soberania de Deus e a responsabilidade humana, Goiânia, GO.: Editora Cruz, 2016.