Teologia da Evangelização (196)
5.6. Evangelizar e Ensinar são atividades inseparáveis e permanentes[1]
No início desse estudo, apresentei a seguinte definição:
Evangelizar significa confrontar os homens com as reivindicações de Cristo, decorrentes do caráter de Deus. O anúncio do Evangelho que consiste nos feitos de Deus em Cristo, incluindo sua morte e ressurreição, não é apenas uma informação para que tomemos ciência, antes, traz consigo reivindicações necessárias.
De modo complementar, podemos dizer que evangelizar significa ensinar a Palavra de Deus, usando com inteligência dos recursos de que dispomos coerentes com a mensagem que transmitimos, a fim de apresentar o Evangelho de forma compreensível.
Por isso, como vimos, Paulo argumentava, persuadia e ensinava, usando todos os seus recursos para conduzir os seus ouvintes a Cristo (At 9.29; 17.2,17; 18.4; 19.8-11,26; 24.25; 26.28; 28.23,31).
Aqui não estamos negando o que temos afirmado desde o início, que o arrependimento e fé são dons de Deus. O que queremos enfatizar neste momento, é que temos a nossa responsabilidade de apresentar o Evangelho de forma persuasiva, ensinando a Palavra.
Dentro deste ponto devemos nos lembrar, que a relação entre o “Evangelizar” e o “Ensinar” é constante em diversos textos bíblicos, sendo uma das características da pregação de Jesus e dos discípulos. Deste modo, a evangelização sempre terá um caráter educativo. Relaciono abaixo alguns textos:
Percorria Jesus toda a Galiléia, ensinando (dida/skw) nas sinagogas, pregando o evangelho (khru/sswn to\ eu)agge/lion) do reino e curando toda sorte de doenças e enfermidades entre o povo. (Mt 4.23).
E percorria Jesus todas as cidades e povoados, ensinando (dida/skw) nas sinagogas, pregando o evangelho (khru,sswn to. euvagge,lion) do reino e curando toda sorte de doenças e enfermidades. (Mt 9.35).
Aconteceu que, num daqueles dias, estando Jesus a ensinar (dida/skw) o povo no templo e a evangelizar (euvaggeli,zw). (Lc 20.1).
E todos os dias, no templo e de casa em casa, não cessavam de ensinar e de pregar Jesus, o Cristo (dida,skontej kai. euvaggelizo,menoi VIhsou/n to.n cristo,n). (At 5.42).
Paulo e Barnabé demoraram-se em Antioquia, ensinando (dida/skw) e pregando, (eu)aggeli/zomai) com muitos outros, a palavra do Senhor. (At 15.35).
Ora, tendo acabado Jesus de dar estas instruções a seus doze discípulos, partiu dali a ensinar (dida/skw) e a pregar (khru/ssw) nas cidades deles. (Mt 11.1).
Pregando (khru/ssw) o reino de Deus, e, com toda a intrepidez, sem impedimento algum, ensinava (dida/skw) as coisas referentes ao Senhor Jesus Cristo. (At 28.31).
“Prega (khru/ssw) a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repreende, exorta com toda a longanimidade e doutrina (didaxh/).(2Tm 4.2).
A nossa doutrina não é uma mera abstração; ela se relaciona com a nossa fé e modo de vida. O que cremos, por exemplo, determina aspectos de nossa mensagem e, até mesmo, de nossa aproximação, visto que a nossa abordagem deverá ser compatível com o que cremos em termos de conteúdo e método, ainda que admitindo não haver um único modelo bíblico de aproximação evangelística.
Fazendo uma pequena digressão, vimos que Calvino (1509-1564), já combatera a “fé implícita” – que era patente na teologia católica –, declarando que a nossa fé deve ser “explícita”. No entanto, ele ressalta que devido ao fato de que nem tudo foi revelado por Deus, bem como à nossa ignorância e pequenez espiritual, muito do que cremos permanecerá nesta vida de forma implícita.
Ele comenta: “Que costume é esse de professar o evangelho sem saber o que ele significa? Para os papistas, que se deixam dominar pela fé implícita, tal coisa pode ser suficiente. Mas para os cristãos não existe fé onde não haja conhecimento”.[2]
Pelas palavras de Calvino, podemos observar a necessidade latente do ensino e estudo constante da Palavra de Deus, a fim de que cada homem, sendo como é, responsável diante de Deus, tenha condições de se posicionar diante de Deus de forma consciente; a fé explícita é patenteada pela Igreja por intermédio do ensino da Palavra.[3]
Tillich (1886-1965) interpretando esse fato, diz:
Cada indivíduo deve ser capaz de confessar os próprios pecados, experimentar o significado do arrependimento, e se tornar certo de sua salvação em Cristo. Essa exigência gerava um problema no protestantismo. Significava que todas as pessoas precisavam ter o mesmo conhecimento básico das doutrinas fundamentais da fé cristã. No ensino dessas doutrinas não se emprega o mesmo método para o povo comum e para os candidatos às ordens, ou para os futuros professores de teologia, com a prática do latim e grego, da história da exegese e do pensamento cristão. Como se pode ensinar a todos? Naturalmente, apenas se tornarmos o ensino extremamente simples.[4]
Essa necessidade determina o uso cada vez mais evidente da razão, a fim de apresentar de forma mais razoável possível a doutrina, e ao mesmo tempo, de forma simples. Eis dois marcos do ensino ortodoxo: amplitude e simplicidade. O ser humano é responsável diante de Deus; ele dará contas de si mesmo ao seu Criador; portanto, tendo oportunidade, ele precisa conhecer devidamente a Palavra de Deus em toda a sua plenitude revelada.
Nesse período são compostas diversas “Confissões”, que além de visar preservar a sã doutrina, objetivavam tornar clara e objetiva a fé dos crentes. Essas declarações de fé precisavam ser, até certo ponto, completas. Entretanto, precisavam ao mesmo tempo ser simples, para que o crente comum (não iniciado nas questões teológicas) pudesse entender o que estava sendo dito. Confrontando este ensinamento com a Palavra de Deus, o crente teria, assim, uma compreensão bíblica da sua fé. Nesse contexto e, com objetivos eminentemente didáticos, surgem os catecismos (Gr. Kathxe/w = “ensinar”, “instruir”, “informar”. Cf. Lc 1.4; At 18.25; 21.21,24; Rm 2.18; 1Co 14.19; Gl 6.6.), constituídos, ainda que não exclusivamente, com perguntas e respostas. Até o século XVI, a palavra “catecismo” não tivera sido usada neste sentido.[5]
Os catecismos visavam servir para instruir as crianças e os adultos;[6] este é o motivo que contribuiu decisivamente para a proliferação de catecismos, sendo que a maioria deles jamais passou da forma manuscrita, visto que muitos pastores os elaboravam apenas para a sua congregação local, visando atender às suas necessidades doutrinárias.[7]
Retornando ao nosso ponto, nunca devemos separar a evangelização da educação cristã visto que ambas caminham juntas e se completam.
Brunner (1889-1966), enfatiza: “Não podemos pensar na Igreja Cristã sem ensino, assim como não podemos pensar num círculo sem um centro; ensino e ‘doutrina’ fazem parte de sua verdadeira natureza”.[8]
O novo nascimento não é um produto acabado, antes, o início de um novo caminho de vida modelado pelo Espírito por meio da Palavra. Assim a educação cristã é um processo natural e sobrenatural.[9]
Boice (1938-2000) toca o cerne da questão: “A obra missionária completa é anunciar o Evangelho, ganhar homens e mulheres para Cristo, trazê-los para a comunhão da igreja e, então, cuidar para que se tornem discípulos aprendendo as verdades das Escrituras”.[10]
Compete à igreja a tarefa de promover a fé dos eleitos (Tt 1.1; At 13.48): Como vimos nas palavras de Calvino, “É somente através do ministério da Igreja que Deus gera filhos para si e os educa até que atravessem a adolescência e alcancem a maturidade”.[11]
Maringá, 19 de março de 2023.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]Vejam-se: J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, p. 35-36; R.B. Kuiper, El Cuerpo Glorioso de Cristo, p. 227-233; Idem., Evangelização e Soberania de Deus, p. 49-50; John R.W. Stott, Crer é Também Pensar, São Paulo: ABU., 2. impressão, 1984, p. 45-51; John R.W. Stott, Eu Creio na Pregação, São Paulo: Editora Vida, 2003, p. 129ss.; Sidney Greidanus, O Pregador contemporâneo e o texto antigo: interpretando e pregando literatura bíblica, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 22-23. Este tópico está bem mais detalhado em meu livro: Introdução à Educação Cristã, Brasília, DF.: Monergismo, 2013.
[2]João Calvino, Gálatas, (Gl 1.2), p. 25.
[3] “A Escritura é a escola do Espírito Santo, na qual, como nada é omitido não só necessário, mas também proveitoso de conhecer-se, assim também nada é ensinado senão o que convenha saber” (João. Calvino, As Institutas, III.21.3). Para uma visão a respeito das implicações deste conceito na prática educacional protestante, ver: Hermisten Maia Pereira da Costa, Raízes da Teologia Contemporânea, São Paulo: Cultura Cristã, 2004.
[4]Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX, São Paulo: ASTE., 1986, p. 41.
[5]Cf. D.F. Wright, Catecismos: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, v. 1, p. 249.
[6]Veja-se: M. Lutero, Catecismo Maior, Prefácio, II.1-6: In: Os Catecismos, Porto Alegre; São Leopoldo, RS.: Concórdia; Sinodal, 1983, p. 391. Ver também: Alister E. McGrath, Teologia Sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005,p. 106.
[7] Daqui depreende-se que não foram somente eruditos que escreveram catecismos, mas também pastores, que estavam preocupados especificamente com a sua comunidade local (Veja-se: David. F. Wright, Catechism: Donald K. McKim, ed. Encyclopedia of the Reformed Faith, Louisville, Kentucky: Westminster; John Knox Press, 1992, p. 60).
[8]Emil Brunner, Dogmática, São Paulo: Novo Século, 2004, v. 1, p. 16.
[9]Perry G. Downs, Introdução à Educação Cristã: Ensino e Crescimento, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001, p. 64-65.
[10]James M. Boice, Fundamentos da Fé Cristã: Um manual de teologia ao alcance de todos, Rio de Janeiro: Central Gospel, 2011, p. 564.
[11]João Calvino, Gálatas,São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 4.26), p. 144.