Teologia da Evangelização (178)
5.1 Não negligenciar a manifestação profética (Continuação)
Calvino: Reverência e senso crítico
Reverência não significa mero formalismo ou a negação do exercício de uma santa análise crítica. Devemos submeter o nosso entendimento à Escritura, buscando a iluminação do Espírito, não simplesmente a ensinos que supostamente procedem das Escrituras.
Os fiéis não têm que ser deliberadamente tão estúpidos de receber tudo o que se lhes diz, senão, que, pelo contrário, examinem se a doutrina provém de Deus ou não. E por isso é que se nos manda provar os espíritos. E isto tem que ser notado cuidadosamente. (…) Deus quer que pensemos e que tenhamos a prudência para não ser enganados nem seduzidos por doutrinas falsas que as pessoas nos trazem. Como ocorrerá isso? Certamente não devemos ter a pretensão de julgar a verdade de Deus conforme nosso juízo ou imaginação, antes, o nosso raciocínio e entendimento têm que estar sujeitos a Ele, como o mostram as Escrituras. Não obstante, temos que orar a Deus que se digne em conceder-nos prudência para assim discernir se o que se nos propõe é ou não bom e reto. Além do mais, que com toda humildade não pretendamos outra coisa que ser governados por Ele, e estar sob Sua mão, com a certeza de que desta maneira seremos capazes de saber se há retidão ou não nas declarações que se nos propõem.[1]
Sobre a possível crítica aos homens de estarem julgando a doutrina de Deus, responde:
Minha resposta a esta questão é que a doutrina de Deus não está sujeita ao juízo humano, senão que a tarefa do homem é simplesmente julgar, por meio do Espírito de Deus, se é sua Palavra que está sendo declarada, ou se, usando esta como pretexto, os homens estão erroneamente exibindo o que eles mesmos engendraram.[2] Somos iluminados pelo Espírito para recebermos a verdade, mas que somos igualmente equipados com o espírito de discernimento a fim de não vivermos suspensos pela dúvida entre a verdade e a falsidade, mas para sermos capazes de decidir o que devemos evitar e o que devemos seguir.[3]
Contudo, deve ser ressaltado: “Um homem só julga corretamente e com segurança pelo prisma de seu novo nascimento e segundo a medida da graça a ele concedida – e nada mais!”.[4] Nenhum homem é senhor total da interpretação da Palavra de Deus. Portanto, Calvino dá uma palavra aos mestres: “Ninguém está isento da crítica de outrem, mas para que todos ouçam, com a condição de que seu ensino seja, ao mesmo tempo, exposto à crítica”.[5]
Em outro lugar, continua estimulando o senso santamente crítico:
Então, temos que inquirir sempre sobre a intenção do homem que fala. Porque se vemos que o fim perseguido é que Deus seja glorificado[6] e que tenha domínio sobre todos os homens, já não deve haver disputas a respeito; temos que dar-nos por totalmente satisfeitos. (…) Deste modo então, tenhamos sempre esta pedra de toque quando viermos para provar alguma doutrina. Então saberemos se é reta ou distorcida, verdadeira ou falsa, pura ou corrupta e mesclada, conforme à verdadeira retidão que Deus nos há mostrado.[7]
Esse exame criterioso do que é ensinado, deve ser feito com humildade e, em oração. Essa deve ser uma característica daquele que deseja obedecer a Deus:
Temos que examinar a doutrina, e não com orgulho, não pensando que somos suficientemente sábios por nós mesmos, senão orando a Deus, suplicando que Ele Se digne em governar-nos mediante seu Santo Espírito, para que possamos seguir a doutrina que Ele nos tem mostrado. (…) Aquele que está preparado para obedecer a Deus, nem por isso deixará de abrir seus olhos para considerar como distinguir entre o falso e o verdadeiro.[8]
Em outro lugar: “É um inestimável benefício que haja alguns que sejam experimentados em julgar, a fim de que não se permita seja a sã doutrina corrompida pelas formas enganosas de Satanás, ou seja arruinada, de uma forma ou de outra, por futilidades ridículas”.[9]
Calvino entende que “quando Deus quer que sejamos edificados nele, imediatamente levanta homens que falam de todo coração e claramente, e com efeito, lhe dá tal unção à palavra que sai de suas bocas que os homens podem reconhecer o poder de seu Espírito Santo”.[10]
Insistimos: devemos estar sinceramente atentos ao que o Espírito diz à Igreja por intermédio da Palavra, a fim de praticar os seus ensinamentos. E isto é válido tanto para quem ouve como para quem prega.
Por outro lado, aquele que prega deve ter consciência de que o púlpito não é o lugar para se exercitar as opiniões pessoais e subjetivas, mas sim, para pregar a Palavra,[11] anunciando todo o desígnio de Deus, sob a iluminação do Espírito.
Devemos ter sempre em mente que a pregação foi o meio deliberadamente escolhido por Deus para transformar pessoas e edificar o seu povo, preservando a sã doutrina por intermédio da Igreja que é o baluarte da verdade.[12]
A pregação é uma tarefa de ínterim; ela ocorre num lócus temporal: entre a realidade histórica do Cristo encarnado e a volta do Cristo glorificado e, é nesta condição que ela se realiza e se desenvolve.[13]
A Igreja prega a Palavra cumprindo assim o seu ministério ordenado pelo próprio Deus; para tanto ela se prepara da melhor forma possível, usando de todos os recursos disponíveis que se harmonizam com os princípios bíblicos, recorrendo de modo indispensável ao auxílio do Espírito na concretização de sua missão.
É o Espírito quem confere poder à pregação do Evangelho; por isso não há lugar para vanglória: “Todo o poder da ação (…) reside no Espírito mesmo, e assim, todo o louvor deve ser inteiramente atribuído a Deus somente”, instrui Calvino.[14]
O Espírito que vocaciona, revela e inspira, é o mesmo que testifica em nossos corações a respeito da autoridade bíblica e nos faz compreender a Palavra.
Comenta Calvino:
O mesmo Espírito que deu certeza a Moisés e aos profetas de sua vocação, também agora testifica aos nossos corações de que Ele tem feito uso deles como ministros através de quem somos instruídos. E assim não é de estranhar que muitos ponham em dúvida a autoridade da Escritura. Pois ainda que a majestade divina esteja exibida nela, somente aqueles que têm sido iluminados pelo Espírito possuem olhos para ver o que deveria ser óbvio a todos, mas que, na verdade, é visível somente aos eleitos. Eis o significado da primeira cláusula, a saber: que devemos à Escritura a mesma reverência devida a Deus, já que ela tem nele sua única fonte, e não existe nenhuma origem humana misturada nela.[15]
Portanto, “Se Deus nos ilumina pelo Seu Espírito Santo, nós julgaremos a doutrina e discerniremos de tal maneira que não poderemos ser enganados por nenhuma de todas as tentações de Satanás”.[16]
Em outro lugar, continua o Reformador:
Da mesma forma, “a Palavra” não pode ser separada “do Espírito”, como imaginam os fanáticos, que, desprezando a palavra, ufanam-se do nome do Espírito, e incrementam coisas, como confidenciais, em suas próprias imaginações. É o espírito de Satanás que é separado da palavra, a qual o Espírito de Deus está continuamente unido.[17]
Maringá, 20 de fevereiro de 2023.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]Juan Calvino, Autoridad y Reverencia que Debemos a la Palabra de Dios: In: Sermones Sobre Job, p. 206-207.
[2]João Calvino, Exposição de 1 Coríntios,(1Co 14.29), p. 432.
[3]João Calvino, Exposição de 1 Coríntios,(1Co 2.15), p. 94-95.
[4]João Calvino, Exposição de 1 Coríntios,(1Co 2.15), p. 95.
[5]João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 14.32), p. 434. Isto se torna mais claro na sequência do seu comentário.
[6]“Concordo que a glória de Deus deve estar, para nós, acima de nossa salvação….” (J. Calvino, As Pastorais,(Tt 1.2), p. 301). “Não busquemos nossos próprios interesses, mas antes aquilo que compraz ao Senhor e contribui para promover sua glória”. (João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, p. 30). “A glória de Deus deve resplandecer sempre e nitidamente em todos os dons com os quais porventura Deus se agrade em abençoar-nos e em adornar-nos. De sorte que podemos considerar-nos ricos e felizes nele, e em nenhuma outra fonte” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 48.3), p. 356).
[7]Juan Calvino, Autoridad y Reverencia que Debemos a la Palabra de Dios: In: Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L., 1988, p. 207.
[8] Juan Calvino, Autoridad y Reverencia que Debemos a la Palabra de Dios: In: Sermones Sobre Job, p. 212.
[9]João Calvino, Exposição de 1 Coríntios,(1Co 14.29), p. 432. “Gostaria que isso fosse levado em conta por aqueles que estão sempre com a língua bem afiada, procurando polemizar em cada questão e sofismar em torno de uma única palavra ou sílaba. Mas eles são impulsionados pela ambição, a qual, como sei de experiência pessoal com alguns deles, às vezes é uma doença quase fatal. O que o apóstolo diz acerca da subversão daqueles que ouvem é plenamente comprovado pela observação diária. É natural que em meio às contendas percamos nossa apreensão da verdade, e Satanás faz mal uso das controvérsias como pretexto para subverter e destruir nossa fé” (João Calvino, As Pastorais, (2Tm 2.14), p. 233). “Os que teimam contra a verdade procuram em cada sílaba matéria para as suas evasivas!” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.11), p. 178).
[10]Juan Calvino, Autoridad y Reverencia que Debemos a la Palabra de Dios: In: Sermones Sobre Job, p. 208.
[11] Agostinho (354-430), o grande bispo de Hipona, em sua obra De Doctrina Christiana(397-427), tomando Paulo como “modelo de eloquência” (Agostinho, A Doutrina Cristã,IV.7.15), seguiu de perto a Aristóteles e Cícero. Ele estabeleceu uma relação entre os princípios da teoria retórica com a tarefa da pregação, fazendo as adaptações necessárias (Veja-se: Por exemplo, Agostinho, A Doutrina Cristã,IV.19.35 e 37). Insistiu, também, – seguindo a Cícero –, que a pregação tem três propósitos: Instruir (docere); Agradar (delectare) e Persuadir (flectere), enfatizando este último. (Agostinho, A Doutrina Cristã,IV.12.27ss.). Agostinho, afirmou – e é este ponto que queremos destacar –, que “O pregador é o que interpreta e ensina as verdades divinas” (Agostinho, A Doutrina Cristã,São Paulo: Paulinas, 1991, IV.4.6. p. 217).
[12]Como já fizemos menção, MacArthur acentua com veemência em lugares diferentes: “…. Não ousemos menosprezar o principal instrumento de evangelismo: a proclamação direta e cristocêntrica da genuína Palavra de Deus. Aqueles que trocam a Palavra por entretenimento ou artifícios descobrirão que não possuem um meio eficaz de alcançar as pessoas com a verdade de Cristo” (John F. MacArthur Jr., Com Vergonha do Evangelho,p. 117-118). “Os que desejam colocar a dramatização, a música e outros meios mais sutis no lugar da pregação deveriam levar em conta o seguinte: Deus, intencionalmente, escolheu uma mensagem e uma metodologia que a sabedoria deste mundo considera como loucura. O termo grego traduzido por ‘loucura’ (1Co 1.21) é mõria, de onde o idioma inglês tira a sua palavra moronic (imbecil). O instrumento que Deus utiliza para realizar a salvação é, literalmente, imbecil aos olhos da sabedoria humana. Mas é a única estratégia de Deus para proclamar a mensagem” (Ibidem.,p. 130).
[13]Conforme já citamos, Hoekema observou que: “O período entre a primeira e a segunda vinda de Cristo é a era missionária por excelência. Este é o tempo da graça, um tempo em que Deus convida e insta com todos os homens para serem salvos” (A.A. Hoekema, A Bíblia e o Futuro, p. 187).
[14]John Calvin, “Commentary on the Prophet Ezekiel,” John Calvin Collection, (CD-ROM), (Albany, OR: Ages Software, 1998), (Ez 2.2), p. 96.
[15] João Calvino, As Pastorais, (2Tm 3.16), p. 262-263.
[16]Juan Calvino, Autoridad y Reverencia que Debemos a la Palabra de Dios: In: Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 17), p. 208.
[17]John Calvin, Commentary on the Book of the Prophet Isaiah, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, (Calvin’s Commentaries), 1996, v. 8/4, (Is 59.21), p. 271.