Teologia da Evangelização (147)
4.3.4.4. Libertadora
“O qual Se entregou a Si mesmo pelos nossos pecados para nos desarraigar[1]deste mundo perverso (aivw/noj ponhrou/)” (Gl 1.4).
Cristo morreu e ressuscitou para nos libertar definitivamente das garras de um mundo perverso; ou seja, dos valores deste mundo, de uma ética egoísta e terrena, onde o plano material e terreno determina toda a nossa cosmovisão e valores.
Paulo fala de uma “era má, perversa”. Aos Efésios, escreve: “Portanto, vede prudentemente como andais, não como néscios, e sim como sábios, remindo o tempo, porque os dias são maus (h`me,rai ponhrai,)” (Ef 5.15-16).
Mundo (aivw,n) (Gl 1.4) significa as transformações pelas quais o nosso tempo passa, conduzindo-o à degradação constante e inflexível. Revela também os valores transitórios da sociedade que se corrompe. Pertencer ao mundo significa ter uma visão da realidade totalmente divorciada de Deus e de sua Palavra, sendo, portanto, governado pela perspectiva e valores do mundo no qual vivemos.
No entanto, a libertação levada a efeito por Cristo não é simplesmente futura, antes, tem o seu início agora, na presente vida. O ato completo de Cristo tem implicações para sempre: Somos salvos para viver livres dos valores deste mundo até a consumação de nossa total liberdade na eternidade.
Jesus Cristo veio para nos libertar definitivamente. Ele mesmo nos diz: “Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” (Jo 8.36). “O Filho do Homem veio (…) para servir e dar a sua vida em resgate (lu/tron)[2] por muitos”(Mt 20.28).
Paulo, tendo experimentado esta libertação, escreve aos colossenses: “Ele nos libertou do império das trevas e nos transportou para o reino do Filho Seu amor”(Cl 1.13). De fato, o Evangelho é uma mensagem de libertação de um estado de total domínio, de escravidão do pecado. João registra: “Aquele que nos ama, e pelo seu sangue nos libertou dos nossos pecados”(Ap 1.5).
Analisemos agora alguns aspectos da libertação levada a efeito por Cristo:
a) Superstição:
Nesta libertação do pecado, a Escritura nos mostra que fomos salvos da superstição: “Outrora, porém, não conhecendo a Deus, servíeis a deuses que, por natureza, não o são; mas agora que conheceis a Deus ou, antes, sendo conhecidos por Deus, como estais voltando, outra vez, aos rudimentos fracos e pobres, aos quais, de novo, quereis ainda escravizar-vos? Guardais dias, e meses, e tempos, e anos” (Gl 4.8-10).(Ver: 1Co 10.23-31).
Com todo o avanço científico e tecnológico, o homem sem Cristo continua o mesmo, preso às suas crendices e superstições, sendo dominado por um medo insano; daí o seu prazer em ouvir mitos, entregando-se às fábulas (2Tm 4.3-4).[3]
O homem é pródigo na fabricação de seus deuses,[4] em geral, criados à sua imagem e semelhança. Numa pesquisa feita na Inglaterra (talvez no final da década de 80), verificou-se que “o número de adultos que leem o seu horóscopo toda semana é o dobro dos que leem a Bíblia”.[5]
As pesquisas mais recentes não são mais animadoras. Aquino, em seu instrutivo e estimulante livro, nos atualiza:
No Ocidente, em culturas cristãs ou pós-cristãs, os cristãos estão tão acostumados com a Bíblia que pouco a leem. Embora tenham a Bíblia disponível em inúmeras versões e mídias, a realidade é que poucos cristãos de fato leem a Bíblia.
Algumas pesquisas feitas nos Estados Unidos (Barna, Gallup, PewResearch, Sociedade Bíblica Americana, LifeWay Research) apontam que apenas em torno de 20% dos cristãos leem a Bíblia todos os dias, que os cristãos leem mais suas redes sociais do que a Bíblia, que a maioria dos cristãos desconhece ensinamentos básicos das Escrituras e as leem menos de uma vez por semana![6]
b) Maldição
“Cristo nos resgatou da maldição da lei”(Gl 3.13). A Lei de Deus é boa; foi-nos dada para o nosso bem. Conforme já tratamos disso mais amplamente, Ela tornou-se maldição para nós devido ao nosso pecado.
Ela reflete o nosso pecado a partir do padrão estabelecido por Deus. Ainda que ela não tenha poder de nos fazer andar dignamente – e na verdade não nos foi dada com esse propósito –, ela evidencia a distância real entre o padrão de Deus e a nossa vida.
No entanto, a Palavra demonstra que Cristo satisfez perfeitamente todas as exigências da Lei; por isso Ele pode nos libertar definitivamente do seu aspecto condenatório, nos restaurado à comunhão com Deus por meio de sua obra sacrificial, fazendo-se maldito em nosso lugar. (Rm 3.19-31).
O salmista descrevendo o homem bem-aventurado, diz: “Antes, o seu prazer está na lei do SENHOR, e na sua lei medita de dia e de noite” (Sl 1.2).
A “Lei do Senhor” refere-se a toda Escritura, não simplesmente à Lei de Moisés. Em outro lugar o salmista diz: “Com efeito, os teus testemunhos são o meu prazer (#pex’) (thaphets), são os meus conselheiros (hc'[e) (’eçah)” (Sl 119.24).
É preciso que cultivemos o hábito de meditar na Palavra e descobrir dentro de um processo de aprendizado, o prazer em cumpri-la: “Agrada-me (#pex’)(thãphêts) fazer a tua vontade, ó Deus meu; dentro do meu coração, está a tua lei“ (Sl 40.8).
O Salmista descreve a sua experiência; como a sua familiaridade prazerosa com a Palavra de Deus o preservou num momento de grande angústia: “Não fosse a tua lei ter sido o meu prazer (#pex’) (thãpêts), há muito já teria eu perecido na minha angústia” (Sl 119.92). (Vejam-se: Sl 119.16,47,77,92,111, 143,174).
Na angústia, muitos dos mitos de nosso pensamento e de nossa imaginação desaparecem. Percebemos então, para nossa tristeza – mas, para o nosso bem –, que muito do que críamos e propalávamos nada tem a dizer de relevante e significativo naquelas circunstâncias; eram pensamentos vãos, vazios de conteúdo e, por isso mesmo, irrelevantes.
Descobrimos, então, a grandeza e praticidade da Palavra. No seu conselho encontramos a disciplina educativa de Deus. As suas promessas passam a fazer sentido para nós. É como se um novo mundo se descortinasse à nossa frente.
Pela Palavra não perecemos na angústia, antes, saímos fortalecidos em nossa fé, mais confiantes no Deus da Palavra e em suas promessas.
O prazer na Palavra faz com que direcionemos nossos pensamentos e corações para ela. Ao invés de alimentarmos mágoas, ressentimentos e desejos de vingança, buscamos na Palavra, que é o nosso prazer, o suprimento para as nossas necessidades e a orientação em nossas decisões.
Portanto, quando descobrimos o prazer na Palavra de Deus, passamos mais tempo a lendo e refletindo sobre os seus ensinamentos.
Enquanto o homem sem discernimento busca conselho nos ímpios, culminando por assentar-se na companhia dos escarnecedores (Sl 1.1) – possivelmente para convalidar seus interesses e inclinações –, o homem bem-aventurado busca conselho nos mandamentos de Deus (Sl 119.24).
Os conselhos de Deus têm sentido para o tempo, em todas as circunstâncias próprias de nossa finitude, e para nos conduzir em segurança à eternidade, quando o Espírito será tudo em todos: “Tu me guias com o teu conselho (hc'[e) (‘etsãh) e depois me recebes na glória” (Sl 73.24). A Palavra de Deus é um “guia seguro para o céu”!
Retornando à nossa rota inicial, enfatizamos que Deus nos liberta para si mesmo, nos reconciliando por meio de Cristo, a fim de que sejamos salvos e libertos da ira vindoura, a manifestação do seu santo juízo condenatório. “Logo, muito mais agora, sendo justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira. Porque se nós, quando inimigos, fomos reconciliados com Deus mediante a morte do seu Filho, muito mais, estando já reconciliados, seremos salvos pela sua vida”(Rm 5.9,10).
A graça não pode nem deve ser banalizada. Fomos libertos para uma vida de justiça: “Carregando Ele mesmo em seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados, para que nós, mortos aos pecados, vivamos para a justiça”(1Pe 2.24).
O anúncio do Evangelho envolve a Lei visto que o Evangelho engloba essencialmente a necessidade urgente que temos de salvação e da reconciliação efetuada por Deus mesmo por meio de Cristo a fim de encontramos nele a remissão de nossos pecados.[7]
Maringá, 15 de janeiro de 2023.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] A palavra “pressupõe que aqueles que são alcançados por seus benefícios estão correndo grande perigo, do qual são incapazes de livrar-se” (W. Hendriksen, Gálatas, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 55).
[2]Preço pago para libertar um escravo.
[3]Veja-se: João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998 (Tt 1.14), p. 320.
[4] “É propriedade da fé pôr diante de nós aquele conhecimento de Deus não confuso, mas distinto, o qual não nos deixa em suspenso e à deriva, como o fazem as superstições e seus adeptos, os quais, bem o sabemos, estão sempre introduzindo alguma nova divindade, todas falsas e intermináveis” (J. Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 48.14), p. 368). O historiador Braudel está correto em sua percepção: “A superstição popular é sempre capaz de minar, de comprometer a vida religiosa por dentro, deformando as próprias bases da fé. Tudo, então, deve ser refeito” (Fernand Braudel, Gramática das Civilizações, 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 312).
[5]John Stott, Ouça o Espírito, Ouça o Mundo,p. 56.
[6]João Paulo Thomaz de Aquino, Entenda a Bíblia, São Paulo: Cultura Cristã, 2022, p. 3.
[7]Veja-se: Karl Barth, Esboço de uma Dogmática, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 22.