Teologia da Evangelização (135)
4.3.3.2. A Mente Cativa: A Palavra de outro “senhor”
Na quinta-feira de 18 de abril de 1521, Lutero (1483-1546) na Dieta de Worms, diante do Imperador, dos príncipes e de clérigos é interrogado sobre a sua fé que tanta balburdia estaria causando à igreja romana, especialmente na Alemanha. Era um momento crítico.
A pressão era para que Lutero se retratasse quanto à sua fé. Ele argumenta em tons respeitosos e com firmeza. A certa altura, na conclusão de sua breve exposição, declara: “… estou vencido pelas Escrituras por mim aduzidas e minha consciência está presa nas palavras de Deus – não posso nem quero retratar-me de nada, porque agir contra a consciência não é prudente nem íntegro”.[1]
Lutero, confiante na autoridade suficiente das Escrituras declara que a sua mente é totalmente cativa da Palavra de Deus e, por isso, não pode nem sequer cogitar de pensar de forma contrária. De fato, a autonomia cristã consiste numa total submissão à Palavra.
McGrath está correto ao afirmar:
Permitir que novas ideias e valores tornem-se controlados por qualquer coisa ou pessoa que não a autorrevelação de Deus na Escritura é adotar uma ideologia, em vez de uma teologia; é tornar-nos controlados por ideias e valores cujas origens se acham fora da tradição cristã – e potencialmente tornar-nos escravizados por eles.[2]
Uma das prisões mais sutis com a qual nos deparamos e, com frequência, sem perceber nela estamos, é a prisão de nossa mente: uma forma direcionada de pensar, cativa de determinados valores com os quais somos bombardeados diariamente e fortalecidos pelo próprio meio em que vivemos, sem que tenhamos necessariamente um filtro adequado para selecionar de modo crítico o que vemos e ouvimos.
Assim, sem que nos demos conta, estamos assimilando valores que nos aprisionam, tornando-nos “escravos” de uma maneira de pensar e, consequentemente, de agir. Determinando, portanto, o nosso modo de ver a realidade, nos relacionar, criar nossos filhos, tratar nossos irmãos, trabalhar, estudar, nos divertir e, no nosso caso específico, de ler, aplicar e expor ou não a Palavra.
Deste modo, sem que percebamos, temos, em nome da liberdade de pensamento, uma mente estruturalmente cativa.
Lloyd-Jones coloca a questão nestes termos:
A maior tirania que temos que enfrentar nesta vida é a perspectiva mundana. Ela se insinua em nosso pensamento em toda parte, e nós a recebemos imediatamente após nascermos.[3] (…) O mundo tende a controlar o nosso pensamento, a nossa perspectiva e a nossa mentalidade.[4]
Paulo escrevendo a segunda epístola aos Coríntios trabalha com um conflito evidente de “senhorio”: quem é o Senhor de nossa mente e de nossa vida? Quais são os valores que priorizamos? A maneira como encaramos a realidade, por si só já não nos diz a quem servimos e o quadro teórico que nos circunda?
Diante das acusações dos falsos mestres que estavam influenciando a igreja de Corinto, escreve:
Porque, embora andando na carne, não militamos segundo a carne. Porque as armas da nossa milícia não são carnais, e sim poderosas em Deus, para destruir fortalezas, anulando nós sofismas e toda altivez que se levante contra o conhecimento de Deus, e levando cativo todo pensamento à obediência de Cristo. (2Co 10.3-5).
Paulo era um mestre da Lei, um erudito que conhecia bem a literatura judaica e grega, expressando-se de modo fluente em grego, hebraico e possivelmente em latim. Aqui estava um homem que dispunha de grandes recursos para se gloriar no seu saber e recursos, no entanto, “Cristo é a autoridade mais sublime sobre a razão humana”.[5]
Por isso mesmo, Paulo argumenta que mesmo vivendo neste mundo com as limitações próprias – “andando na carne” (2Co 10.3) – as suas armas não são carnais, antes são espirituais; o seu ministério não é caracterizado por ausência de recursos espirituais, antes, todo ele é realizado no poder de Deus. As suas armas – que tem como fundamento a Palavra de Deus (Ef 6.17)[6] – são poderosas em Deus para destruir fortalezas anulando sofismas.
Beasley-Murray (1916-2000) interpreta:
Armas carnais não precisam ser más, mas incluem as que consistem de poder humano, tais como eloquência, organização, propaganda e coisas semelhantes, que são, por si mesmas, neutras, mas que podem ser usadas para o mal, por serem subservientes ao egoísmo, artimanhas e violência caracteristicamente humanas.[7]
No Éden, Satanás pensou por Eva e Eva, como não se deteve na Palavra de Deus, posteriormente, pensou pensar por si, mas refletiu o pensamento de Satanás que pensa e age de modo contrário a Deus.
Conforme vimos, Paulo fala dos “desígnios” de Satanás(2Co 2.11), indicando a ideia de que ele tem metas definidas, estratégias elaboradas, um programa de ação com variedades de técnicas e opções a serem aplicadas conforme as circunstâncias,[8] a quem quer seduzir, e o que tem em vista: “O deus deste século cegou os entendimentos (no/hma) dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo, o qual é a imagem de Deus” (2Co 4.4).
Satanás “fará qualquer coisa para conseguir vantagem sobre nós, diz o apóstolo, fará qualquer coisa para derrubar-nos, para fazer-nos parecer ridículos e para pôr em desgraça o nome de Deus”, aplica Lloyd-Jones.[9]
Ele emprega toda a sua “energia” para realizar os seus propósitos (At 13.10).[10]
De fato, satanás tenta diante de nossos olhos, desconstruir o mundo de Deus, fazendo uma inversão de valores, revertendo o mal em bem e vice-versa. Ele é um ótimo marqueteiro, se propondo a vender o mundo forjado por ele – sem lei, princípios ou normas: totalmente depravado –, como o melhor, mais moderno, livre e eficaz.
Por sua vez, o mundo de Deus com suas leis e princípios é descrito e, por fim, percebido como anormal, estranho, desatualizado e alienante. A sua proposta é apresentada como o caminho para o sucesso e a visibilidade.[11]
Satanás age contra nós como um brilhante estrategista, buscando a melhor tática para nos vencer. “A astúcia é a grande característica do diabo”, conclui Lloyd-Jones.[12]
Na realidade, é possível – e creio que conhecemos bem isso – criar uma atmosfera contrária à fé cristã, uma má vontade para com a verdade, uma estrutura de pensamento totalmente secularizada onde não há lugar para Deus, valores e conceitos transcendentes e objetivos.
Maringá, 06 de janeiro de 2022.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Martinho Lutero, Discurso do Dr. Martinho Lutero Perante o Imperador Carlos e os Príncipes na Assembleia de Worms – Quinta-feira depois de Misericordias Domini. In: Martinho Lutero: Obras Selecionadas,São Leopoldo, RS.; Porto Alegre, RS.: Sinodal; Concórdia, 1996, v. 6, p. 126.
[2]Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 53.
[3] “A menos que Deus mude a maneira de pensarmos – o que Ele faz em alguns pelo milagre do novo nascimento – nossas mentes sempre nos dirão para nos virarmos contra Deus – o que é precisamente o que fazemos” (James M. Boice, O evangelho da Graça, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 111).
[4]D. M. Lloyd-Jones, Seguros Mesmo no Mundo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2005 (Certeza Espiritual: v. 2), p. 28 e 29. “A pior consequência da Queda foi que os homens e as mulheres se tornaram escravos do diabo, do mal e do pecado; portanto, todos nós nascemos escravos” (D. Martyn Lloyd-Jones, Romanos: Exposição sobre Capítulo 12 – O comportamento cristão, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2003, p. 57).
[5]W. Mundle, Ouvir: In: Colin Brown, ed. ger., O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 3, p. 369.
[6] “Tomai também o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a palavra de Deus” (Ef 6.17).
[7] G.R. Beasley-Murray, 2 Coríntios:In: Clifton J. Allen, ed. ger. Comentário Bíblico Broadman,Rio de Janeiro: JUERP., 1985, v. 11, p. 84.
[8] “Satanás não tem propósitos construtivos; suas táticas são simplesmente para contrariar a Deus e destruir os homens” (J.I. Packer, Vocábulos de Deus,São José dos Campos, SP.: Fiel, 1994, p. 82-83).
[9]D. M. Lloyd-Jones, O Combate Cristão, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1991, p. 90.
[10]“Ó filho do diabo, cheio de todo o engano e de toda a malícia, inimigo de toda a justiça, não cessarás de perverter os retos caminhos do Senhor?” (At 13.10). “Satanás aplica toda sua energia pra tirar qualquer coisa de Cristo” (João Calvino, O evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 1.3), p. 35). “Satanás não tem propósitos construtivos; suas táticas são simplesmente para contrariar a Deus e destruir os homens” (J.I. Packer, Vocábulos de Deus,São José dos Campos, SP.: Fiel, 1994, p. 82-83).
[11] Veja-se: P. Andrew Sandlin, Deus decide o que é normal, Brasília, DF.: Monergismo, 2021, p. 9-11. (Edição do Kindle).
[12] D.M. Lloyd-Jones, O Combate Cristão, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1991, p. 75.