Teologia da Evangelização (101)
3.3. As marcas da Igreja (Continuação)
A verdade é sempre crucial e fundamental
A verdade é sempre crucial. O Cristianismo não se sustenta amparado em aparências, circunstâncias e ambiguidades, antes, ele proclama a verdade e se dispõe a ser examinado à luz da verdade. Apesar de muito barulho e pretensões humanas, nós não criamos nem inventamos a verdade.[1] A verdade antecede e independe de nossa percepção e mesmo, da igreja. Apenas, pela graça a descobrimos, redirecionamos a nossa vida e a proclamamos.[2]
Portanto, ou a sua mensagem é verdadeira, ou não há mensagem relevante a ser proclamada. “Como sempre, verdade é a questão essencial. Onde uma noção clara da verdade está ausente, o cristianismo torna-se mais uma atitude do que um sistema de crenças. Contudo a crença sempre pressupõe uma verdade que pode e deve ser conhecida”, conclui Mohler.[3]
O fato é que muitos se intitulam pertencerem à verdade Igreja de Cristo. O problema é: como identificá-la? Quem estabelece o critério? Há autoridade suficiente naquele que formula tais princípios para identificá-la visivelmente?[4]
Estas questões pressupõem a existência de variadas supostas igrejas que alegam ser o verdadeiro Corpo de Cristo. Porém, Cristo não está dilacerado. Ele só tem um corpo. Como conciliar tais questões de forma bíblica com grupos que, por vezes, professam uma fé excludente?
A necessidade de definição
Em uma entrevista concedida em 1991, o físico e filósofo Thomas Kuhn (1922-1996) queixando-se do uso excessivo e inadequado da expressão “paradigma”, que marca o seu livro A Estrutura das Revoluções Científicas, admite que no livro não definira “paradigma” tão rigorosamente como deveria”.[5]
Definir, segundo o sentido etimológico[6] é delimitar. A definição procura determinar a compreensão da ideia,[7] circunscrevendo a sua abrangência, indicando todos os seus elementos constitutivos. Como todo conceito possui um conteúdo, a definição nada mais é do que a determinação da natureza deste conteúdo.[8]
A definição deve partir da observação definido, não de uma interposição arbitrária de nomes e qualidades que julgamos serem compatíveis ou sugestivos. Agostinho nos orienta quanto a isto: “A ciência da definição, da divisão e da classificação, ainda que seja empregada muitas vezes para coisas falsas, não é por si só falsa; nem foi instituída pelos homens, mas descoberta pela própria razão das coisas”.[9]
Aristóteles (384-322 a.C.), compreendia a definição como consistindo “no gênero e nas diferenças; e se, por outro lado, não é um desses termos, evidentemente, será um acidente”.[10]
Do ponto de vista lógico, a ideia é igual a sua definição. A definição lógica consiste de fato em delimitar exatamente a compreensão de um objeto, ou, em outros termos, em dizer o que uma coisa é. Daí o princípio: “A definição é a noção (ideia) desenvolvida e (…) a noção é a definição condensada”.[11]
Os Credos como norte teológico da igreja
Os Credos da igreja, além de outras funções, serviam como ensino proposicional a respeito da fé cristã, ao mesmo tempo que combatiam ênfases ou ensinamentos essencialmente errados,[12] resguardando assim a Igreja, de ensinamentos heréticos[13] e concediam uma certa uniformidade de fé nos convertidos.[14]
No segundo século eles eram conhecidos como “regra de fé”. Os candidatos à Profissão de Fé estudavam a “doutrina” a fim de que pudessem, na ocasião própria, declarar publicamente a sua fé de forma responsiva.
Os Credos também tiveram outra utilidade: Devido ao medo da perseguição, ao invés deles serem escritos, eram memorizados[15] e quando necessário, recitados como testemunho de sua fé. Desta forma, os credos, assumiram papel fundamental na vida dos fiéis que têm a sua fé alimentada e fortalecida na declaração da promessa na qual ele crê. Deste modo, a promessa é a mesma, a fé tem o mesmo fundamento, contudo, em situações diversas assumem contornos mais contundentes e relevantes.
Foi com o surgimento das heresias que se tornou necessário estabelecer”um padrão de verdade ao qual a igreja deve corresponder”,[16] sendo os Credos uma resposta da Igreja à situação de ameaça à teologia considerada bíblica.
Com o passar do tempo, os credos como declarações teológicas, foram se tornando mais detalhados. Isto por três motivos:
1) Devido à reflexão e compreensão mais aprimorada das doutrinas bíblicas;
2) Considerando o intenso crescimento da igreja (séc. III), instruir os neófitos para que estes não fossem facilmente conduzidos pelas heresias;[17]
3) Devido à necessidade de, mediante o ensino cristão, combater as heresias que surgiam, de forma cada vez mais intensa, com novas interpretações e questionamentos, marcadamente, relacionados com a pessoa de Cristo.[18] Desta forma as declarações de fé além de reafirmarem as anteriores, foram sendo ampliadas e aprofundadas em suas respostas.
Neste contexto, são realizados os grandes Concílios da Igreja com as suas famosas e necessárias declarações de fé que se tornaram paradigmáticas para a fé cristã.
Por exemplo, conforme já mencionamos, o Quarto Concílio Ecumênico, realizado em Calcedônia (8-31/10/451) ratificou o Credo de Nicéia (325) e o de Constantinopla (381).[19]
O seu objetivo era estabelecer uma unidade teológica na Igreja. Mesmo tendo como preocupação dominante as questões referentes ao Filho, encontramos na sua declaração termos que se tornaram padrão dentro da teologia para se referirem à Trindade.
Aplicando o que vimos à necessidade de identificar a verdadeira igreja de Cristo, vemos tal disposição de forma clara na obra Commonitorium, de Vicente de Lérins († 450 AD), escrita em 434. O autor, revelando a sua preocupação e, ao mesmo tempo, a sua metodologia:
Eis por que dediquei, constantemente, meus maiores desvelos e minhas diligências a investigar, entre o maior número possível de homens eminentes em saber e santidade, a maneira de achar uma norma de princípios fixos e, se possível, gerais e orientadores, para distinguir a verdadeira fé católica das degradantes corruptelas da heresia….[20]
A resposta encontrada por Léris foi que os fiéis devem adornar a sua fé com a Lei e a tradição da igreja católica.
Surgem, então, as questões:
Onde buscar a fonte da autoridade para identificar a genuína Igreja?
Na própria Igreja?
Na tradição da Igreja?
Para que isso fosse possível, seria necessário que a Igreja tivesse a sua autoridade autogerada ou delegada por quem de direito. Neste caso, pelo próprio Senhor Jesus Cristo. Portanto, se assim fosse, a igreja apenas indicaria as suas “virtudes” distintivas. Neste caso ela estaria no mesmo nível ou, acima da Palavra. Biblicamente nenhuma das opções se mantêm.
Maringá, 07 de outubro de 2022.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] “Não se pode construir a verdade de jeito nenhum; só se pode descobrir a verdade. E quanto mais ruidosamente as pessoas de opinião intervêm com suas contribuições menos provável é descobri-la” (Harry Blamires, A Mente Cristã: como um cristão deve pensar? São Paulo: Shedd Publicações, 2006, p. 113).
[2] “Para se viver com significado, é necessário descobrir a verdade, descobrir a realidade; uma vez descoberta, temos de viver em fidelidade para com a verdade. A integridade e a busca da verdade andam de mãos dadas” (Charles Colson; Harold Fickett, Uma boa vida, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 174).
[3]Albert Mohler, O Desaparecimento de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 11-12.
[4] Veja-se: François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 3, p. 17ss.
[5]John Horgan, O Fim da Ciência: uma discussão sobre os limites do conhecimento Científico, 3. reimpressão, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 64. De fato, Allen e Springsted analisando aspectos da obra de Kuhn, dizem: “Seu uso de ‘paradigma’ é bastante vago” (Diogenes Allen; Eric O. Springsted, Filosofia para Entender Teologia. 3. ed. Santo André, SP.; São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2010, p. 322).
[6]As palavras gregas correspondentes são: o(/roj = “termo”, “limite” e o(rismo/j = “delimitação”, “acordo”, “tratado”.
[7] É a “expansão do conceito essencial das coisas”. “Definição é uma oração que manifesta a natureza de uma coisa ou de um termo” (Ernesto Dann Obregón, Lógica, 4. ed. Santa Fé: Libreria y Editorial Castellví, (1951), p. 89 e 90.
[8]Saucy, esclarecendo por que não podemos apresentar uma “definição rigorosa da ideia de Deus”, lança luz sobre o conceito de definição: “Definir, que significa limitar, envolve a inclusão do objeto dentro de certa classe ou proposição universal conhecida e a indicação dos seus aspectos distintivos comparados com outros objetos daquela mesma classe” (R.L. Saucy, Doutrina de Deus: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã,São Paulo: Vida Nova, 1988-1990, v. 1, p. 440).
[9] Santo Agostinho, A Doutrina Cristã, São Paulo: Paulinas, 1991, II.36 p. 143.
[10] Aristóteles, Tópicos, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 4), 1973, I.8. p. 17.
[11] L. Liard, Lógica, 9. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979, p. 25.
[12] Vejam-se: At. 2.42; Rm 6.17; Ef 4.5; Fp 2.16; Cl 2.7; 2Ts 2.15; 1Tm 4.6,16; 6.20; 2Tm 1.13,14; 4.3; Tt 1.9, entre outros.
[13]Veja-se: Mark A. Noll, Momentos Decisivos na História do Cristianismo, p. 45-49.
[14]Veja-se: Alister E. McGrath, Teologia Histórica: uma introdução à história do Pensamento Cristão, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 45;
[15]Ambrósio de Milão (c. 334-397) escreveu: “Os santos apóstolos juntos fizeram um resumo da fé, a fim de que pudéssemos compreender brevemente o elenco de toda a nossa fé. A brevidade é necessária, para que ela seja sempre mantida na memória e na lembrança” (Ambrósio, Explicação do Símbolo, São Paulo: Paulus, 1996, 2. p. 23).
[16] Louis Berkhof, Teologia Sistemática,Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990, p. 579.
[17] Cf. J.N.D. Kelly, Primitivos Credos Cristianos, Salamanca: Secretariado Trinitario, 1980, p. 125.
[18] “A cristologia, como a maioria das doutrinas do Novo Testamento, foi retirada da bigorna da necessidade quando a igreja entrou em conflito com os ensinos errôneos” (Broadus D. Hale, Introdução ao Estudo do Novo Testamento, Rio de Janeiro: JUERP., 1983, p. 299). Quanto às principais heresias dos primeiros séculos concernentes à Pessoa de Cristo, Veja-se: Hermisten M.P. Costa, Eu Creio, São Paulo: Parakletos, 2002).
[19] “Assim, o Concílio de Nicéia (325) garantiu a verdade de que Jesus é verdadeiro Deus, enquanto o Concílio de Constantinopla (381) garantiu que Jesus é verdadeiro homem. Em seguida, o Concílio de Éfeso (431) garantiu que, apesar de Deus e homem, Jesus é só uma pessoa, enquanto o Concílio de Calcedônia (451) garantiu que, apesar de uma única pessoa, ele tinha duas naturezas, divina e humana” (John Stott, O Incomparável Cristo, São Paulo: ABU., 2006, p. 83).
[20] Vicente de Lérins, Commonitorium, II.4. In: Philip Schaff; Henry Wace, eds. A Select Library of Nicene And Post-Nicene Fathers of The Christian Church, (Second Series), Grand Rapids, Michigan: Wm. Eerdmans Publishing House Co., 1978, v. 11, p. 132. Enquanto terminava estas anotações chegou-me às mãos a obra de Lérins que descobri esses dias que já estava traduzida para português há muitos anos: São Vicente de Lérins, Comonitório: regras para conhecer a fé verdadeira, Niterói, RJ.: Editora Permanência, 2009. (O texto por mim traduzido citado acima, na edição em português está na página 16).