Saber ouvir, uma virtude teológica (1)
“Por isso, também eu, tendo ouvido” (Ef 1.15).
Na Carta aos Efésios, o Apóstolo Paulo, após descrever em forma doxológica aspectos dos grandes feitos de Deus de eternidade à eternidade, tendo como ponto fundamental a sua graça abençoadora que nos elege, redime, adota e sela (Ef 1.3-14), agora, volta-se à igreja como alvo de sua intercessão a Deus (Ef 1.15-23). Como sumariou Stott (1921-2011): “Primeiro, bendiz a Deus por nos ter abençoado em Cristo; depois, ora pedindo que Deus abra nossos olhos para entendermos plenamente esta bênção” (John R.W. Stott, A Mensagem de Efésios, São Paulo: ABU Editora, 1986, p. 29).
O “por isso” (dia\ tou=to) (Ef 1.15), certamente refere-se à toda doxologia (Ef 1.3-14). Paulo começa então destacando a fé e o amor dos efésios que têm sido motivo de testemunho entre as igrejas. Paulo ouviu a respeito (Ef 1.15). Ele era grato a Deus por isso. O último contato de Paulo com a igreja de Éfeso havia uns 5 anos. Muitas pessoas novas chegaram à igreja. Os falsos ensinamentos também se disseminavam aqui e ali. Saber que aqueles irmãos perseveram íntegros em sua fé e amor era uma grata notícia.
Mesmo preso, ele tem ouvido a respeito de tão viva fé depositada no Senhor Jesus como também o amor para com todos os santos.
Aqui, aprendemos de início algo a respeito da vida cristã. Como é bom divulgar as boas notícias, aprender com os nossos irmãos e compartilhar a respeito. As pessoas ficaram bem impressionadas com o testemunho dos efésios e falavam a respeito.
Paulo ouviu e agiu. O que ouvimos? Como ouvimos? O que fazemos quando ouvimos? O que ouvimos por um ouvido pode simplesmente sair por outro, conforme se diz popularmente, sem processar o que ouvimos? A Escritura nos fala sobre a importância de saber ouvir. Analisemos isso começando pelo próprio Deus.
1. Deus, o Ouvinte interessado
Em 336 a.C., Ctesifonte, cidadão ateniense, propôs, possivelmente de forma ilegal, que o povo de Atenas concedesse uma coroa de ouro ao orador Demóstenes pelos seus serviços prestados à pátria no período crítico da imposição macedônia. Ésquines, no entanto, partidário de outro grupo político, é contrário a tal premiação, argumentando de forma contundente. O processo se arrastou por seis anos. O debate público seria inevitável. Após o discurso de Ésquines, Demóstenes (c. 384-322 a.C.) apresentou a sua defesa, reconhecendo a dificuldade, visto falar em causa própria. Assim, temos a origem da obra A Oração da Coroa. Já no segundo parágrafo de seu discurso, o hábil orador deseja ter dos seus ouvintes, “ouvidos benignos” para com a sua fala (Demóstenes, A Oração da Coroa, Rio de Janeiro: Edições de Ouro, (s.d.), p. 19).
Ele foi coroado. Obter ouvidos benignos nem sempre é uma tarefa fácil e simples. Em certa ocasião fui surpreendido por um taxista que durante um percurso de meia hora falou-me com entusiasmo de determinado personagem de sua cidade no Piauí que foi muito marcante em sua formação. Confesso que o narrador era bastante eloquente. O personagem descrito me causou uma sincera admiração pelos seus princípios éticos. No entanto, o mais surpreendente estava por vir. Ao final da corrida, como era uma conta com centavos, pedi que arredondasse para cima. Ele gentilmente, além de não fazer isso, deu-me o equivalente a um desconto de quase 10%, me agradecendo alegremente por eu, sendo professor (dedução dele por ter embarcado em seu carro em uma das ruas de frente do Instituto Presbiteriano Mackenzie e estar de terno) tê-lo ouvido. Confesso que o fiz com alegria e aprendizado.1
O apóstolo Paulo, antes de ser um escritor profícuo, era um ouvinte interessado. Como sabemos, saber ouvir é mais do que simplesmente ficar calado. Paulo sabia ouvir, analisar o que ouviu e agir. Sabemos que, por vezes, é muito difícil ouvir àqueles que aparentemente, em parte pelo nosso preconceito, nada nos tem a acrescentar. Em Eclesiastes lemos esta constatação: “Melhor é a sabedoria do que a força, ainda que a sabedoria do pobre é desprezada, e as suas palavras não são ouvidas” (Ec 9.16). Por sua vez, continua Salomão: “As palavras dos sábios, ouvidas em silêncio, valem mais do que os gritos de quem governa entre tolos” (Ec 9.17).
Dentro de outra perspectiva, notamos biblicamente que os salmistas, entre tantos outros servos de Deus, em suas angústias, diversas vezes se alimentavam na certeza de que Deus ouve as suas orações.
Dentro de outra perspectiva, notamos biblicamente que os salmistas, entre tantos outros servos de Deus, em suas angústias, diversas vezes se alimentavam na certeza de que Deus ouve as suas orações. “Tens ouvido ([m;v’) (shama),2 SENHOR, o desejo dos humildes; tu lhes fortalecerás o coração e lhes acudirás” (Sl 10.17), expressa o salmista de modo confiante a sua fé.
Ainda que sejamos tentados em nossa precipitação a achar que Ele está distante ou muito ocupado, Deus sempre ouve com atenção as nossas súplicas. É o que demonstra Davi em outro salmo: “Eu disse na minha pressa: estou excluído da tua presença. Não obstante, ouviste ([m;v’) (shama) a minha súplice voz, quando clamei por teu socorro. (Sl 31.22).
Novamente: “8Apartai-vos de mim, todos os que praticais a iniquidade, porque o SENHOR ouviu a voz do meu lamento; 9 o SENHOR ouviu a minha súplica; o SENHOR acolhe a minha oração” (Sl 6.8-9). Diferentemente dos ídolos (Sl 115.6; 135.17), Deus ouve a nossa oração. A palavra hebraica quando se refere a Deus como aquele que ouve, tem o sentido de ouvir e responder.
Deus nos ouve até mesmo quando estamos sofrendo devido à nossa desobediência. Ele é misericordioso. Certamente uma das narrativas mais marcantes sobre este assunto é a do profeta Jonas desesperado no ventre do peixe: “Então, Jonas, do ventre do peixe, orou ao SENHOR, seu Deus,2 e disse: Na minha angústia, clamei ao SENHOR, e ele me respondeu; do ventre do abismo, gritei, e tu me ouviste a voz” (Jn 2.1-2).
Devemos aprender a confiar em Deus, expor-lhe em oração as nossas angústias (Sl 18.6) e aguardar com fé a sua resposta: “De manhã, SENHOR, ouves a minha voz; de manhã te apresento a minha oração e fico esperando” (Sl 5.3). Ele entende as nossas necessidades e nos responde em Sua misericórdia (Sl 4.1,3; 22.24; 27.7; 28.2,6; 34.6,17; 39.12; 40.1; 54.2; 55.17; 61.1; 116.1; 119.149; 130.2 143.1; 145.19). Não tenhamos a pretensão de estabelecer para Deus o caminho da justiça. Exponhamos a Deus as nossas carências e aguardemos a sua resposta. Deus nos ouve. Ele jamais está “atarefado” demais que não nos possa ouvir. Amparados nesta certeza, exercitemos este privilégio com intensidade e, descansemos em Deus. Ele nos responderá. Talvez, em muitos casos, já em nossa história presente, terá até mesmo nos respondido (Is 65.24).
Deus nos deu a sua Palavra e também, nos concedeu seus ouvidos para que possamos falar com Ele. Como Pai, nos escuta atentamente quando nos dirigimos a Ele com fé e, até mesmo, por vezes, em nossos desatinos e confusões espirituais.
2. Paulo: saber ouvir e agir
Entre tantas outras virtudes, algo admirável em Salomão é a sua capacidade de ouvir. O mesmo rei que ouviu com atenção as inquietantes perguntas da rica rainha de Sabá, apresentando respostas que a deixaram “sem ar” (1Rs 10.1-7), ouviu também aquelas duas prostitutas que tinham uma questão certamente mais grave: a vida ou morte de um filho (1Rs 3.16-28). A sabedoria que Deus lhe concedeu foi socializada nas questões cotidianas (1Rs 10.4-8) e excepcionais de seu reinado
Em muitas ocasiões em que o apóstolo Paulo ouviu algo a respeito de seus irmãos, ele estava preso, aparentemente pouco ou nada podendo fazer. Tinha os seus próprios, intensos e graves problemas que envolviam enfermidades e mesmo a sua condenação iminente, que poderia significar a morte. Como é difícil nos sentir, como se diz, “com as mãos atadas”, sem capacidade de agir eficazmente na solução do problema e, mesmo assim, manter sincero interesse pelos problemas alheios. Talvez, muitos de nós já tenhamos nos sentido assim: grave enfermidade de um ente querido; total falta de recursos, distância geográfica, impedimentos dos mais variados.
No caso do apóstolo, percebemos que muito de suas cartas tem a ver com o que ouviu, avaliou, interpretou e, sob a direção do Espírito, orou e escreveu. No próximo post ilustraremos com alguns exemplos.
São Paulo, 28 de novembro de 2018.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
1Não pense que esta prática seja rotineira. Certa ocasião, um tanto constrangido, ao embarcar no taxi no ponto oficial do aeroporto, não tendo opção (passava das 20 horas de sábado; poucos voos saem esta hora, logo, é difícil ter um taxi desembarcando passageiro), me desculpei com o taxista por minha corrida ser curta. Ele, curto e grosso demonstrou verbalmente que eu deveria apenas dizer o local para onde deveria me conduzir e pronto… Também não me foi oferecido nenhum desconto.
2 A palavra quando se refere a Deus como aquele que ouve, tem o sentido de ouvir e responder.
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Saber ouvir não é uma questão de educação somente, é poder ajudar àqueles que nos falam após as suas falas, e ajudar a nós mesmo, primeiro, a exercer o auto controle, segundo, não somos os donos da verdade e terceiro, cria-se um laço de amizade entre nós e o comunicador.