Rei e Pastor: O Senhor na visão e vivência dos salmistas (45)
D. Juízo universal
Um recurso de retórica muito comum, ainda que indesejável, é incluir o “nós” onde só se tem certeza do “eu”.
Assim, falamos em nome de pessoas que não nos autorizaram a representá-las em nossa fala e, também, não temos autoridade para isso, exceto a concedida pelo nosso despropositado e pretensioso eu.
Outra forma ideológica discursiva é a generalização indevida como estratégia para conferir força ao argumento.
Assim, falamos: “Hoje ninguém mais pensa dessa forma”; “Todos sabemos”; “Pesquisas têm demonstrado”; “A ciência já provou”, esse ou aquele pensamento “está totalmente ultrapassado” etc.
Saindo dessas construções ideológicas, podemos retornar às Escrituras.
Senhor que governa
As Escrituras declaram com insistência que Deus é Rei. O fato é que como Deus é o Senhor Criador de todas as coisas (Rei), também governa sobre todo o universo (Reina). Não há aqui generalizações, presunção ou hipérboles.
Deste modo, a manifestação do seu juízo será sobre todos os povos. Ninguém será julgado simplesmente pelos padrões da sua cultura. Aqui não há nenhum tipo de relativismo[1] e subjetivismo.[2] A Lei de Deus permanece extensiva e permanentemente: sobre todos os povos e para sempre.
Boice (1938-2000) resume:
Quando perguntamos o que é certo, o que é moral, respondemos à questão não apelando para algum padrão moral independente, como se pudesse haver um padrão para qualquer coisa separado de Deus, e sim apelando para a vontade e natureza do próprio Deus. O certo é o que Deus é e revela para nós.[3]
“O Senhor(hwhy) (Yehovah) julga os povos” (Sl 7.8). Deus julga a todos os povos porque, na realidade, todo o universo, toda a criação, visível e invisível, lhe pertencem e estão sob a sua preservação, cuidado e senhorio. Deus não é indiferente à sua criação. Deus não está ocioso nem inerte.[4]
O juízo de Deus é universal. Ele é independente. O seu juízo não é uma pretensão megalomaníaca, antes, é a manifestação santa e justa de seu governo. Ele é o Senhor. Por isso tem autoridade e autonomia para fazê-lo.
Não há nada no mundo que possa presumir autonomia ou independência de Deus. Tudo pertence a Deus. Ele é o legítimo proprietário de todas as coisas.
Contudo, em alguns momentos a sucessão dos eventos históricos pode nos deixar perplexos, como aconteceu com o profeta Habacuque (Hc 1 e 2).
Entretanto, a mão poderosa de Deus rege todos os acontecimentos. Deus dirige a história fazendo com que todas as coisas contribuam para o bem do seu povo, da sua Igreja (Rm 8.28).
Toda nação da terra está sob a mão divina, porque não há poder neste mundo que, em última instância, não seja por Ele controlado. (…) Deus é o Senhor da história. (…) Ele começou o processo histórico, controla-o, e por-lhe-á um fim. Jamais devemos perder de vista este fato decisivo.[5]
O salmista inspirado por Deus afirma que Deus “administra (julga) os povos com retidão” (Sl 9.8).
Bavinck escreve de modo esclarecedor e confortador:
A doutrina da providência não é um sistema filosófico, mas uma confissão de fé, a confissão de que, apesar das aparências, nem Satanás, nem o ser humano, nem qualquer outra criatura, mas somente Deus – mediante seu poder Todo-Poderoso e presente em toda parte – preserva e governa todas as coisas. Essa confissão pode nos salvar tanto de um otimismo superficial que nega os mistérios da vida quanto de um pessimismo arrogante que se desespera deste mundo e do destino humano.[6]
Ele tem o controle de todas as coisas. É o Senhor não só de Israel, mas, também, de todos os povos. E como não poderia deixar de ser, o controle universal de Deus é com retidão. Isto indica que um dos aspectos de sua soberania ligado diretamente a nós, é o seu governo sobre a história; nada lhe é estranho.
O juízo de Deus está sobre todas as esferas, tanto na forma de amplitude (extensividade) como de intensidade (profundidade). (Sl 130).
“Como grande Rei, o Senhor serve como o tribunal de apelação em questões civis para todos os oprimidos, isto, não somente para os oprimidos de Israel”, interpreta Bosma.[7]
Nada lhe é indiferente. O sofrimento de seu povo não lhe passa desapercebido ou alheio ao seu santo controle.
Nessa certeza o salmista se conforta: “Pois o necessitado não será para sempre esquecido, e a esperança dos aflitos não se há de frustrar perpetuamente” (Sl 9.18/Sl 10.12-18).
No alegre e agradecido cântico de Ana, há a declaração do governo de Deus sobre “as extremidades da Terra”: “Os que contendem com o SENHOR são quebrantados; dos céus troveja contra eles. O SENHOR julga (!yD) (diyn)as extremidades da terra, dá força ao seu rei e exalta o poder do seu ungido” (1Sm 2.10).
Águas de Lindóia, 8 de outubro de 2019.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]Para o relativismo ético ou convencionalismo, os conceitos considerados verdadeiros são produtos dos valores de uma época, de uma cultura, de um povo. Assim, toda verdade é relativa às crenças de uma sociedade, época, grupo ou cultura. Deste modo, não existe um código moral universalmente válido, antes, há uma infinidade de códigos com reivindicações semelhantes. A questão, portanto, não é quanto à existência de um código moral, antes, a sua validade universal. (Para uma descrição dos tipos de relativismos, vejam-se: David B. Wong, Relativismo Moral: In: Monique Canto-Sperber, org. Dicionário de Ética e Filosofia Moral, São Leopoldo, RS.: Editora Unisinos, 2003, v. 2, p. 490-496; J.P. Moreland; William L. Craig, Filosofia e Cosmovisão Cristã, São Paulo: Vida Nova, 2005, p. 498ss. Uma visão erudita e bem humorada do relativismo cultural mostrando a sua realidade, limites e incompreensões de seus acusadores, encontramos em: Clifford Geertz, Nova Luz Sobre a Antropologia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 47-67. Para uma avaliação cristã, vejam-se os artigos: Relativismo, Relativismo Cultural e Relativismo Ético. In: Carl Henry, org. Dicionário de Ética Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 507-514; Verdade, natureza da: Norman Geisler, Enciclopédia de Apologética: respostas aos críticos da fé cristã, São Paulo: Editora Vida, 2002, p. 864-867 (especialmente); John Piper, Pense – A Vida da Mente e o Amor de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2011, p. 133-166.
[2] Para o subjetivismo, a validade da verdade está limitada ao sujeito que conhece e julga. Desta forma, não podemos falar de uma realidade idêntica para todo o ser humano. Toda certeza é pessoal, visto que toda a verdade é subjetiva.
[3] James M. Boice, Fundamentos da Fé Cristã: Um manual de teologia ao alcance de todos, Rio de Janeiro: Editora Central Gospel, 2011, p. 112.
[4] “Deus nunca está ocioso. Ele nunca está passivamente presente, como mero espectador” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 617). “Seu poder não cessou, mesmo no sétimo dia, no governo do céu e da terra e de todas as coisas que criara, pois do contrário em seguida se desfariam. De fato, o poder do Criador e a virtude do Onipotente e do Mantenedor é causa da subsistência de toda a criatura” (Santo Agostinho, Comentário ao Gênesis, São Paulo: Paulus, 2005 (Coleção Patrística; 21), IV.12, p. 133).
[5] D. Martyn Lloyd Jones, Do temor à fé, Miami: Editora Vida, 1985, p. 21.
[6] Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 631
[7] Carl J. Bosma, Os Salmos: Porta de Entrada para as Nações. Aspectos da base teológica e prática missionária no Livro dos Salmos, São Paulo: Fôlego, 2009, p. 35.