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Rei e Pastor: O Senhor na visão e vivência dos salmistas (54) - Hermisten Maia

Rei e Pastor: O Senhor na visão e vivência dos salmistas (54)

B. O sentido básico do perdão 

             Perdoar significa considerar o devedor como se não houvesse ofendido em nada; não lhe imputar nenhuma dívida. Por isso mesmo, após o perdão, o devedor deixou de ser um devedor, ou mesmo, um devedor perdoado, para ser apenas uma pessoa, sem maiores adjetivos.

Desse modo, tanto a ofensa como o perdão já não contam mais. Com o perdão de Deus o nosso relacionamento com Ele é restabelecido.

Agora, não nos iludamos. O perdão de Deus, longe de minimizar o pecado e a sua gravidade, realça a misericórdia de Deus.

            A petição, “perdoa-nos as nossas dívidas”, ensinada por Jesus Cristo por meio do Pai Nosso, significa que nós, admitindo o nosso pecado, pedimos a Deus que pela sua misericórdia não nos considere como de fato somos: devedores dignos de castigo.

C. A descrição bíblica do perdão

               O Antigo Testamento usa três termos principais (e seus cognatos) para descrever o perdão:[1]

a) Kãphare (“Kipher”) – palavra de origem desconhecida –, que significa, “reconcili-ar”, “cobrir”, “purgar”, “expiar”, “perdoar”. Esta palavra está ligada ao sacrifício, indicando que alguma expiação foi efetuada. (Ex 32.30; Lv 8.15; Nm 5.8; Dt 21.8; 2 Sm 21.3; Sl 65.4; 78.38; 79.9; Is 6.7; Is 22.14; 43.3; Jr 18.23; Dn 9.24; Ez 16.63; 45.20).

b) Nãshãh (“Nãshãh”), “Elevar”, “carregar”, “remover”, “remir”, “levantar”, “livrar”. Este termo apresenta a ideia de que o pecado cometido foi levantado e carregado (removido) para longe; esquecido. (Gn 18.26; 41.51; 50.17; Ex 10.17; 1Sm 15.25; Jó 7.21; 11.6; Sl 25.18; 32.1,5; 85.2; Is 2.9; 33.24; 44.21).

c) Sãlah (“Sãlah”), “Perdoar”, “esquecer”, “desculpar”. (Ex 34.9; Lv 4.20,26,31; 5.6,10,13; 1Rs 8.34,36,39; Sl 25.11; 130.4; Is 55.7). No livro do profeta Jeremi-as, encontramos a celebração jubilosa do futuro perdão de Deus, relacionado com a Nova Aliança (Vejam-se: Jr. 31.31-34; 33.8; 50.20/Hb 8.6-13).

            Enquanto Nãshãh é utilizado para o perdão concedido por Deus bem como pelo homem, Kãphar e Sãlah são empregados exclusivamente para o perdão de Deus.

            O Antigo Testamento enfatiza que todo pecado exige expiação, e esta é feita por meio do derramamento de sangue (Lv 17.11/Hb 9.22). Isso não significa que o sacrifício tivesse em si mesmo poder para remir o pecador, mas, ele adquire esse valor porque foi o método estabelecido por Deus para perdoar,[2] por meio do qual o homem, quando agia sinceramente conforme as prescrições divinas, indicava o seu arrependimento e obediência ao caminho proposto por Deus.

            O ritual sem um coração sincero de nada adiantava. Por isso mesmo as constantes admoestações de Deus quanto a uma prática apenas externa, destituída do sentimento correto (Vejam-se: Is 1.10-17; Am 5.21-22).

            Os sacrifícios no Antigo Testamento apontam, especialmente a partir de Isaías, para a vinda do Messias, O Servo de Deus, que daria a Sua vida em resgate do seu povo. (Vejam-se: Is 40-42; 52.13-15; 53; 55). O sacrifício de Cristo indica aspectos contundentes de seu amor, o triste significado de nossa desobediência, a justiça de Deus e a sua misericórdia gloriosa.

            O Novo Testamento emprega quatro palavras principais para descrever o perdão:

  • Pa/resij (“Paresis”), “Remissão”, “não levar em conta”, “deixar passar”, “mandar embora”, “passar por cima”(* Rm 3.25).
  • A)fi/hmi (“Aphiëmi”), “Deixar ir”, “enviar”, “soltar”,  cancelar”, “desistir”, “abandonar”(Mt 4.11; 6.12; 12.31-32; 18.12,21,27,32, 35; Mc 2.5,7). O substantivo A)fe/sij (“Aphesis”),“Desobrigação”, “perdão”, “libertação”, “cancelamento”(Mt 26.28; Mc 1.4; At 2.38; Ef 1.7; Cl 1.14; Hb 9.22.
  • O verbo A)polu/w (“Apolyõ”),“Libertar” (de doenças, um prisioneiro) “perdoar”, “livrar”, “despachar” (uma assembleia, turbas, indivíduos). (Mt 5.31,32; 14.15;15.23; 27.15,17,21,26;  At 19.40; 28.18,25; Hb 13.23). Somente em Lc 6.37 tem o sentido claro de perdoar (Ocorre 68 vezes no NT).
  • Xari/zomai (“Charizomai”),“Mostrar favor ou bondade”, “dar como favor”, “ser gracioso com alguém”, “perdoar”.(Lc 7.42,43; At 27.24; Rm 8.32; 2 Co 2.7,10; Ef 4.32; Cl 2.13; 3.13) (empregada 21 vezes no NT). Neste verbo aparece de modo explícito o nosso dever de perdoar como resultado do perdão concedido por Deus.

Iniciativa de Deus

    O perdão é descrito sempre nas Escrituras como sendo uma iniciativa de Deus. Ele mesmo em textos diferentes nos diz:

Eu, eu mesmo, sou o que apago as tuas transgressões por amor de mim, e dos teus pecados não me lembro. (Is 43.25).

Desfaço as tuas transgressões como a névoa, e os teus pecados como a nuvem; torna-te para  mim, porque eu te remi. (Is 44.22).

Quem, ó Deus, é semelhante a ti, que perdoas a iniquidade, e te esqueces da transgressão do restante da tua herança? O Senhor não retém a sua ira para sempre, porque tem prazer na misericórdia. Tornará a ter compaixão de nós; pisará aos pés as nossas iniquidades, e lançará todos os nossos pecados nas profundezas do mar. (Mq 7.18-19).

Perdoarei as suas iniquidades, e dos seus pecados jamais me lembrarei. (Jr 31.34) (Vejam-se: Jr 5.1; 33.8; Ez 36.25).

            O perdão é um favor de Deus, uma prerrogativa sua, não algo a que temos direito por nossos merecimentos. Daniel, diz: “Ao Senhor, nosso Deus, pertence a misericórdia e o perdão” (Dn 9.9/Sl 130.4).

            “Deus (…) é rico em perdoar” (Is 55.7). Portanto, “Bem-aventurado o homem a quem o SENHOR não atribui iniquidade e em cujo espírito não há dolo”(Sl 32.2).

            Grider (1921-2006) nos chama a atenção para o fato de que “nenhum livro de religião, a não ser a Bíblia, ensina que Deus perdoa completamente o pecado”.[3]

São Paulo, 22 de outubro de 2019.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Para uma visão mais completa dos termos, veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 185-186.

[2] Eichrodt, seguindo Büchler diz que “A expiação não é uma forma imediata de remoção do pecado independentemente de seu perdão, senão um método de perdão” (Walter Eichrodt, Teologia del Antiguo Testamento, Madrid: Ediciones Cristiandad, 1975, v. 2, p. 440).

[3] J.K. Grider,  Perdão: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1990, v. 3, p. 136. Esta declaração não entra em conflito com o fato de que os deuses dos povos do Antigo Testamento eram aplacados em sua ira e esta consciência de “perdão” era testemunhada pelos seus adoradores. (Cf. J. Scharbert, Perdão: In: Heinrich Fries, (direção de), Dicionário de Teologia, 2. ed. São Paulo: Loyola, 1987, v. 4, p. 229-230). Contudo, um exemplo explícito de um “deus” declarando o perdão absoluto parece ser estranho à literatura antiga, fora da Bíblia.

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