Rei e Pastor: O Senhor na visão e vivência dos salmistas (31)
Total dependência
Todos os homens por mais ricos que sejam, dependem, entre outras coisas, de solo, água, clima e saúde do corpo. Todos estão sujeitos ao estado geral da economia, juntamente com outros fatores sociais, políticos etc. Estes fatos indicam o quanto dependemos de Deus, o senhor do universo, daquele que tem o domínio sobre todas as coisas.
“Do alto de tua morada regas os montes; a terra farta-se do fruto de tuas obras. Fazes crescer a relva para os animais e as plantas para o serviço do homem, de sorte que da terra tire o seu pão”, diz o salmista (Sl 104.13-14).
Como vimos, Paulo dá uma interpretação teológica a esta manifestação provedora de Deus, dizendo: “Contudo não se deixou ficar sem testemunho de si mesmo, fazendo o bem dando-vos do céu chuvas e estações frutíferas, enchendo os vossos corações de fartura e de alegria” (At 14.17).
Dessa maneira, pedir a Deus que nos dê o pão significa recorrer à sua graça, para que nos sustente e não nos deixe perecer. Nesta oração, está implícita a certeza de que a vida pertence a Deus. O cientista pode fazer uma semente sintética, porém, ela não poderá crescer e frutificar, porque não tem vida. E mesmo que conseguisse, a origem da vida ainda estaria em Deus que lhe teria permitido chegar a esse invento condicionado ao poder do Criador.
Tudo que temos e somos provém dele, por isso a ele oramos: “o pão nosso de cada dia dá-nos hoje”.
Calvino (1509-1564), comentando essa passagem, escreveu:
Por esta petição nos entregamos a seu cuidado e nos confiamos à sua providência, para que nos dê alimento, sustente e preserve. Pois o Pai boníssimo não desdenha tomar sob sua proteção e guarda nem mesmo nosso corpo, para que a fé nos exercite nessas coisas diminutas, enquanto dele esperamos tudo, inclusive uma simples migalha de pão e uma gota de água.[1]
Ordem na criação que reflete a Deus
Destaco outro aspecto. No Salmo 19 o salmista escreve:
2Um dia discursa a outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra noite. 3 Não há linguagem, nem há palavras, e deles não se ouve nenhum som; 4 no entanto, por toda a terra se faz ouvir a sua voz, e as suas palavras, até aos confins do mundo. Aí, pôs uma tenda para o sol, 5 o qual, como noivo que sai dos seus aposentos, se regozija como herói, a percorrer o seu caminho. 6 Principia numa extremidade dos céus, e até à outra vai o seu percurso; e nada refoge ao seu calor. (Sl 19.2-6).
O salmista ainda que não saiba explicar a ordem da Criação, sabe que o Deus Criador, o majestoso Senhor estabeleceu uma ordem que se sucede porque foi assim que Ele a fez e preserve continuamente. Deste modo o escritor sagrado pode falar da sucessão de dia e dia; noite e noite (v. 2) e o sol que, percebido fenomenologicamente, percorre um caminho pré-estabelecido de uma extremidade a outra do céu mantendo o seu calor: há um testemunho constante e permanente (vs. 4-6).[2]
A compreensão cristã de ordem na criação foi de fundamental importância para o desenvolvimento da ciência. Como sabemos, os pressupostos dos cientistas são de grande relevância na elaboração científica. Tentar negar a existência de pressupostos em nome de uma suposta “neutralidade” seria uma postura pueril e inútil.
Francis A. Schaeffer (1912-1984), por exemplo, nos chama a atenção para o fato de que “a ciência moderna em seus primórdios foi o produto daqueles que viveram no consenso e cenário do Cristianismo”.[3] À frente, acrescenta: “A mentalidade bíblica é que deu origem à ciência”.[4]
De fato, independentemente da fé professada pelo cientista, a sua formação, consciente ou não, era cristã. As suas pressuposições teístas – que obviamente orientavam as suas pesquisas – “já vinham no leite materno”.[5] O pressuposto da criação divina foi um incremento fundamental à ciência moderna.[6]
Hooykaas (1906-1994) conclui o seu brilhante livro usando uma metáfora: “Podemos dizer (…) que, embora os ingredientes corporais da ciência possam ter sido gregos, suas vitaminas e hormônios foram bíblicos”.[7]
Maringá, 24 de setembro de 2019.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]João Calvino, As Institutas, III.20.44.
[2] “O texto é claramente metafórico, e não mitológico: o sol não é uma divindade nem um espírito, mas é simplesmente comparado a alguém que mora em uma tenda. A literatura de Isaías também compara os céus a uma tenda (Is 40.22), uma vez mais enfatizando o poder de Deus, capaz de estender os céus como cortina” (Anthony Tomasino, Ohel: In: Willem A. VanGemeren, org., Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 293).
[3]Francis A. Schaeffer, A morte da razão, São Paulo: ABU; FIEL, 1974, p. 29. Um dos grandes cientistas do século XX, W. Heisenberg (1901-1976), atesta a ligação da física moderna com Bacon, Galileu e Kepler: “A física moderna não é mais do que um elo na longa cadeia de acontecimentos que se iniciaram com a obra de Bacon, Galileu e Kepler e das aplicações práticas das ciências da natureza nos séculos XVII e XVIII” (Werner Heisenberg, Páginas de reflexão e auto-reflexão, Lisboa: Gradiva, 1990, p. 52). “O trabalho científico do presente século seguiu essencialmente o método descoberto e desenvolvido por Copérnico, Galileu e seus sucessores nos séculos XVI e XVII” (Werner Heisenberg, Páginas de reflexão e auto-reflexão, Lisboa: Gradiva, 1990, p. 80-81).
[4] Francis A. Schaeffer, A morte da razão, São Paulo: ABU; FIEL, 1974, p. 31. Trata desse assunto mais detalhadamente em alguns livros e artigos. Veja-se: Hermisten M.P. Costa, Introdução à cosmovisão Reformada: um desafio a se viver responsavelmente a fé professada, Goiânia, GO.: Cruz, 2017, p. 376-390.
[5]James W. Sire, O universo ao lado, São Paulo: Hagnos, 2004, p. 28.
[6]Veja-se: Eugene M. Klaaren, Religious origins of modern science, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1977.
[7]R. Hooykaas, A religião e o desenvolvimento da ciência moderna,Brasília, DF.: Universidade de Brasília, 1988, p. 196.
Deus não só criou todas as coisas e o homem, com também sustenta e rege.