Rei e Pastor: O Senhor na visão e vivência dos salmistas (15)
A Questão Histórica e Política
O profeta Habacuque viveu numa época extremamente difícil. O seu livro foi escrito por volta do ano 605 a.C.,[1] durante o reinado de Eliaquim, filho de Josias. Nesse período, o reinado de Eliaquim era apenas simbólico, pois quem de fato mandava em Israel era o rei egípcio, Faraó-Neco, quem inclusive destronou o antigo rei, irmão de Eliaquim, Jeocaz – levando-o para o Egito aonde viria falecer (2Rs 23.34)[2] –, colocando Eliaquim no enfraquecido trono e, como sinal do seu poder, mudou o nome de Eliaquim para Jeoaquim.
O reinado de Jeoaquim (609-598 a.C.) ocorreu durante o ministério de Jeremias e Habacuque. Jeoaquim para pagar os tributos exigidos por Faraó, impôs pesados impostos sobre o povo de Israel (2Rs 23.35), construiu também prédios luxuosos com trabalho escravo, sendo descrito por Jeremias como um homem vaidoso, egoísta, ambicioso, violento e corrupto (Jr 22.13-18).[3] O seu reinado foi marcado pela decadência moral e espiritual do povo, sendo as reformas feitas pelo seu pai Josias, gradativamente esquecidas.
Nesse contexto encontramos o profeta Habacuque [“Abraço ardente” (?)[4]], um fiel profeta[5] de Deus, que tinha perguntas profundas, as quais revelavam a sua preocupação com o povo de Judá, bem como o desejo de entender a dura realidade dos fatos. Nesse livro nos deparamos com o profeta em conflito com a própria mensagem de Deus: Habacuque demonstra ter dificuldade em compreender o desígnio de Deus. É muito difícil transmitir uma mensagem que nos desagrada e, também, quando não a conseguimos entender adequadamente, especialmente quando parece conflitar com conceitos e valores que sustento, supondo bem fundamentados, além de qualquer suspeita.
O fato evidente é que o povo estava em pecado: Violência, contenda, litígio, afrouxamento da lei, injustiça, etc. (Hc 1.3-4). O piedoso profeta orava constantemente ao Senhor, que aparentemente não o ouvia. A não percepção da manifestação de Deus causa-lhe angústia e incompreensão (Hc 1.2-3).
Quando a mensagem é um fardo
Agora Deus se revela a Habacuque, determinando a sua “sentença” ()af&am) (masã’), “oráculo”, que tem o sentido metafórico de “peso” e “fardo”;[6] o anúncio de julgamentos pesados contra o povo e o poder imperial (Hc 1.1). O fato de essa palavra ser usada já no primeiro verso, à semelhança de Naum (Na 1.1) e Malaquias (Ml 1.1/Zc 12.1), indica a severidade da mensagem. Essa forma figurada de falar a respeito de Israel não era estranha ao Antigo Testamento (Nm 11.11,17; Dt 1.12)
Contudo, a resposta de Deus foi por demais surpreendente para o profeta. Deus mostra que não está indiferente aos acontecimentos, mas que levantaria os caldeus para oprimir aqueles opressores descritos pelo profeta (Hc 1.5-11). Aqui Habacuque se depara com a questão da santidade de Deus e a prevalência do mal. Como Deus poderia castigar os injustos por intermédio de outros mais injustos ainda? O profeta desabafa:
12 Não és tu desde a eternidade, ó SENHOR, meu Deus, ó meu Santo? Não morreremos. Ó SENHOR, para executar juízo, puseste aquele povo; tu, ó Rocha, o fundaste para servir de disciplina. 13 Tu és tão puro de olhos, que não podes ver o mal e a opressão não podes contemplar; por que, pois, toleras os que procedem perfidamente e te calas quando o perverso devora aquele que é mais justo do que ele? 14 Por que fazes os homens como os peixes do mar, como os répteis, que não têm quem os governe? 15 A todos levanta o inimigo com o anzol, pesca-os de arrastão e os ajunta na sua rede varredoura; por isso, ele se alegra e se regozija. 16 Por isso, oferece sacrifício à sua rede e queima incenso à sua varredoura; porque por elas enriqueceu a sua porção, e tem gordura a sua comida. 17 Acaso, continuará, por isso, esvaziando a sua rede e matando sem piedade os povos? (Hb 1.12-17).
Mesmo que não possamos ter clareza quanto ao propósito de Deus em todos os atos da história, não podemos duvidar dele.[7] Deus controla o seu povo e os seus inimigos. Não há força neste universo que não esteja sob o domínio de Deus.[8] Todo poder é derivado. Somente em Deus temos a origem e a preservação de todo poder. Todos os poderes desse mundo e no porvir são derivados de Deus pelo próprio Deus. O fato de não entendermos perfeitamente os propósitos de Deus, é inteiramente natural afinal, Deus é o Senhor Eterno e Onisciente. Os caminhos de Deus não são os nossos caminhos; a sua mente é inescrutável (Is 55.8,9; Rm 11.33[9]).[10]
“Nem sempre – escreve Hoekema (1913-1988) – podemos ser capazes de discernir o propósito de Deus na história, mas que esse propósito existe é um aspecto primordial de nossa fé”.[11]
Da mesma forma, expondo o Salmo 73, Lloyd-Jones (1899-1981), avalia:
Creio que muitos de nós entramos em dificuldade porque esquecemos que o de que estamos tratando é a mente de Deus, e que a mente de Deus não é como a nossa. Desejamos que tudo esteja pronto, enxuto e fácil, e achamos que nunca deveriam existir quaisquer problemas ou dificuldades. Mas, se há uma coisa ensinada com mais clareza do que qualquer outra na Bíblia, é que nunca ocorre deste modo em nossas relações com Deus. Os caminhos de Deus são inescrutáveis; sua mente é infinita e eterna, e seus propósitos são tão grandes que as nossas mentes pecaminosas não os podem entender. Portanto, quando um Ser assim está tratando conosco, não nos deve causar surpresa se, às vezes, acontecem coisas que nos deixam perplexos.[12]
São Paulo, 10 de setembro de 2019.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]Andrew E. Hill e J.H. Watson sugerem a data aproximada de 630 a.C., no período ainda do reinado de Josias, considerando a possibilidade de este rei ter apenas feito as reformas espirituais e não sociais, as quais seriam realizadas posteriormente (Ver: Andrew E. Hill; John H. Watson, Panorama do Antigo Testamento, São Paulo: Vida, 2006, p. 572-574). É possível também que o livro consista na reunião de mensagens do profeta. Assim sendo, a redação livro poderia ser datada como sendo cerca de 597-585 a.C. (Veja-se: Robert B. Chisholm Jr., Introdução aos profetas, São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 484-485).
[2] “Faraó-Neco também constituiu rei a Eliaquim, filho de Josias, em lugar de Josias, seu pai, e lhe mudou o nome para Jeoaquim; porém levou consigo para o Egito a Jeoacaz, que ali morreu” (2Rs 23.34).
[3]“Ai daquele que edifica a sua casa com injustiça e os seus aposentos, sem direito! Que se vale do serviço do seu próximo, sem paga, e não lhe dá o salário; que diz: Edificarei para mim casa espaçosa e largos aposentos, e lhe abre janelas, e forra-a de cedros, e a pinta de vermelhão. Reinarás tu, só porque rivalizas com outro em cedro? Acaso, teu pai não comeu, e bebeu, e não exercitou o juízo e a justiça? Por isso, tudo lhe sucedeu bem. Julgou a causa do aflito e do necessitado; por isso, tudo lhe ia bem. Porventura, não é isso conhecer-me? —diz o SENHOR. Mas os teus olhos e o teu coração não atentam senão para a tua ganância, e para derramar o sangue inocente, e para levar a efeito a violência e a extorsão. Portanto, assim diz o SENHOR acerca de Jeoaquim, filho de Josias, rei de Judá: Não o lamentarão, dizendo: Ai, meu irmão! Ou: Ai, minha irmã! Nem o lamentarão, dizendo: Ai, senhor! Ou: Ai, sua glória!” (Jr 22.13-18).
[4] O significado do seu nome é incerto. Pode ser derivado de uma palavra hebraica que significa abraço (“abraçar” ou “ser abraçado”) ou, “lutador”, conforme tradução de Jerônimo, considerando que Habacuque lutou com Deus. Tem sido especulado também que a derivação do seu nome poderia vir do acadiano, designando alguma planta ou árvore denominada pelos assírios de hambaqûqu. No entanto, esta planta ainda não pôde ser identificada. (Para maiores detalhes, veja-se: P.A. Verhoef, Habacuque: In: Merrill C. Tenney, org. ger., Enciclopédia da Bíblia, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, v. 2, p. 11-12 (especialmente).
[5]A atitude de Habacuque em se identificar como profeta (Hc 1.1; 3.1) aponta para o fato de ser bem conhecido em Judá, possivelmente indicando a sua posição oficial (Vejam-se: William S. LaSor, et. al., Introdução ao Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 350; C.F. Keil; F. Delitzsch, Commentary on the Old Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, v. 10/2, © 1871, p. 49; David W. Baker, et. al. Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuque e Sofonias: introdução e comentário, São Paulo: Vida Nova, 2001, p. 324, 331).
[6]Esta expressão ressalta a nota grave e solene do seu conteúdo; significa uma mensagem urgente, um oráculo que se faz em um juízo ameaçante ou uma sentença. É a mesma palavra usada por Isaías (13.1; 15.1; 17.1; 19.1; 21.1; 22.1; 23.1, etc), Naum (1.1), Zacarias (9.1; 12.1) e Malaquias (1.1) para a sua profecia. A mensagem tem um sentido de veredicto de Deus. (Veja-se Abraham Even-Shoshan, ed.A New Concordance of the Old Testament, 2. ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1993, p. 713-714; Walter C. Kaiser, Jr., Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1980, p. 234; A. Fraser, Naum: In: F. Davidson, ed. O Novo Comentário da Bíblia, 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1976, p. 888; Ronald F. Youngblood, Massã: In: Willem A. VanGemeren, org. Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 1110-1111).
[7] “Seja com for, não devemos ficar surpresos ao encontrar mistérios dessa espécie [Soberania de Deus e responsabilidade humana] na Palavra de Deus. Pois o Criador é incompreensível para as suas criaturas. Um Deus que pudesse ser exaustivamente compreendido por nós, cuja revelação sobre Si mesmo não nos apresentasse qualquer mistério, seria um Deus segundo a imagem do homem e, portanto, um Deus imaginário, e nunca o Deus da Bíblia” (J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 20).
[8]“Deus controla não somente a Israel, mas também seus próprios inimigos, os caldeus. Toda nação da terra está sob a mão divina, porque não há poder neste mundo que, em última instância, não seja por Ele controlado” (D. Martyn Lloyd Jones, Do temor à fé, Miami: Editora Vida, 1985, p. 31).
[9]“Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o SENHOR, porque, assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos, mais altos do que os vossos pensamentos” (Is 55.8,9). “Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos!” (Rm 11.33).
[10] Veja-se: João Calvino, As Institutas, I.17.2. “Não há nada mais absurdo do que simular, propositadamente, uma grosseira ignorância da providência de Deus, uma vez que não podemos compreendê-la perfeitamente, a não ser discerni-la só em parte” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 40.5), p. 223).
[11] A.A. Hoekema, A Bíblia e o Futuro, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1989, p. 41.
[12]D.M. Lloyd-Jones, Por que prosperam os ímpios?, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1985, p. 14-15.