Pessoa e Obra do Espírito Santo (198)
6.3.6.3. É resultado da nossa eterna eleição
Conforme já demonstramos, a fé nunca é autogerada por nossa suposta capacidade intelectual, emocional ou sensorial. Ela também não é geradora da graça, nem da eleição. Ao contrário, a eleição divina é-nos totalmente estranha até que nos conscientizemos desta realidade pela fé.
A fé em nada é meritória. Uma fé autossuficiente seria uma negação de sua própria essência. A fé une o futuro e o além, ao aqui e agora. O passado, nesse caso, serve como elemento ilustrativo da fé de nossos irmãos que perseveraram e, também, de nossa própria fé vivenciada, a despeito de, por vezes, diminuta e cambaleante.
Fé é certeza do que ainda não aconteceu, do por vir como fato acontecido. Por isso, o tempo não serve de empecilho para fé, antes, como estímulo para o exercício da esperança. Como exercitar a esperança no que já tenho (Hb 11.1). Ao contrário de qualquer filosofia humana, a fé cristã traz sólida esperança que é nutrida e preservada pela Palavra do Deus fiel. “O futuro é nítido porque está cheio de promessas; promessas estas da Palavra de Deus”, explica Venema.[1] A esperança, por sua vez, é a expressão perseverante de fé.
A vocação eterna é o caminho que Deus percorre para produzir fé em seus escolhidos. Portanto, a fé é peculiar somente aos eleitos.[2] A vocação frutifica em fé como resposta ao chamado divino.[3]
Agostinho (354-430), enfatiza: “Pois a misericórdia de Deus se lhe antecipa, sendo chamado para que cresse”.[4] A fé é um diálogo responsivo à graça, iniciado e possibilitado pela graça. Fé é graça; maravilhosa graça! Pela graça Deus nos torna seu povo; pela graça, respondemos professando a fé de que Ele é o nosso Deus e Pai. (Os 2.23; Zc 13.9/Sl 27.8; Rm 8.15-16).
A fé é a causa instrumental de nossa salvação; todavia, a causa essencial é a nossa eleição.[5] Deus elege e chama eficazmente. A fé e o arrependimento são resultados da eleição.[6]
Usando uma expressão de Calvino, podemos dizer que a “eleição é mãe da fé”.[7] Dito de outro modo: “A fé é um fruto da eleição”.[8] A fé não é precondição da eleição, no entanto, ela evidencia e confirma como um selo a nossa eleição.[9]
A eleição de Deus nunca cai no vazio. Na eleição eterna estão embutidos todos os elementos em que envolvem a nossa salvação até à consumação da obra divina em nossa vida (Rm 8-29-31).
Calvino (1509-1564) resume alguns desses conceitos em lugares diferentes:
A causa eficaz de fé não é a perspicácia de nossa mente, mas a vocação de Deus. E ele [Pedro] não se refere somente à vocação externa, que é em si mesma ineficaz; mas à vocação interna, realizada pelo poder secreto do Espírito, quando Deus não somente emite sons em nossas orelhas pela voz do homem, mas, pelo Seu próprio Espírito atrai intimamente nossos corações para Ele mesmo.[10]
O fundamento de nossa vocação é a eleição divina gratuita pela qual fomos ordenados para a vida antes que fôssemos nascidos. Desse fato depende nossa vocação, nossa fé, a concretização de nossa salvação.[11]
A eleição que diversamente o Senhor mantém oculta em Si, é por fim manifestada por Sua vocação, a qual, por esse motivo, eu costumo denominar testemunho da eleição.[12]
Paulo associa o seu ministério como um serviço aos eleitos, na promoção da fé dos eleitos. Deste modo, percebemos como Deus em sua misericórdia em tudo se antecipou a nós.[13] A fé é dos eleitos de Deus (Tt 1.1). Aquele que crê é um eleito de Deus. No entanto, devemos enfatizar que esta relação não é mecânica: eleição e fé. Os eleitos “não são eleitos porque creram, mas são eleitos para que cheguem a crer”, orienta-nos Agostinho.[14]
A Palavra nos ensina que fomos eleitos para que tivéssemos fé; e esta fé é gerada e sedimentada em nossos corações pelo Espírito por meio do conhecimento de Cristo. “A fé salvadora é um salto à luz porque se baseia no conhecimento do Senhor Jesus Cristo”, afirma Kuiper (1886-1966).[15] E o conhecimento de Cristo deve ser a nossa vocação incondicional. “E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (Jo 17.3).
Paulo considerou todas as outras coisas como perda, diante da realidade sublime do conhecimento de Cristo. Conhecer a Cristo era a sua prioridade. Ele declara: “Sim, deveras considero tudo como perda, por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus meu Senhor: por amor do qual, perdi todas as cousas e as considero como refugo, para ganhar a Cristo” (Fp 3.8).[16]
Desta forma, podemos dizer que:
a) Todos os eleitos creem
Jo 10.16,27-29 – 16 Ainda tenho outras ovelhas, não deste aprisco; a mim me convém conduzi-las; elas ouvirão a minha voz; então, haverá um rebanho e um pastor. (…) 27 As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. 28 Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão, e ninguém as arrebatará da minha mão. 29 Aquilo que meu Pai me deu é maior do que tudo; e da mão do Pai ninguém pode arrebatar. (Jo 20.16,27-29).
Jo 6.37,39 – 37 Todo aquele que o Pai me dá, esse virá a mim; e o que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora. (…) 39 E a vontade de quem me enviou é esta: que nenhum eu perca de todos os que me deu; pelo contrário, eu o ressuscitarei no último dia.
Jo 17.2,9,24 – 2 Assim como lhe conferiste autoridade sobre toda a carne, a fim de que ele conceda a vida eterna a todos os que lhe deste. (…) 9 É por eles que eu rogo; não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus; (…) 24 Pai, a minha vontade é que onde eu estou, estejam também comigo os que me deste, para que vejam a minha glória que me conferiste, porque me amaste antes da fundação do mundo. (Jo 17.2,9.24).
b) Só os eleitos creem
Jo 10.26 – Mas vós não credes, porque não sois das minhas ovelhas.
c) Os que creem, fazem-no por serem eleitos
At 13.48 – Os gentios, ouvindo isto, regozijavam-se e glorificavam a palavra do Senhor, e creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna.
Tt 1.1 – Paulo, servo de Deus e apóstolo de Jesus Cristo, para promover a fé que é dos eleitos de Deus e o pleno conhecimento da verdade segundo a piedade,
Portanto, toda a honra e glória pertencem a Deus:
Ef 2.5,8-10 – 5 E estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo, — pela graça sois salvos, (…) 8 Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; 9 não de obras, para que ninguém se glorie. 10 Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas.
1Ts 1.3-4 – 3 Recordando-nos, diante do nosso Deus e Pai, da operosidade da vossa fé, da abnegação do vosso amor e da firmeza da vossa esperança em nosso Senhor Jesus Cristo, 4 reconhecendo, irmãos, amados de Deus, a vossa eleição.
2Ts 2.13-14 – 13 Entretanto, devemos sempre dar graças a Deus por vós, irmãos amados pelo Senhor, porque Deus vos escolheu desde o princípio para a salvação, pela santificação do Espírito e fé na verdade, 14 para o que também vos chamou mediante o nosso evangelho, para alcançardes a glória de nosso Senhor Jesus Cristo.
Tg 2.5 – Ouvi, meus amados irmãos. Não escolheu Deus os que para o mundo são pobres, para serem ricos em fé e herdeiros do reino que ele prometeu aos que o amam?
Jd 3 – Amados, quando empregava toda a diligência em escrever-vos acerca da nossa comum salvação, foi que me senti obrigado a corresponder-me convosco, exortando-vos a batalhardes, diligentemente, pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos.
Maringá, 30 de maio de 2021. Rev. Hermisten Maia Pereira da Cost
[1]Cornelius P. Venema, A Promessa do futuro, São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 28.
[2] Cf. Johannes Wollebius, Compêndio de Teologia Cristã, Eusébio, CE.: Peregrino, 2020, p. 239.
[3] Veja-se: François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 2, p. 670.
[4] S. Agostinho, A Graça (II), São Paulo: Paulus, 1999, p. 193. “É em razão de ser misericordioso que Deus primeiro nos recebe em sua graça, e então prossegue nos amando” (João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 1.2), p. 27).
[5] João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6, São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, p. 32.
[6] Conforme já citamos, “O arrependimento não está no poder do homem” (João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 6.6), p. 155).
[7]Ver: J. Calvino, As Institutas, III.22.10.
[8]João Calvino, Sermões em Efésios, Brasília, DF.: Monergismo, 2009, p. 76.
[9] Ver: J. Calvino, As Institutas, III.24.3.
[10] John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1996 (reprinted), v. 22/2, (2Pe 1.3), p. 369.
[11] João Calvino, Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 4.9), p. 128.
[12] João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.8), p. 57.
[13]Veja-se: Augustin, On The Gospel of St. John. In: Philip Schaff; Henry Wace, eds. Nicene and Post-Nicene Fathers of Christian Church, (First Series), 2. ed. Peabody, Massachusettes: Hedrickson Publishers, 1995, v. 7, Tractate 86 (Jo 15.16), p. 354.
[14]Agostinho, A Graça (II), São Paulo: Paulus, 1999, p. 194. “Deus escolheu os crentes, mas para que o sejam e não porque já o eram” (Agostinho, A Graça (II),p. 195). “Não cremos porque nos escolheu, mas escolheu-nos para crermos, para que não digamos que o escolhemos….” (Agostinho, A Graça (II),p. 200).
[15]R.B. Kuiper, El Cuerpo Glorioso de Cristo, Michigan: Subcomision Literatura Cristiana de la Iglesia Cristiana Reformada, 1985, p. 230. Figura semelhante é empregada por McGrath: “A fé, portanto, tem de ser vista como uma forma de crença motivada ou justificada. Não é um salto cego no escuro, mas a jubilosa descoberta de um quadro mais abrangente das coisas, do qual fazemos parte. É algo que induz e convida à sanção racional, e não algo que a compele. A fé diz respeito a ver as coisas que os outros deixaram passar e apreender sua relevância mais profunda” (Alister E. McGrath, Surpreendido pelo sentido: ciência, fé e o sentido das coisas, São Paulo: Hagnos, 2015, p. 14).
[16] “O conhecimento de Deus não está posto em fria especulação, mas Lhe traz consigo o culto” (João Calvino, As Institutas, I.12.1) “Jamais poderemos conhecer demasiadamente as grandes doutrinas da fé, mas se esse conhecimento não nos leva a uma experiência cada vez mais profunda do amor de Cristo, não passa de conhecimento que ‘incha’ (1Co 8.1)” (D.M. Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 8. “Prefácio”). “O conhecimento é absolutamente essencial; sem conhecimento não pode haver nenhum crescimento. Todavia o conhecimento, no sentido verdadeiramente cristão, nunca é meramente intelectual. É assim, e isso porque é o conhecimento de uma Pessoa. O propósito de toda doutrina, o valor de toda instrução, é levar-nos à Pessoa do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (D.M. Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, p. 165).