Pessoa e Obra do Espírito Santo (197)
c) Toda a Palavra
Nada é mais solicitamente intentado por Satanás do que impregnar nossas mentes, ou com dúvidas, ou com menosprezo pelo evangelho. – João Calvino.[1]
“O evangelho da vossa salvação” é para ser crido (Ef 1.13). Por isso, a pregação cristã nada mais é do que a proclamação do Evangelho; o poder de Deus para a salvação (Rm 1.16). “A pregação (…) é o instrumento divino para a salvação das pessoas”, conclui corretamente Spener (1635-1705).[2]
Sem a Palavra, Jesus se constitui no caminho desconhecido para o Pai (Jo 20.30-31/Jo 14.6).[3]
A Palavra de Deus reivindica a nossa fé (Vejam-se: Mc 1.15; Jo 5.45-47; 17.20; At 4.4; Rm 10.8,14,17; Ef 1.13; 1Tm 1.15; 4.9).[4]
O que Deus revelou e prometeu é para ser crido (Rm 4.20). Jesus Cristo é o autor e o conteúdo,[5] o substantivo da Promessa. Por isso, crer no Evangelho, significa crer em Jesus Cristo (Mc 1.15/Rm 15.20; At 16.31).[6] Jesus Cristo, conforme o conhecemos no Evangelho, é a Palavra Final de Deus: Nele conhecemos o que Deus quer que saibamos e o que deseja que sejamos nesta vida.
Todavia, se Deus não abrir o entendimento dos homens, eles jamais crerão, como nós também jamais teríamos crido um dia; por isso, a proclamação do Evangelho deve vir acompanhada da oração.[7]
Algumas aplicações para a nossa reflexão e consolo
John Owen (1616-1683) comentou:
O perdão dos pecados e a vida eterna são propostos nas Escrituras como coisas que devem ser cridas para a justificação, ou como o objeto de nossa fé (Mt 9.2; At 2. 38-39; 5.31; 21.18; 26.18; Rm 3.25; 4.7-8; Cl 2.13; Tt 1.2, etc. (…)
Portanto, afirmando que o Senhor Jesus Cristo, na obra de sua mediação, é o objeto da fé para a justificação, incluo nisso a graça de Deus, que é a causa; o perdão do pecado, que é o efeito; e as promessas do evangelho, que são o meio de comunicar Cristo e os benefícios de sua mediação para nós.
E todas essas coisas são tão unidas, tão misturadas em suas relações e respeitos mútuos, tão concatenadas no propósito de Deus, e na declaração feita de sua vontade no evangelho, que a crença em qualquer um deles virtualmente inclui a crença Do resto. E por quem qualquer um deles é desacreditado, eles frustram e anulam todo o resto, e assim a própria fé.[8]
Comentando o Salmo 11, Craigie e Tate, concluem:
Na vida de fé, a confiança é uma necessidade e uma virtude. É uma necessidade, porque a ausência de confiança pode contribuir para a desintegração da vida em medo e ansiedade; é uma virtude, pois pode conduzir para a plenitude da vida que Deus planejou quando Ele nos concedeu o dom da vida.[9]
Esta confiança, entretanto, deve estar depositada em Deus.
Davi que inicia o salmo 11 declarando a sua confiança em Deus, conclui revelando o aspecto temporal e escatológico[10] de sua fé: “os retos lhe contemplarão a face”(Sl 11.7). Aqui temos a certeza de que no ato de libertação da opressão de seus inimigos, o salmista verá a face do Deus santo, soberano e justo. É uma forma figurada de dizer: agora sim, vimos a Deus agindo. Creio também, que ele está convicto de que pela livre graça de Deus, veremos a sua face.
Witsius (1636-1708) comenta:
Em Deus, somente em Deus, deixe que repouse sua fé. Por que a fé que aprendemos e ensinamos não é humana, mas enfaticamente divina; ela que é tão distinta, que nenhuma fundação é considerada suficientemente firme, além daquela fornecida pela autoridade de Deus, aquele que não pode mentir e que nunca se engana.[11]
Henry (1662-1714) está correto ao interpretar:
Os princípios da religião são os fundamentos sobre os quais se edificam a fé e a esperança do justo. O nosso dever é apegarmo-nos fortemente a eles, e posicionarmo-nos contra todas as tentações provenientes da incredulidade; os crentes seriam destruídos se não pudessem recorrer a Deus, confiar nele e esperar por uma bênção futura.[12]
Nas Escrituras há constante demonstração do poder de Deus tendo isto um aspecto pedagógico; para que aprendamos a depositar a nossa confiança no Deus soberano.
Calvino observa que,
Em virtude de nosso coração incrédulo, o mínimo perigo que ocorre no mundo influi mais em nós do que o poder de Deus. Trememos ante a mais leve tribulação, pois olvidamos ou nutrimos conceitos mui pobres acerca da onipotência divina.[13]
Em outro lugar:
É verdade que tanto os bons quantos os maus participam das misérias e dificuldades desta presente vida; porém, para os ímpios, os sofrimentos são sinais da maldição divina, porquanto são resultado do pecado ; sua única mensagem é a ira de Deus e a nossa comum participação na condenação de Adão, e seu único resultado é o abatimento da alma. Porém, por meio de seus sofrimentos [gerados pelo testemunho de Cristo], os crentes estão sendo conformados a Cristo, e produzem em seus corpos o morrer de Cristo, para que a vida de Cristo seja um dia manifestada neles.[14]
O reformador nos desafia a confiar inteiramente na promessa de Deus:
As pessoas erram clamorosamente na interpretação da Escritura, deixando inteiramente suspensa a aplicação de tudo quanto se diz acerca do poder de Deus e em não descansar certas de que ele será também seu Pai, uma vez que fazem parte de seu rebanho e são partícipes de sua adoção.[15]
Descansemos em Deus. Firmemos os nossos passos neste fundamento, sabendo que o nosso Deus é Santo, Soberano e Justo. Um dia, quando tudo isso terminar, Deus tiver levado a bom termo os seus propósitos quanto à história e ao seu Reino, veremos em Cristo, de modo definitivo, a face de Deus. (1Jo 3.2/[16] Sl 4.6; 16.11; 44.3; Mt 5.8; Ap 22.4).
Agora, no tempo presente, caminhemos nessa certeza, colocada de forma quase poética por Barth (1886-1968):
Não existe fidelidade a não ser em Deus. A fé é a confiança que nos permite que nos mantenhamos nele, nas suas promessas e nos seus mandamentos. Manter-se em Deus é abandonar-se a essa certeza e vivê-la: Deus está aqui para mim. Tal é a promessa que Deus nos faz: eu estou aqui, para ti.[17]
Maringá, 27 de maio de 2021
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] João Calvino, Efésios, (Ef 1.13), p. 35.
[2] Ph. J. Spener, Mudança para o Futuro: Pia Desideria, Curitiba, PR.; São Bernardo do Campo, SP.: Encontrão Editora; Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião, 1996, p. 118.
[3] “Não há outro guia para a verdade, senão a Bíblia, na medida em que o Espírito nos ajuda a entendê-la” (William Guthrie, As Raízes de Uma Fé Autêntica, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1994, p. 14).
[4] Vd. J. Calvino, As Institutas, III.2.1.
[5]Michael Green escreveu: “Aquele que veio pregando as boas novas passou a ser o conteúdo das boas novas” (Michael Green, Evangelização na Igreja Primitiva, São Paulo: Vida Nova, 1984, p. 58).
[6]”A fé que nos traz à salvação é questão de querer a Cristo, ser levado a Ele, apoiar-se e ter confiança nEle” (William Guthrie, As Raízes de Uma Fé Autêntica, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1994, p. 26).
[7]J.I. Packer, ressaltando a importância da convicção da Soberania de Deus no ministério evangélico, diz:
“(A) fé fervorosa na soberania absoluta de Deus (…) não somente fortalece a evangelização, como sustenta o evangelista, criando uma esperança de êxito que, de outro modo, não poderia ser realidade; e igualmente nos ensina a ligar a pregação à oração, tornando-nos ousados e confiantes perante os homens, ao mesmo tempo em que nos torna humildes e persistentes perante Deus.” (J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 84-85. Do mesmo modo, J.I. Packer, Vocábulos de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 1994, p. 121).(Vejam-se: Jo 15.5; 16.33; 1Co 15.57-58; Fp 4.13).
[8]John Owen, The Doctrine of Justification by faith, p. 87: In: https://ccel.org/ccel/owen/just/just.iv.viii.html (Consulta feita em 23.05.2021).
[9]Peter C. Craigie; Marvin E. Tate, Psalms 1-50, 2. ed. Waco: Thomas Nelson, Inc. (Word Biblical Commentary, v. 19), 2004, (Sl 11), p. 134.
[10]Veja-se: James M. Boice, Psalms: an expositional commentary, Grand Rapids, MI.: Baker Book House, 1994, v. 1, (Sl 11), p. 96.
[11]Herman Witsius, O Caráter do Verdadeiro Teólogo, São Paulo: Teocêntrico Publicações, 2020. (Locais do Kindle 195-197.
[12]Matthew Henry, Comentário Bíblico de Matthew Henry, 5. ed., Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2006, (Sl 11), p. 404-405.
[13]João Calvino, O Livro dos Salmos,v. 2, (Sl 68.17), p. 658.
[14]João Calvino, Exposição de 2 Coríntios,São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 1.5), p. 18.
[15]João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 46.7), p. 336.
[16]“Amados, agora, somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que haveremos de ser. Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é” (1Jo 3.2).
[17] Karl Barth, Esboço de uma Dogmática, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 21.