Pessoa e Obra do Espírito Santo (196)
b) Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem: o enviado do Pai como cabeça da igreja (Continuação)
A força e a vitalidade da Igreja estão na cabeça que é Cristo. Paulo não trata da glória da Igreja divorciada da glória de Cristo porque isso seria impossível.
Por isso é que antes de falar da igreja ele já tratou da Pessoa de Cristo (Ef 1.3-13). Sem esta compreensão, a Igreja se perderá em seus descaminhos fruto de uma compreensão errada de sua natureza e propósito. A Igreja está unida a Cristo em uma santa e perpétua união.[1] Por isso, “toda teologia, quando alienada de Cristo, é não só vã e confusa, mas também nociva, enganosa e espúria” interpreta Calvino.[2]
Não podemos falar do corpo em detrimento de sua cabeça.[3] Fazer esta separação significa dilacerar, esquartejar o Corpo de Cristo e, consequentemente a Cabeça. Sem Cristo a igreja está morta. Todos os nervos, veias e músculos estão conectados à cabeça, que lhes comanda. Não há vida real fora do cérebro. Do mesmo modo, na Igreja, não há vida fora de Cristo. Não há independência. Tratar da Igreja à revelia de Cristo é fazer uma autópsia de um corpo morto. A nossa união não é mecânica, nem artificial, antes, é orgânica e vital. Somos unidos e guiados pelo mesmo Espírito, em um só corpo, com a mesma fé, cuja cabeça é Cristo.[4]
Todas as bênçãos, todos os privilégios da vida cristã, emanam do fato de que estamos unidos a Cristo. Jesus Cristo não é uma peça decorativa, ou simbólica, antes, dele provém toda glória, poder e autoridade. A criação foi estabelecida nele e para ele.
16 pois, nele, foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam soberanias, quer principados, quer potestades. Tudo foi criado por meio dele e para ele. 17 Ele é antes de todas as coisas. Nele, tudo subsiste. 18Ele é a cabeça do corpo, da igreja. Ele é o princípio, o primogênito de entre os mortos, para em todas as coisas ter a primazia. (Cl 1.16-18).
A visão correta a respeito da Igreja passa, necessariamente, pela correta compreensão de quem é o Cristo, o Filho de Deus.
Por isso, uma Cristologia defeituosa, anencéfala – justamente por não corresponder à plenitude da revelação bíblica – gera necessariamente uma eclesiologia distante das Escrituras, tão adequável a manipulações e interesses estranhos a elas. E, ao mesmo tempo, produz uma visão míope da realidade e de nosso papel na sociedade como povo de Deus.
Considerar a Igreja fora de Cristo é um exercício de necropsia[W71] não de teologia.
Na Oração Sacerdotal,[5] pronunciada pelo Senhor Jesus antes de ser preso, lemos:
Manifestei o teu nome aos homens que me deste do mundo. Eram teus, tu mos confiaste, e eles têm guardado a tua palavra. (…) Porque eu lhes tenho transmitido as palavras que me deste, e eles as receberam, e verdadeiramente conheceram que saí de ti, e creram (pisteu/w) que tu me enviaste.(Jo 17.6,8).
O sentido do verbo crer,[W72] é o de estar totalmente persuadido, convencido. Esta persuasão é resultado do conhecimento experimental. Os discípulos receberam e conheceram a Palavra encarnada (Jesus Cristo) e a palavra por Ele transmitida. Por isso creem; estão totalmente convencidos de que Jesus Cristo é o enviado de Deus.
Sem dúvida, o testemunho de Cristo revela o seu conhecimento intenso e real do Pai. Em outro contexto dissera: “Eu o conheço (oi)=da) porque venho da parte dele e fui por ele enviado (a)poste/llw)[6]” (Jo 7.29).
Os discípulos creram na procedência do Filho partindo da Palavra que eles receberam do Senhor. Na realidade, eles foram convencidos pelo testemunho de Cristo; não foi algo mágico, antes, foram persuadidos.
Notemos que Jesus Cristo manifestou o nome do Pai transmitindo as palavras que Ele lhe dera. A partir daí, seus discípulos receberam (Jo 17.8) o testemunho de Cristo, reconheceram/conheceram (Jo 17.7-8) no Pai a fonte de tudo que recebem e a procedência de Jesus Cristo. Creram (Jo 17.8) que Jesus Cristo foi enviado pelo Pai, e, por fim, guardaram (Jo 17.6) a Palavra.
Portanto, podemos concluir que o caminho do discipulado começa pela Palavra que, sendo recebida, guardada e crida, conduz-nos a Deus.
João registra que depois de Jesus pregar à mulher samaritana e aos demais samaritanos trazidos por ela,“Muitos outros creram (pisteu/w)nele, por causa da sua palavra” (Jo 4.41).
Em outro contexto vemos que quando Jesus testemunhava a respeito do Pai, muitos creram nele:
28 Disse-lhes, pois, Jesus: Quando levantardes o Filho do Homem, então, sabereis que EU SOU e que nada faço por mim mesmo; mas falo como o Pai me ensinou. 29 E aquele que me enviou está comigo, não me deixou só, porque eu faço sempre o que lhe agrada. 30 Ditas estas coisas, muitos creram (pisteu/w)nele. (Jo 8.28-30).
Não existe vida cristã sem a convicção de quem é Jesus Cristo e de sua procedência. O mundo por não conhecer o Pai não reconheceu no Filho o seu enviado. Os discípulos, por graça, tiveram uma percepção especial: “Pai justo, o mundo não te conheceu (ou)k e)/gnw); eu, porém, te conheci (ginw/skw), e também estes compreenderam (pisteu/w)que tu me enviaste (a)poste/llw)” (Jo 17.25).
Jesus Cristo enfatiza a importância da fé alicerçada na certeza de que o Pai enviou o Filho. A questão então é: por que é necessário crer que o Filho é enviado do Pai?
Jesus ressalta a importância desta convicção durante a sua oração antes de ressuscitar a Lázaro:
Tiraram, então, a pedra. E Jesus, levantando os olhos para o céu, disse: Pai, graças te dou porque me ouviste. Aliás, eu sabia que sempre me ouves, mas assim falei por causa da multidão presente, para que creiam que tu me enviaste (a)poste/llw). (Jo 11.41-42).
Em uma única identificação direta, Jesus Cristo é chamado de forma definida de Apóstolo, o Enviado de forma única e singular, e, conforme o contexto, superior a Moisés e a Arão: “Por isso, santos irmãos, que participais da vocação celestial, considerai atentamente o Apóstolo (to\n a)po/stolon) [7] e Sumo Sacerdote da nossa confissão, Jesus” (Hb 3.1).[8]
Maringá, 27 de maio de 2021
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] “Pensar em Cristo sem a igreja é separar o que Deus uniu em santa união” (Joel Beeke, Coisas Gloriosas são ditas sobre Ti. In: John MacArthur, et. al. Avante, Soldados de Cristo: uma reafirmação bíblica da Igreja, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 33).
[2]João Calvino, Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 2, (Jo 14.6), p. 93.
[3]Vejam-se as pertinentes observações de Jacques de Senarclens, Herdeiros da Reforma, São Paulo: ASTE., 1970, p. 330-331.
[4] “É-nos suficiente saber que Cristo e seu povo são realmente um. São tão verdadeiramente um como a cabeça e os membros do mesmo corpo, e pela mesma razão; são envolvidos e animados pelo mesmo Espírito. Não se trata meramente de uma união de sentimentos, ideias e interesses. Esta é só a consequência da união vital na qual as Escrituras põem tanta ênfase” (Charles Hodge, Teologia Sistemática, São Paulo: Hagnos, 2001, p. 1004).
[5] Para um estudo desta oração, veja-se: Hermisten M.P. Costa, A Tua Palavra é a Verdade, Brasília, DF.: Monergismo, 2010.
[6]O verbo a)poste/llw, significa “enviar’, “mandar” (Mt 2.16; 11.10; Jo 1.6; At 3.20). Primariamente, no grego secular, a palavra com emprego náutico, tinha o sentido de enviar um navio de carga ou uma frota em expedição militar. Somente mais tarde é que a palavra passou a indicar uma pessoa enviada, um emissário. (Vejam-se: K.H. Rengstorf, a)poste/llw: In: Gerhard Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: WM. B. Eerdmans Publishing Co., 1983 (Reprinted), v. 1, p. 398-447 (especialmente, a página 407); E. von Eucken, et. al. Apóstolo: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 1, p. 234-239 (especialmente, a página 234).
[7]Posteriormente, Justino Mártir (c. 100-c.165 AD), também usaria esta expressão para Jesus Cristo (Veja-se: Justino de Roma, I Apologia, São Paulo: Paulus, 1995, 12.9; 63.5, p. 28 e 79).
[8]Em outro lugar (Hermisten M.P. da Costa, A Tua Palavra é a Verdade, Brasília, DF.: Monergismo, 2010) detalho esse tema, tratando de alguns motivos que caracterizam a importância do reconhecimento do Filho como enviado do Pai.