Pessoa e Obra do Espírito Santo (195)
b) Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem: o enviado do Pai como cabeça da igreja
Agostinho (354-430) fazendo uma distinção entre a fé cristã e pagã, escreve:
A fé dos cristãos não é louvável porque eles creem no Cristo que morreu, mas no Cristo que ressuscitou. Pois, também o pagão acredita que ele morreu e te acusa como de um crime teres acreditado num morto. Que tens, portanto, de louvável? Teres acreditado que Cristo ressuscitou e esperar que hás de ressuscitar por Cristo. Nisto consiste uma fé louvável. “Se confessares com tua boca que Jesus é Senhor e creres em teu coração que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo” (Rm 10.9). (…) Esta é a fé dos cristãos.[1]
Calvino resume: “Lembremo-nos de que a fé genuína está então contida em Cristo, que ela não sabe, nem deseja saber, nada mais além dele”.[2]
Portanto, a fé cristã não é um sentimento vago a respeito de algo ou alguém, antes é resultado de um genuíno conhecimento de quem é Jesus Cristo. Ele é o Senhor. Crer em Deus até os demônios creem e tremem (*fri/ssw) (= tremer de medo) (Tg 2.19). Todavia, Paulo nos fala de uma fé depositado no “Senhor Jesus” (Ef 1.16).
Bavinck (1854-1921) assim se expressou:
A fé não justifica por meio de sua própria essência, nem age por ela mesma ser justa, mas por seu conteúdo, porque é fé em Cristo, que é nossa justiça. Se a fé justificasse por si mesma, o objeto desta fé (isto é, Cristo) perderia totalmente seu valor. Mas a fé que justifica é precisamente a fé que tem Cristo como seu objeto e conteúdo.[3]
Dito isso, algumas perguntas são necessárias:
Quem é o Jesus em quem cremos? Ele é apenas um homem com uma ética perfeita? Um grande mestre? Um filantropo? Aquele que sabia como mais ninguém interpretar as necessidades e carências humanas? Um “mártir da paz”?
Sem dúvida, algumas dessas classificações podem ser verdadeiras, contudo, Ele é muito mais. Ele é o Senhor. O Deus encarnado. Verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem. Sem este conhecimento de Cristo, não podemos nos dizer cristãos.
Sem a centralidade de Cristo não há Evangelho, não há Boa Nova. O Evangelho é precisa e especificamente a apresentação da Pessoa de Cristo, da sua obra e ensinamentos.
Por isso que a Cristologia (o estudo da Pessoa e obra de Cristo) se constitui no cerne de toda Teologia Cristã.[4]
Bavinck enfatiza com precisão:
A doutrina de Cristo não é o ponto de partida, mas certamente é o ponto central de todo o sistema dogmático. Todos os outros dogmas ou preparam para ela ou são inferidos dela. Nela, que é o coração da dogmática, pulsa toda a vida eticorreligiosa do Cristianismo.[5]
A Cristologia é o eixo da Teologia Bíblica: uma visão defeituosa da Pessoa e Obra de Cristo determina a existência de uma “teologia” divorciada da plenitude da Revelação bíblica. A consciência deste fato deve nortear o nosso labor Cristológico e, também, servir como referência e ponto de partida teológico.
Só podemos falar do Cristo Salvador, se Ele de fato for – como é – o Deus encarnado. A nossa redenção não foi levada a efeito pelo Logos divino, nem pelo “Jesus humano”, mas por Jesus Cristo: Deus-Homem.[6] Não somos o senhor do Cristo, antes, seus servos. Não pretendamos apresentá-lo com cores da moda, com “tons pastéis”, tão saborosos em determinadas épocas.[7] A teologia é serva da Escritura. Somente assim ela poderá ser relevante à Igreja e a toda humanidade na apresentação do Cristo conforme é-nos dado conhecer nas Escrituras.
Descrevendo a centralidade de Cristo para o Cristianismo e a seriedade de suas reivindicações, Lewis (1898-1963) é contundente ao dizer:
Um homem que fosse só homem, e dissesse as coisas que Jesus disse, não seria um grande mestre de moral: seria ou um lunático, em pé de igualdade com quem diz ser um ovo cozido, ou então seria o Demônio. Cada um de nós tem que optar por uma das alternativas possíveis. Ou este homem era, e é, Filho de Deus, ou então foi um louco, ou cuspir nele e matá-lo como um demônio; ou podemos cair a seus pés e chamá-lo de Senhor e Deus. Mas não venhamos com nenhuma bobagem paternalista sobre ser Ele um grande mestre humano. Ele não nos deu esta escolha. Nem nunca pretendeu.[8]
A singularidade do Cristianismo repousa fundamentalmente na singularidade da Pessoa de Cristo, o Deus encarnado.[9]
Parece-nos oportuno lembrar a advertência de Calvino (1509-1564):
Devemos precaver-nos para que, cedendo ao desejo de adequar Cristo às nossas próprias invenções, não o mudemos tanto (como fazem os papistas), que ele se torne dessemelhante de si próprio. Não nos é permitido inventar tudo ao sabor de nossos gostos pessoais, senão que pertence exclusivamente a Deus instruir-nos segundo o modelo que te foi mostrado [Ex 25.40].[10]
A fé em Jesus Cristo não é uma categoria abstrata ou corriqueira, essencialmente ou circunstancialmente irrelevante, como dizer: tal ônibus passa em tal avenida, enquanto na realidade a minha locomoção invariável é de automóvel ou, dizer que o preço do pepino está altíssimo, sendo que não como pepino, minha família também não aprecia o seu sabor e, nem simpatizo com quem o faz…
Por vezes é mais fácil pensar e falar abstratamente do que concretamente. Posso discorrer com entusiasmo sobre o avanço científico nas cirurgias cardíacas, transplantes de cabeça e, os riscos comuns de contaminação hospitalar. Certamente meu discurso será mais intenso e com uma gama maior de emotividade se me referir ao “complexo exame de sangue” que farei amanhã, correndo o “risco” de perder muito sangue por meio de uma “seringa enorme” diante de um técnico laboratorial que tem uma fixação insaciável por sangue… A tendência natural do ser humano, é que a minha dor, real ou suposta, sempre é maior.
A fé em Jesus Cristo como Senhor envolve a compreensão de que Ele é senhor de todas as coisas. Portanto, o é também de minha vida. Falar do senhorio de Cristo significa não apenas tratar um tanto vagamente sobre o mundo ou sobre a igreja, mas, também, que Ele é o meu Senhor.[11] E mais: a Pessoa de Cristo está associada determinantemente à sua obra. Jesus Cristo só pode de fato nos salvar, com todas as implicações desta palavra, se verdadeiramente Ele for Deus e, Deus encarnado. Em outras palavras, não podemos separar arbitrariamente a Cristologia da Soteriologia.[12] Todas as suas reivindicações só podem ser consistentes, se Ele de fato for quem disse ser.[13]
Da mesma forma, não podemos dissociar a pessoa de Cristo da Eclesiologia. Quando Paulo usa a metáfora da Igreja como Corpo, aplica a singularidade do nome de Cristo: “Porque, assim como o corpo é um e tem muitos membros, e todos os membros, sendo muitos, constituem um só corpo, assim também com respeito a Cristo” (1Co 12.12).
Maringá, 25 de maio de 2021.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulus, (Patrística, 93), 1998, (Sl 101), v. 3, p. 32-33.
[2] João Calvino, Efésios, (Ef 4.13), p. 127.
[3]Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 214.
[4]Veja-se: Wolfhart Pannenberg, Fundamentos de Cristologia, Barcelona: Ediciones Sígueme, 1973, p. 27-28. “Cristologia é a doutrina da Igreja acerca da pessoa de Jesus como o Cristo. Ela sempre ocupa lugar central num sistema dogmático que reivindica ser cristão. Toda tentativa de remover a cristologia de seu lugar central ameaça o cerne da fé cristã. O princípio cristocêntrico da teologia não rivaliza com um ponto de vista teocêntrico. Quem quer que olhe para Jesus, o Cristo, a partir da perspectiva do Novo Testamento, estará inevitavelmente situado dentro de um quadro de referência teocêntrico. Quanto mais profundamente a teologia sonda o significado de Jesus como o Cristo de Deus, tanto mais diretamente é levada ao próprio Deus de Cristo….
“A dogmática cristã é cristocêntrica na medida em que nenhuma doutrina pode ser chamada de cristã se não contém uma conexão significativa com a revelação definitiva de Deus na pessoa de Jesus, o Cristo”(Carl E. Braaten, A Pessoa de Jesus Cristo: In: Carl E. Braaten; Robert W. Jenson, editores, Dogmática Cristã, São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1990, v. 1, p. 459). Do mesmo modo, Erickson: “Quando passamos a estudar a pessoa e a obra de Cristo, estamos bem no centro da teologia cristã” (Millard J. Erickson, Introdução à Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1997, p. 275).
[5]Herman Bavinck, Dogmática Reformada: O pecado e a salvação em Cristo, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 3, p. 279. Vejam-se: Wolfhart Pannenberg, Fundamentos de Cristologia, Barcelona: Ediciones Sígueme, 1973, p. 27-28; Donald M. Baillie, Deus Estava em Cristo,São Paulo: ASTE., 1964, p. 51; Carl E. Braaten, A Pessoa de Jesus Cristo: In: Carl E. Braaten; Robert W. Jenson, eds. Dogmática Cristã,São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1990, v. 1, p. 459; Millard J. Erickson, Introdução à Teologia Sistemática,São Paulo: Vida Nova, 1997, p. 275.
[6] Veja-se: João Calvino, As Institutas, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1985, II.14.3.
[7]“A essa altura, o evangelicalismo é fortemente contracultural, defendendo o direito fundamental do cristianismo de ser dominado por Cristo, em vez de dominá-lo à luz dos costumes sociais transitórios contemporâneos” (Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 30).
[8]C.S. Lewis, A essência do Cristianismo, São Paulo: ABU Editora, 1979, p. 29.Do mesmo modo: C.S. Lewis, O problema do sofrimento, 2. ed. São Paulo: Mundo Cristão, 1986, p. 16-17). Boice com maestria analisa as opções fornecidas por Lewis. Veja-se: James M. Boice, Fundamentos da Fé Cristã, Rio de Janeiro: Editora Central Gospel, 2011, p. 238-240. John Piper faz algo semelhante, com uma aproximação diferente. (Veja-se: John Piper, Um homem chamado Jesus Cristo, São Paulo: Vida, 2005, p. 11-12). Do mesmo modo, Josh McDowell, Mais que um carpinteiro, Venda Nova, MG.: Editora Betânia, 1989,p. 26-35.
[9] “O cristianismo é singular entre todas as religiões do mundo. A razão de sua singularidade é a figura histórica que se constitui no seu centro – Jesus Cristo” (Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 23).
[10]João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 8.5), p. 209.
[11] Veja-se: Oscar Cullman, Cristologia do Novo Testamento, São Paulo: Editora Liber, 2001, p. 302.
[12] Veja-se: W. Pannenberg, Fundamentos de Cristologia, Salamanca: Ediciones Sígueme, 1973, p. 49-50. Para uma visão abrangente das questões cristológicas levantadas ao longo da história, tratando da identidade de Cristo e da salvação, veja-se: Alister E. McGrath, Teologia sistemática, histórica e filosófica: Uma introdução à teologia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 401-501.
[13]Para um estudo sobre a Divindade e Humanidade de Cristo, veja-se: Hermisten M.P. Costa, Eu Creio, São Paulo: Paracletos, 2002; Hermisten M.P. Costa, Fé em Jesus Cristo: Verdadeiro Deus & Verdadeiro Homem, Goiânia, GO.: Editora Cruz, 2015.