Pessoa e Obra do Espírito Santo (189)
6.3.6. A fé Teocêntrica como obra do Espírito em nós
É somente a fé que justifica, e ainda assim a fé que justifica não está só –- John Calvin.[1]
Introdução
Paulo escrevendo aos efésios, demonstra alguns aspectos de como a fé ocorre:
A fim de sermos para louvor da sua glória, nós, os que de antemão esperamos em Cristo; em quem também vós, depois que ouvistes (a)kou/w = “entender”, “atender”) a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação, tendo nele também crido, fostes selados com o Santo Espírito da promessa. (Ef 1.12-13).
A fé vem pelo ouvir do Evangelho (Rm 10.17) que Paulo chama aqui de “Evangelho da vossa salvação” (13). A Palavra de Deus é poderosa neste propósito determinado pelo próprio Senhor. Anunciar o Evangelho é anunciar a Cristo, não as nossas impressões ou percepções. O Evangelho é de Deus, não nos pertence. Posso compartilhar minhas intuições e reflexões. O Evangelho, no entanto, é para ser pregado.[2]
Fé centrada em Cristo
Justamente pelo fato de o Evangelho ser centrado em Cristo, é que a genuína fé, identificada como salvadora, não é uma crença qualquer, cujo teor seja indefinido, tendo como virtude apenas o fato de poder crer; uma espécie de fé na fé. O Evangelho[3] não é algo como uma garrafa “pet” que depois de esvaziada do seu conteúdo original, pode ser preenchida com amaciante, detergente, água ou alguma outra substância.
O Evangelho conforme a Escritura nos ensina, é o próprio Senhor Jesus Cristo.[4] Nele temos “uma revelação aberta de Deus”, conclui Calvino.[5]Podemos anunciar ou não o Evangelho, porém, não temos a liberdade ou prerrogativa de modificá-lo, adocicá-lo ou, fazer um “mix” com outros ingredientes.
O Evangelho não nos pertence. Ele pertence a Deus, o seu Autor e preservador. A Boa Nova é de Deus, cujo conteúdo é o próprio Deus anunciando a salvação para todos os que sinceramente a desejarem.[6] Portanto, o Evangelho tem como conteúdo e essência[7] a Jesus Cristo como Senhor e Salvador conforme revelado na Escritura. “Ter fé é crer que aquilo que Deus diz é verdade. O conteúdo da fé cristã é a Palavra revelada de Deus”, afirma MacArthur.[8] Jesus Cristo é a Palavra encarnada.
Fé é o abandono de toda confiança em obra produzida por nós mesmos como fundamento de nossa justificação e salvação. A fé está convencida intelectualmente de sua veracidade e incontestabilidade (Hb 11.1).[9] Além deste elemento intelectual, consiste em uma rendição incondicional ao seu Senhor, em quem descansa de forma amorosa e confiante.[10]
A fé ultrapassa a nossa capacidade racional, embora a envolva, bem como a sua demonstração lógica. Ou como diz, Mcgrath: “A fé não contradiz a razão, mas a transcende por meio de uma jubilosa libertação divina dos frios e austeros limites da razão e da lógica humanas”.[11]
A fé que não parte de um conhecimento verdadeiro e, por isso mesmo, não é vivencial, não é a verdadeira fé bíblica. A verdadeira fé manifesta-se em uma confiança existencial, a qual rege o nosso coração. A fé é persuadida pelo conhecimento que a possibilitou crer.[12] “A fé salvadora é um conhecimento seguro que produz segurança e certeza. Conhecimento e segurança caminham juntos”, interpreta Bavinck.[13]
Maringá, 19 de maio de 2021.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] John Calvin, Antidote to the Canons of the Council of Trent: In: Tracts and Treatises in Defense of the Reformed Faith, Edinburgh: The Calvin Translation Society, 1851, v. 3, p. 152. (Edição mais recente dessa obra: John Calvin, Acts of the Council of Trent: with the antidote: In: Henry Beveridge, ed. and transl. Selected Works of John Calvin: Tracts and Letters, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1983 (Reprinted), v. 3, p. 152). Para uma visão panorâmica da importância desse texto de Calvino escrito em 1547, refutando os cânones de Trento, veja o breve, porém útil artigo: W. Robert Godfrey, Calvino e o Concílio de Trento: In: Michael Horton, org., Cristo o Senhor: A Reforma e o Senhorio da Salvação,São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2000, p. 115-125.
[2]“O Evangelho não é algo inventado pelas percepções dos profetas ou pregadores, mas esse Evangelho vem do próprio Deus. Ele o possui. É sua propriedade. Portanto, quando proclamamos o Evangelho, estamos proclamando uma mensagem que não é nossa” (R.C. Sproul, O Pregador Mestre: In: R. Albert Mohler, Jr., et. al. Apascenta o meu rebanho: um apaixonado apelo em favor da pregação, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 95).
[3] Para um estudo da palavra Evangelho e do seu significado, veja-se: Hermisten M.P. Costa, Teologia da Evangelização, São Paulo, 2016. (Trabalho mimeografado).
[4]“O conteúdo do Evangelho é Jesus mesmo, não um credo ou uma doutrina ou teoria acerca Dele” (Alan Richardson, Así se hicieron los Credos: Una breve introducción a la historia de la Doctrina Cristiana, Barcelona: Editorial CLIE, 1999, p. 17). “Para os Cristãos, Jesus é a personificação e a autorrevelação de Deus. No cerne da fé cristã está uma pessoa viva, não um livro” (Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 33).
[5]João Calvino, Exposição de Segundo Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 3.18), p. 78.
[6]“Elimine-se o evangelho, e todos permaneceremos malditos e mortos à vista de Deus. Esta mesma Palavra, por meio da qual somos gerados, passa a ser leite para nos criar, bem como alimento sólido para a nossa nutrição contínua” (João Calvino, Exposição de 1 Coríntios,São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 4.15), p. 143).
[7]“Cristo é o fim da lei e a suma do Evangelho” (João Calvino, Efésios,São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 2.20), p. 78).
[8]John MacArthur, Deus: Face a face com sua majestade, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2013, p. 16.
[9]“Ora, a fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não veem” (Hb 11.1).
[10]Para uma descrição sumária deste ponto, entre outros, vejam-se: R.C. Sproul, O Que é teologia Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 59-60; L. Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990, p. 506-508; Hermisten M.P. Costa, Eu Creio, São Paulo: Paracletos, 2002, p. 103-104; Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 409-412. Para uma abordagem histórico-crítica um pouco mais ampla, veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 128-135; 212-215.
[11]Alister E. McGrath, Surpreendido pelo sentido: ciência, fé e o sentido das coisas, São Paulo: Hagnos, 2015, p. 15.
[12]Veja-se: Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 412.
[13]Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 99. Veja-se: Alister E. McGrath, Surpreendido pelo sentido: ciência, fé e o sentido das coisas, São Paulo: Hagnos, 2015, p. 14-15.