Os eleitos de Deus e o seu caminhar no tempo e no teatro de Deus (66)
11.10. Proclamação[1]
Agostinho (354-430) fez algumas indagações pertinentes:
Alguns dizem: “A doutrina da predestinação é prejudicial à utilidade da pregação”. Como se fosse contrária à pregação do apóstolo: O Doutor dos Gentios não proclamou tantas vezes a predestinação na fé e na verdade e por acaso desistiu de pregar a Palavra de Deus? (…) Por que julgamos a doutrina da predestinação, que a Escritura divina proclama, como prejudicial à pregação, aos mandamentos, à exortação e à correção, que aparecem tantas vezes na mesma Escritura?[2]
De fato, há sempre o perigo de nossa teologia se transformar em um cerceamento das Escrituras, como se pretendêssemos delimitar de forma policiada a Deus, um “velhinho caduco” que já não diz coisa-com-coisa e, por isso, precisa ser atenuado em Sua Revelação.
Calvino (1509-1564), comentando Gálatas 4.26, diz:
A Igreja enche o mundo todo e é peregrina sobre a terra. (…) Ela tem sua origem na graça celestial. Pois os filhos de Deus nascem, não da carne e do sangue, mas pelo poder do Espírito.
Continua:
Eis a razão por que a Igreja é chamada a mãe dos crentes.[3] E, indubitavelmente, aquele que se recusa a ser filho da Igreja debalde deseja ter a Deus como seu Pai. Pois é somente através do ministério da Igreja que Deus gera filhos para si e os educa até que atravessem a adolescência e alcancem a maturidade.[4]
A peregrinação da Igreja tem um sentido missionário (“Até os confins da terra”) e escatológico (“Até a consumação do século”): Enquanto ela caminha, confronta os homens com a mensagem do Evangelho, conclamando a todos ao arrependimento e fé em Cristo Jesus até que Ele volte.
Deus chama os seus eleitos por meio da pregação da Palavra. “Deus quer que o Evangelho seja proclamado ao mundo todo e em todo o tempo para que seja congregada a soma total dos eleitos”, escreve Kuiper.[5] A Palavra de Deus é sempre um ato criador, por meio da qual Deus chama, convence, transforma e edifica os Seus.
Cada um de nós que foi alcançado pela Graça de Deus, tornou-se um instrumento de testemunho da bendita salvação, a fim de que o povo de Deus seja salvo (Rm 10.14-17/At 18.9-11).[6] A Igreja é chamada para fora do mundo a fim de invadir o mundo com a pregação do Evangelho (Mt 5.14-16; Mc 16.15-16; At 1.8; 1Co 9.16).[7] A eleição eterna de Deus, inclui os fins e os meios.[8] Os meios de Deus são infalíveis porque Deus também o é.[9]
Nós somos o meio ordinário estabelecido por Deus para que o mundo ouça a mensagem do Evangelho. Jesus Cristo confiou à Igreja a tarefa evangelística. A Igreja, escreve Kuiper, é “o agente por excelência para a evangelização”.[10] Nenhum homem será salvo fora de Cristo; mas para que a salvação ocorra ele tem que conhecer o Evangelho da graça. Como crerão se não houver quem pregue? (Rm 10.13-15). “O evangelismo pelo qual Deus leva os seus eleitos à fé é um elo essencial na corrente dos propósitos divinos”, conclui Packer.[11]
Ridderbos (1909-2007), diz acertadamente que “A igreja é o povo que Deus separou para Si em sua atividade salvífica, para que mostrasse a imagem de Sua graça e Sua salvação”.[12]
Aqui também, podemos frisar o ponto, de que quando estamos levando o Evangelho a todos os homens, cumprindo prazerosamente parte de nossa missão, estamos de fato demonstrando o nosso amor pelo nosso próximo, desejando que ele conheça a Cristo e, segundo a misericórdia de Deus, se arrependa e creia.[13]
Como bem observou Kuiper (1886-1966):
A eleição requer a evangelização. Todos os eleitos de Deus têm que ser salvos. Nenhum deles pode perecer. E o evangelho é o meio pelo qual Deus lhes comunica a fé salvadora. De fato, é o único meio que Deus emprega para esse fim.[14](Ef 1.13).
O meio ordinário de Deus agir é chamando, persuadindo e congregando o Seu povo por intermédio do Seu povo. Em outras palavras, nós somos instrumentos, “elos vitais” no desenvolvimento do propósito salvífico de Deus, proclamando a Sua Palavra de salvação.[15] Deus opera por meio da Sua Palavra, contudo, conforme já citamos as palavras de Calvino, “só quando Deus irradia em nós a luz de seu Espírito é que a Palavra logra produzir algum efeito. Daí a vocação interna, que só é eficaz no eleito e apropriada para ele, distingue-se da voz externa dos homens”.[16]
Cabe aqui uma palavra de advertência e consolo quanto à nossa responsabilidade e limite: Quem será salvo? Quantos serão salvos? São perguntas que não nos compete fazer. Contudo, a nossa responsabilidade é de cumprir a ordem expressa de Cristo, de anunciar o Evangelho a todas as pessoas, sabendo que a conversão é uma operação do Espírito, que ultrapassa à nossa capacidade.[17]
Compete-nos apenas pregar, não especular.[18] Calvino nos ensina mais uma vez:
Ademais, devemos depreender dessa passagem que a doutrina da predestinação não serve para nos arrebatar para as especulações extravagantes, mas para abater todo orgulho em nós, bem como a tola opinião que sempre concebemos do nosso valor e mérito próprios, e para mostrar que Deus tem livre poder sobre nós, bem como privilégio e domínio soberano, de tal modo que pode reprovar a quem quiser e eleger a quem lhe apetecer.[19]
São Paulo, 31 de maio de 2019.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
*Leia esta série completa aqui.
[1] Aspectos desse assunto foram desenvolvidos em meu livro: Efésios: O Deus Bendito, São Paulo: Cultura Cristã, 2010.
[2]S. Agostinho, A Graça (II), São Paulo: Paulus, 1999, p. 247,248.
[3] “A Igreja é a mãe comum de todos os piedosos” (João Calvino, Efésios, (Ef 4.12), p. 125).
[4] João Calvino, Gálatas, (Gl 4.26), p. 144. Veja-se: As Institutas, IV.1.1.
[5] R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, p. 21. (Veja-se, também, p. 39).
[6] “Como, porém, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados? Como está escrito: Quão formosos são os pés dos que anunciam coisas boas! Mas nem todos obedeceram ao evangelho; pois Isaías diz: Senhor, quem acreditou na nossa pregação? E, assim, a fé vem pela pregação, e a pregação, pela palavra de Cristo” (Rm 10.14-17). “Teve Paulo durante a noite uma visão em que o Senhor lhe disse: Não temas; pelo contrário, fala e não te cales; porquanto eu estou contigo, e ninguém ousará fazer-te mal, pois tenho muito povo nesta cidade. E ali permaneceu um ano e seis meses, ensinando entre eles a palavra de Deus” (At 18.9-11). O pequenino e edificante livro de Tyler é baseado neste texto. Ver: Bennet Tyler, Eleição: incentivo para pregar o Evangelho, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, (s.d.), 24p.
[7]Vejam-se: Michael Green, Estratégia e Métodos Evangelísticos na Igreja Primitiva: In: A Missão da Igreja no Mundo de Hoje, São Paulo; Belo Horizonte, MG.: ABU; Visão Mundial, 1982, p. 67-68 e Bruce L. Shelley, A Igreja: O Povo de Deus, São Paulo: Vida Nova, 1984, p. 127.
[8] Confissão de Westminster, (1647), III.6. Ver também: R.C. Sproul, Eleitos de Deus, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998, p. 190;; Bennet Tyler, Eleição: incentivo para pregar o Evangelho, p. 12ss.
[9] “Os muitos meios para o fim de salvar cada um dos eleitos são tão eficazes que terminam sempre em resultados bem-sucedidos. Os meios são infalíveis porque Deus é infalível” (R.K. McGregor Wright, A Soberania Banida: Redenção para a cultura pós-moderna, São Paulo: Cultura Cristã, 1998, p. 143).
[10] R.B. Kuiper, El Cuerpo Glorioso de Cristo, p. 220. (Veja-se todo o capítulo, p. 220-226).
[11] J.I. Packer, Vocábulos de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 1994, p.146.
[12] Herman Ridderbos, El Pensamiento del Apóstol Pablo, Buenos Aires: La Aurora, 1987, v. 2, § 53, p. 9.
[13] John Stott observou bem este ponto, ao declarar em 1974: “A Grande Comissão não explica ou esgota, nem supera o Grande Mandamento. O que ela faz, na verdade, é acrescentar ao mandamento do amor e serviço ao próximo uma nova e urgente dimensão cristã. Se de fato amamos o nosso próximo, não há dúvida de que lhe diremos as boas novas de Jesus” (John R.W. Stott, A Base Bíblica da Evangelização: In: A Missão da Igreja no Mundo de Hoje, São Paulo; Belo Horizonte, MG. ABU; Visão Mundial, 1982, p. 37).
[14] R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, p. 28.
[15] Veja-se: J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, p. 66-67.
[16] João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 10.16), p. 374 A vocação eficaz do eleito, “não consiste somente na pregação da Palavra, senão também na iluminação do Espírito Santo” (J. Calvino, As Institutas, III.24.2). Do mesmo modo, Spurgeon escreveu: “Nós nunca conheceremos nada enquanto não formos ensinados pelo Espírito Santo, que fala mais ao coração do que ao ouvido” (C.H. Spurgeon, Firmes na Verdade, Lisboa: Peregrino, 1987, p. 72).
[17] Na manhã do domingo de 2 de outubro de 1859, o então jovem ministro Charles Spurgeon (1834-1892), pregava em Londres sobre “O Sangue do Concerto Eterno” (Hb 13.20). Ao aproximar-se do final de sua exposição, diz: “O decreto da eleição é limitado, porém as boas novas abrangem o mundo todo. A ordem que recebi de Deus é a de proclamar as boas novas a toda criatura debaixo do céu. A aplicação eficaz do evangelho está restringida aos eleitos de Deus, e consequentemente pertence à vontade secreta de Deus, porém não é assim com a mensagem; esta deve ser anunciada a todas as nações” (C.H. Spurgeon, Sermões no Ano do Avivamento, p. 60).
[18] “A predestinação divina se constitui realmente num labirinto do qual a mente humana é completamente incapaz de desembaraçar-se. Mas a curiosidade humana é tão insistente que, quanto mais perigoso é um assunto, tanto mais ousadamente ela se precipita para ele. Daí, quando a predestinação se acha em discussão, visto que o indivíduo não pode conter-se dentro de determinados limites, imediatamente, pois, mergulha nas profundezas do oceano de sua impetuosidade” (J. Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 9.14), p. 329-330). Ver: João Calvino, Efésios, (Ef 1.4), p. 26.
[19] João Calvino, Sermões em Efésios, Brasília, DF.: Monergismo, 2009, p. 82.
Aceitamos tantas coisas inexplicáveis como a trindade, o nascimento virginal de Cristo e nos esbarramos na Soberania de Deus por causa da prepotência humana, nada mais.