Os eleitos de Deus e o seu caminhar no tempo e no teatro de Deus (38)
6) Os mansos, a terra e o Reino
Há uma diferença fundamental entre ter um bem e ser possuído por ele. Quando colocamos o nosso coração naquilo que temos, parece que já não mais o temos, o bem é que nos possui, dominando o centro vital de nosso pensar, sentir e agir – o nosso coração. Quando o que devemos dominar nos subjuga, nos desumanizamos.[1] Li posteriormente: “Aquele cuja paixão é a busca por possuir, será possuído”.[2]
Devemos, portanto, viver neste mundo com moderação, sem colocar o coração nos bens materiais, pois tais sentimentos nos fazem esquecer a vida celestial[3] e de “adornar nossa alma com seus verdadeiros atavios”.[4]
Os incrédulos, por sua vez, mesmo usufruindo de bênçãos materiais provenientes de Deus, estão sempre perplexos e infelizes, não conseguem desfrutar com alegria das boas coisas que Deus lhes dá.[5] Tais homens são possuídos pelos seus bens e nunca se valem dignamente desta manifestação da graça comum de Deus.
Jesus Cristo diz que os mansos herdarão a terra. No Novo Testamento, além da associação natural do verbo herdar (klhronome/w), o substantivo herança (klhronomi/a) e o adjetivo herdeiro (klhrono/moj)[6] com o recebimento de posses da parte dos pais (Mt 21.37-38; Lc 12.13; Gl 4.30), encontramos, com maior ênfase, a conotação espiritual de:
- Herança do Reino de Deus e de Cristo (Mt 25.34; 1Co 6.9,10; 15.50; Gl 5.21; Ef 5.5; Tg 2.5),
- Vida eterna (Mt 19.29; Mc 10.17; Lc 10.25; 18.18; Tt 3.7; Hb 9.15),
- Salvação (Ef 1.14,18; Cl 3.24; 1Pe 1.4; Hb 1.14/Hb 6.12/At 20.32),
- Glória futura (Rm 8.17-18) e
- Bênção (1Pe 3.9/Hb 12.17/Ap 21.7).
Devemos observar que todas essas heranças advêm de Cristo, visto que ele é o herdeiro único e pleno de todas as coisas: “Nestes últimos dias, nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro (klhrono/moj) de todas as coisas, pelo qual também fez o universo” (Hb 1.2).
Pois bem: Jesus Cristo, que é herdeiro de todas as coisas, terrenas e celestiais, no seu justo direito, garante que os mansos herdarão a terra. Aqui podemos dar um sentido material perceptivo afirmando que os mansos, na percepção perfeita da graça de Deus, reconhecem em tudo que tem esta manifestação. Portanto, tendo bens, não colocarão seus corações nisto, sendo, deste modo, verdadeiramente possuidores da terra, sem se deixar possuir por ela.
Há também um sentido espiritual e escatológico: o nosso bem maior, a nossa terra prometida não é esta, mas os novos céus e nova terra criados pelo Senhor, cuja vida e grandeza estarão no Senhor que com sua presença comunica vida, alegria e paz a todos os seus habitantes. Aqui somos peregrinos e estranhos, lá seremos cidadãos e herdeiros por graça. A partir da cruz histórica nasceu a renovação da terra que seremos os herdeiros.
Contudo, há algo de maravilhosamente surpreendente: a nossa herança, a rigor falando, é o próprio Senhor Jesus Cristo, senhor do céu e da terra.
Vi novo céu e nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe. 2 Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus, ataviada como noiva adornada para o seu esposo. 3 Então, ouvi grande voz vinda do trono, dizendo: Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Deus habitará com eles. Eles serão povos de Deus, e Deus mesmo estará com eles. 4 E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram. 5 E aquele que está assentado no trono disse: Eis que faço novas todas as coisas. E acrescentou: Escreve, porque estas palavras são fiéis e verdadeiras. 6 Disse-me ainda: Tudo está feito. Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim. Eu, a quem tem sede, darei de graça da fonte da água da vida. (Ap 21.1-6).
Percebam o ensino antitético de Jesus Cristo. Aqueles que aos olhos naturais aparentemente nada têm, sendo desconsiderados e tidos como derrotados, são, na realidade, os que conseguem controlar suas paixões, confiando no cuidado misericordioso de Deus. Tais homens são iguais a Paulo: pobres, enriquecendo a muitos e, paradoxalmente, “nada tendo, mas possuindo tudo” (1Co 6.10). Estes são aqueles que podem dizer também com o Apóstolo Paulo, referindo-se a Jesus Cristo: “…. com ele reinaremos” (2Tm 2.12).
Considerações pontuais
A mansidão, conforme nos mostra a Escritura, é aquela qualidade do homem que suporta com paciência as aflições, confiando em Deus, tendo seus impulsos pecaminosos dominados pelo Senhor, submetendo-se com alegria aos desígnios de Deus. No entanto, insistimos: mansidão não é sinônimo de inércia. Jesus Cristo, o exemplo absoluto de mansidão, indignou-se com a incredulidade de seus ouvintes (Mc 3.5)[7] e expulsou os cambistas do templo por estarem profanando-o (Mc 11.15-17).
Ter um espírito manso significa ser totalmente controlado pelo Espírito de Deus, o que nos permite suportar com paciência os reveses da vida e, ao mesmo tempo, sermos ousados em nos manifestar contra aquilo que ofende a Deus e à sua casa.
A mansidão não é algo natural, resultado de nosso temperamento ou caráter;[8] antes, é uma qualidade espiritual aprendida de Cristo (Mt 11.29/2Co 10.1).[9] No texto de Efésios 4, Paulo nos orienta para que vivamos na Igreja de forma mansa, com gentileza e tolerância, expressando a nossa humildade em nosso trato pessoal. A mansidão é a expressão de um coração humilde e confiante em Deus. Quem assim procede, pela graça de Deus, será amplamente abençoado aqui e herdará a vida eterna. Que Deus nos capacite a viver deste modo! Amém!
São Paulo, 30 de abril de 2019.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
*Leia esta série completa aqui.
[1] Veja-se: Hans W. Wolff, Antropologia do Antigo Testamento, 2. ed. São Paulo, SP.; São Leopoldo, RS: Loyola; Sinodal, 1983, p. 291.
[2] Os Guinness, Sete Pecados Capitais, São Paulo: Shedd Publicações, 2006, p. 171.
[3] A alegria cristã não está simplesmente condicionada ao ter e possuir. “Ainda que os fiéis também aspirem e busquem o conforto terreno, todavia não o perseguem com imoderado e desordenado ardor, senão que, pacientemente, podem suportar ser privados dele, desde que tenham consciência de que são objetos do cuidado divino” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 4.7), p. 108).
[4] Juan Calvino, Institución de la Religión Cristiana, Rijswijk, Países Bajos: Fundación Editorial de Literatura Reformada, 1967 (Nueva Edición Revisada), III.10.4. “Os crentes gozam de genuína riqueza quando confiam na providência divina que os mantém com suficiência e não se desvanecem em fazer o bem por falta de fé. (…) Ninguém é mais frustrado ou carente do que aquele que vive sem fé, cuja preocupação com suas posses dilui toda a sua paz” (João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 9.11), p. 193-194).
[5]Veja-se: João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 17.15), p. 349-350.
[6] Quanto à origem e emprego da palavra, veja-se: J. Eichler, Herança: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 2, p. 364-371.
[7] O filósofo Bertrand Russell (1872-1970), quando alega o fato de Jesus manifestar “uma fúria vinditiva contra os que não davam ouvidos aos seus ensinamentos”, como sendo um argumento para ele não ser cristão (Cf. Bertrand Russel, Porque não sou Cristão, 2. ed. São Paulo: Livraria Exposição do Livro, 1972, p. 28), peca pelo fato de não considerar que a ira de Jesus era acompanhada de um sentimento de “aflição”, “totalmente aflito” (Mc 3.5. sullupe/omai), pela dureza de seus corações, pois, aqueles que ali estavam (havia fariseus no grupo, Cf. Mc 3.6), tinham interesse em acusá-lo (Mc 3.2) e, também, não devemos nos esquecer de que a ira de Jesus não era causada por motivos egoísticos, mas, pelo fato da Palavra de Deus por ele anunciada não ser ouvida pelo povo, que seguia a influência farisaica.
Contudo, esses argumentos não valem para Russell pois ele se declara agnóstico quanto a Deus (Cf. Bertrand Russel, Porque não sou Cristão, p. 55, 159) e, também, porque considera os cristãos não muito inteligentes (Cf. Bertrand Russel, Educação e Ordem Social, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956, p. 80-81).
A ira divina descrita nas Escrituras, entre outras, tem as seguintes motivações: a incredulidade: Mc 3.5; Jo 3.36; “impiedade e perversão” daqueles que “detêm a verdade pela injustiça” (Rm 1.18); desobediência: Rm 2.8; Ef 2.3; 5.6; Cl 3.6. Notemos que todos esses textos revelam a livre escolha do homem em renunciar a Palavra de Deus, o próprio Deus.
[8] Vejam-se: David M. Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do Monte, São Paulo: Editora Fiel, 1984, p. 61; H.H. Esser, Humildade: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 2, p. 386; G.B. Funderburk, Mansidão: In: Merrill C. Tenney, org. ger., Enciclopédia da Bíblia, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, v. 4, p. 80; Jerry Bridges, A Vida Frutífera, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 18-20.
[9] “… aprendei (manqa/nw) de mim, porque sou manso (prau/+j) e humilde de coração; e achareis descanso para a vossa alma” (Mt 11.29). “E eu mesmo, Paulo, vos rogo, pela mansidão (prao/thj) e benignidade de Cristo, eu que, na verdade, quando presente entre vós, sou humilde; mas, quando ausente, ousado para convosco” (2Co 10.1).
O “bem” é sinônimo de “coisas”, e é isso que nos difere de Deus. Deus gosta de gente, nos gostamos de coisas.