Os eleitos de Deus e o seu caminhar no tempo e no teatro de Deus (3)
Calvino e a predestinação
Calvino ao tratar da predestinação não partiu de uma questão especulativa, fruto de abstrações desprovidas de sustentação concreta (a priori). O seu foco é existencial – os fatos compartilhados por todos nós; a sua abordagem, no entanto, é soteriológica e pastoral. A problemática, entre outras, com a qual ele se deparou – comum a todos nós ainda hoje –, é: por que nem todos creem no Evangelho?.[1]
Nas Institutas (1541), quando Calvino vai tratar da Predestinação e da Providência de Deus, inicia o capítulo com palavras sóbrias oriundas de uma constatação comum aos crentes. Ao mesmo tempo revela a orientação pastoral de sua teologia, preocupada com a compreensão da Palavra de Deus por parte do Seu povo:
Tendo-se em vista o fato de que a Aliança da Vida não é pregada igualmente a todos, e também que onde é pregada não é recebida igualmente por todos, vê-se nessa diversidade um admirável mistério do juízo de Deus. Não há dúvida nenhuma de que essa variedade atende ao Seu beneplácito, agrada ao Seu querer. Pois bem, como é evidente que isto é feito pela vontade de Deus – que a salvação é oferecida a uns e os outros são deixados de lado – daí decorrem grandes e altas questões, as quais só se resolvem ensinando aos crentes o que eles podem compreender da eleição e da predestinação de Deus.[2]
Na sequência, acrescenta, conforme citamos no início desses estudos:
Quando os homens quiserem fazer pesquisa sobre a predestinação, é preciso que se lembrem de entrar no santuário da sabedoria divina. Nesta questão, se a pessoa estiver cheia de si e se intrometer com excessiva autoconfiança e ousadia, jamais irá satisfazer a sua curiosidade. Entrará num labirinto do qual nunca achará saída.[3] Porque não é certo que as coisas que Deus quis manter ocultas e das quais Ele não concede pleno conhecimento sejam esquadrinhadas dessa forma pelos homens. Também não é certo sujeitar a sabedoria de Deus ao critério humano e pretender que este penetre a Sua infinidade eterna. Pois Ele quer que a Sua altíssima sabedoria seja mais adorada que compreendida (a fim de que seja admirada pelo que é). Os mistérios da vontade de Deus que Ele achou bom comunicar-nos, Ele nos testificou em Sua Palavra. Ora, Ele achou bom comunicar-nos tudo o que viu que era do nosso interesse e que nos seria proveitoso.[4]
Comentando o texto de 2Pedro 3.9, – “Não retarda o Senhor a sua promessa, como alguns a julgam demorada; pelo contrário, ele é longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento” (2Pe 3.9) –, revela a sua preocupação pastoral e, ao mesmo tempo, a sua honestidade diante da aparente antinomia:[5]
Tão maravilhoso é seu amor pela humanidade, que ele poderia salvar a todos, e que ele mesmo está preparado para dar salvação ao perdido. A ordem é para ser noticiada, que Deus está pronto para receber todos ao arrependimento, de modo que nenhum se perca. (…) Pode ser perguntado aqui: se Deus não quer que ninguém pereça, por que então muitos perecem? Para isso, minha resposta é que não há menção, aqui, sobre o decreto secreto de Deus pelo qual os ímpios são condenados à sua própria ruína, mas somente de sua própria vontade como feita conhecida para nós no Evangelho. Pois, ali, Deus estende a mão sem distinção a todos, mas só segura, de forma a conduzi-los a si, aqueles que Ele escolheu antes da fundação do mundo.[6]
Mcgrath enfatiza:
Longe de ser uma especulação teológica árida e abstrata, a análise de Calvino sobre a predestinação se inicia a partir de fatos empíricos.[7]
Portanto, continua:
A crença na predestinação não é uma questão de fé em si mesma, mas representa o resultado final de uma reflexão, informada pelas Escrituras, a respeito dos efeitos da graça sobre os indivíduos, à luz dos enigmas da experiência. A experiência ensina que Deus não toca todo coração humano (As Institutas, III.24.15).[8]
Prossegue:
Para Calvino, a predestinação é apenas um exemplo adicional do mistério da existência humana, por meio do qual alguns são inexplicavelmente favorecidos por dons materiais e intelectuais, os quais são negados a outros. A predestinação não levanta qualquer dificuldade que já não esteja presente em outras áreas da existência humana.[9]
Deste modo, este assunto é para ser tratado pelo povo de Deus. Não tem nenhum sentido debates “acadêmicos” sem um coração novo: a revelação de Deus não visa satisfazer a nossa curiosidade ou perguntas acidentais da nossa vida; Deus sempre trata do que é vital para esta existência e para a por vir. Quando vemos a abordagem de Calvino a este assunto, percebemos que a sua preocupação é fortemente pastoral e não especulativa.[10]
Ele nos instrui: “Quão perigoso para a Igreja é esse conhecimento que conduz às controvérsias, ou seja, o conhecimento que ignora a piedade e se preocupa só com a ostentação pessoal. Toda a assim chamada teologia especulativa dos papistas pertence a essa categoria”.[11]
Não deixa de ser instrutivo e revelador o fato de Calvino, na edição final das Institutas (1559), ter tratado deste assunto depois de um longo capítulo sobre a oração que, sozinho, é maior do que os quatro dedicados à doutrina da Eleição.[12]
Também, deve ser destacado que este assunto foi sendo ampliado conforme ele reescrevia as Institutas e elaborava seus comentários bíblicos. Na primeira edição (1536), a doutrina da “Eleição e Predestinação” foi tratada dentro da quarta parte do Credo Apostólico.[13] Na edição final (1559), a doutrina foi amplamente desenvolvida, sendo agora estudada dentro do contexto da soteriologia.[14]
Calvino não sentia a necessidade de explicar todas as partes das Escrituras, sentia-se sim, no dever pastoral de ensinar tudo o que as Escrituras ensinavam. A aceitação do paradoxo ou antinomia faz parte da própria limitação nossa diante da Revelação de Deus.
Ele diz textualmente:
Toda verdade proclamada referente a Cristo é completamente paradoxal pelo prisma do juízo humano. Entretanto, o nosso dever é prosseguir em nossa rota. Cristo não deve ser suprimido só porque para muitos ele não passa de pedra de ofensa e rocha de escândalo. Ao mesmo tempo que ele prova ser destruição para os ímpios, em contrapartida ele será sempre ressurreição para os fiéis.[15]
A Escritura é suficientemente clara, mas não absolutamente clara em todas as coisas. A própria Confissão de Westminster nos instrui:
Na Escritura não são todas as coisas igualmente claras em si, nem do mesmo modo evidentes a todos; contudo, as coisas que precisam ser obedecidas, cridas e observadas para a salvação, em uma ou outra passagem da Escritura são tão claramente expostas e aplicadas, que não só os doutos, mas ainda os indoutos, no devido uso dos meios ordinários, podem alcançar uma suficiente compreensão delas. (I.7).
Calvino jamais considerou como tarefa da teologia conciliar aparentes paradoxos que considerava mistérios centrais das Escrituras.
Dowey Jr. (1918-2003) comenta:
Calvino, pois, estava plenamente convencido de que havia alto grau de claridade e compreensibilidade nos temas individuais da Bíblia, mas estava, também, tão submisso ante o mistério divino a ponto de preferir criar uma teologia contendo muitas inconsistências de lógica, ao invés de optar por um todo racionalmente coerente. (…) Claridade de temas individuais, incompreensibilidade de suas inter-relações – essa é a marca registrada da teologia de Calvino.[16]
São Paulo, 29 de março de 2019.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
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[1] “O ponto de partida de sua doutrina (predestinação) foi sempre a experiência cristã e o reconhecimento de que a graça não é oferecida a todos igualmente, e nem por todos igualmente recebida – fatos que via confirmados na Escritura e pela observação diária” (Henry Strohl, O Pensamento da Reforma, São Paulo: ASTE, 1963, p. 151).
[2]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.8), p. 37. Este mesmo princípio orientador foi mantido na edição final (1559): “Já, porém, que o pacto de vida não é pregado entre todos os homens igualmente e, entre aqueles a quem é pregado, não acha a mesma receptividade, ou qualitativa, ou continuativamente, nessa diversidade se manifesta a admirável profundeza do juízo divino. Pois, nem padece dúvida de que esta variedade sirva também ao arbítrio da eterna eleição de Deus” (J. Calvino, As Institutas, III.21.1).
[3]Calvino usa a mesma expressão quando se refere à doutrina da Trindade: “Ora, se a distinção que em uma só é única divindade subsiste de Pai, Filho e Espírito, posto que é difícil de apreender-se, causa a certos espíritos mais dificuldade e problema do que é justo, lembrar-se devem de que as mentes humanas penetram em um labirinto quando cedem à sua curiosidade e, destarte, por mais que não alcancem a altura do mistério, deixem-se reger dos oráculos celestes” (As Institutas, I.13.21).
[4]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.8.1), p. 38.
[5] Uso a expressão “antinomia” do mesmo sentido que Packer a emprega (J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 16ss.). Podemos chamar também este conceito de “paradoxo lógico” (Para uma visão crítica do emprego do termo “antinomia”, não do conceito teológico sustentado por Packer, ver: R.C. Sproul, Eleitos de Deus, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998, p. 38-40 e Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1999, p.18. Veja-se também: K.S. Kantzer, Paradoxo: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1998-1990, v. 3, p. 98-99 e Anthony Hoekema, Salvos pela Graça, São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 11-13.
[6]John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996, v. XXII, (2Pe 3.9), p. 419-420. Por outro lado, orienta: “Deus não é destituído de sua misericórdia em manifestar, em ocasiões próprias, a severidade do Juiz, ao tentar de todas as formas, porém em vão, em trazer o pecador ao arrependimento, tampouco pode o exercício de tal severidade ser considerado uma impugnação de sua clemência” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Edições Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 58.10), p. 526).
[7]Alister E. McGrath, A Vida de João Calvino, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 195.
[8]Alister E. McGrath, A Vida de João Calvino, p. 195.
[9]Alister E. McGrath, A Vida de João Calvino, p. 196. Ver também: I. John Hesselink, Calvin’s First Catechism: A Commentary. Louisville, Kentucky: Westminster; John Knox Press, 1997, p. 94.
[10] Philip Schaff (1819-1893) referindo-se a Calvino, diz que “seu principal interesse foi mais religioso do que metafísico. Ele achou nesta doutrina [predestinação] o apoio mais forte para a sua fé. Ele combinou com isto a certeza da salvação, que é o privilégio e conforto de todo crente. Neste ponto ele diferiu de Agostinho, que ensinou o conceito católico da incerteza subjetiva de salvação. Calvino fez da certeza, Agostinho a incerteza, um estímulo ao zelo e santidade” (Philip Schaff; David S. Schaff, History of the Christian Church, Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1996, v. 8, p. 549). Ver também: Philip Schaff; David S. Schaff, History of the Christian Church, v. 8, p. 561.
[11] João Calvino, As Pastorais, (2Tm 2.14), p. 232. “A ambição é sempre contenciosa e nos conduz às polêmicas, de modo que aqueles que desejam aparecer estão sempre prontos a desembainhar a espada a pretexto de qualquer tema” (João Calvino, As Pastorais, (1Tm 6.20), p. 186). Como os jovens são mais irritáveis, dá uma orientação mais específica: “Os jovens, em meio às controvérsias, se irritam muito mais depressa do que os de mais idade; se iram mais facilmente, cometem mais equívocos por falta de experiência e se precipitam com mais ousadia e temeridade. Daí ter Paulo boas razões para aconselhar a um jovem a precaver-se contra os erros próprios de sua idade, os quais, de outra forma, poderiam facilmente envolvê-lo em disputas inúteis” (João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (2Tm 2.22), p. 244).
[12]Veja-se: J. Calvino, As Institutas, III.20. Do mesmo modo, no Catecismo de Genebra, das 373 perguntas (Catecismo de Genebra. In: Catecismos de la Iglesia Reformada, Buenos Aires: La Aurora, 1962), Calvino dedica 63 à oração. Assim também, na Instrução na Fé (Goiânia: Logos Editora, 2003), uma das seis partes é dedicada à oração. Veja-se: Moisés Silva, Em Favor da Hermenêutica de Calvino: In: Walter C. Kaiser Jr.; Moisés Silva, Introdução à Hermenêutica Bíblica, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 256-257.
[13] Ver: Juan Calvino, Institución de la Religión Cristiana, Buenos Aires; México: La Aurora; Casa Unida de Publicaciones, (1958), v. 1, p. 192-196.
[14] João Calvino, As Institutas, III.21-24.
[15]João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Edições Paracletos, 1997, (Rm 6.1), p. 201-202.
[16] Edward A. Dowey, Jr., The Knowledge of God in Calvin’s Theology, New York: Columbia University Press, 1952, p. 39-40. George comenta: “Com toda sua reputação de teólogo de lógica rigorosa, Calvino preferiu viver com o mistério e a incoerência de lógica a violar os limites da revelação ou imputar culpa ao Deus que as Escrituras retratam como infinitamente sábio, completamente amoroso e absolutamente justo” (Timothy George, A Teologia dos Reformadores, São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 209).