O Ser, as pessoas e as coisas: ontologia, epistemologia e ética (3)
Poder absoluto e poder ordenado
A soberania de Deus se manifesta no fato dele poder fazer tudo o que faz (poder ordenado) e mesmo aquilo que não realiza, visto que não determinou fazê-lo (poder absoluto). O poder absoluto de Deus envolve o seu poder ordenado.[1] E o poder ordenado delimita o poder absoluto pela própria decisão restritiva de Deus: quando Deus decide fazer o que faz, delimitou a sua ação de forma que não mais pode fazer o que não determinou fazer. O poder de Deus é sempre condizente com a totalidade de seus atributos.
Deus exerce o seu poder no cumprimento do que decretou e nas obras da providência. Aliás, as obras da providência consistem na execução temporal dos decretos eternos de Deus.[2] Contudo, o que Deus realiza não serve de limites para o seu poder. “Destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão”, adverteJoão Batista aos arrogantes descendentes da carne, mas, não da fé de Abraão (Mt 3.9).
Na Criação e preservação temos uma magnífica amostragem da majestade de Deus e de seu poder, não, contudo, a totalidade. O poder de Deus transcende infinitamente o seu poder revelado. O seu poder é maior do que tudo o que criou. Todavia, o seu poder sempre será, em ato e potência, consoante com as suas eternas perfeições.[3]
Tudo o que Ele deseja, pode realizar (Mt 19.26; Jó 23.13[4]).[5] No entanto, Deus não precisa exercitar o seu poder para ser o que é. Não há em Deus um vácuo entre ato é potência. Ele pode fazer tudo o que desejar. Porém, não deseja tudo o que poderia fazer se assim o determinasse. A sua ação é determinada por seus sábios e voluntários decretos os quais, por sua vez, não estão sujeitos a conselhos ou pressões externas. Os seus decretos, além de eternos – portanto, antes da criação –, são consistentes consigo mesmo e uma expressão deliberativa de sua natureza.
Deus realiza o que realiza porque, além de plenos poderes para fazê-lo, Ele age conforme a sua santa vontade e, quando for o caso, conforme as suas promessas.
Declarar a liberdade soberana de Deus é reconhecer que Deus é Deus, contemplando-o na real esfera de sua natureza e revelação.[6]
Os amigos de Daniel e sua confiança irrestrita em Deus
Quando Nabucodonosor quis obrigar os amigos de Daniel a se curvarem diante de um ídolo que fizera, em seu suposto poder, mostra-se terrivelmente arrogante.
O rei os chama e lhes faz a pergunta, conferindo-lhes, porém, a oportunidade de retratação. A resposta foi surpreendente:
É verdade, ó Sadraque, Mesaque e Abede-Nego, que vós não servis a meus deuses, nem adorais a imagem de ouro que levantei? Agora, pois, estai dispostos e, quando ouvirdes o som da trombeta, do pífaro, da cítara, da harpa, do saltério, da gaita de foles, prostrai-vos e adorai a imagem que fiz; porém, se não a adorardes, sereis, no mesmo instante, lançados na fornalha de fogo ardente. E quem é o deus que vos poderá livrar das minhas mãos? (Dn 3.14-15).
Responderam Sadraque, Mesaque e Abede-Nego ao rei: Ó Nabucodonosor, quanto a isto não necessitamos de te responder. (Dn 3.16).
O rei foi incapaz de dobrar os três jovens e estes, mesmo amarrados e atirados na fornalha (Dn 3.21),eram de fato os únicos livres, pois nem mesmo a ameaça de morte o fizeram dobrar-se a um ídolo pagão. Isto ilustra como a fidelidade nas pequenas questões pode tornar-se ainda mais vigorosa no momento de grandes desafios e provações.[7]
Para aqueles jovens a soberania de Deus não era assunto para mero arrazoado, era questão de vida ou morte. Com Deus não se brinca; eles não estavam dispostos a simplesmente empreender um debate sobre a soberania de Deus após Ele mesmo ter dado provas suficientes do seu poder.
É aqui que vem a nossa questão: Sadraque, Mesaque e Abede-Nego não sabiam se sobreviveriam à condenação do rei. No entanto, tinham certeza de que Deus se assim o quisesse (poder ordenado), nada nem ninguém poderia impedir-lhe (poder absoluto).
Como escreve Marconcini, “Os jovens não têm necessidade de um milagre para acreditar na onipotência divina, ao contrário dos pagãos. Deus pode libertar do fogo: se não o faz, alimenta outros projetos aos quais é justo abandonar-se com extrema confiança”.[8] Ou seja: Eles conheciam o seu Deus de forma que sabiam que Ele tinha poder absoluto para livrá-los; contudo, o que eles não poderiam fazer, e de fato não fizeram, era declarar levianamente que Deus os livraria.[9] “[Deus] é poderoso para nos salvar se assim quiser”, declara Calvino.[10] Sem dúvida esta era a certeza daqueles jovens e, certamente, deve fazer parte de nossa fé.
Daqui tiramos um princípio de suma importância: Deus não satisfaz necessariamente as nossas expectativas. Ele cumpre sempre as suas promessas, não aquilo que imaginamos que Ele vá fazer. Notemos que estes homens estariam cheios de motivos para dizer que Deus os libertaria, afinal eles estavam naquela situação devido à sua fidelidade a Deus.
Eles não comprometeram a sua fé a um desejo natural de sobrevivência. Deus não lhes prometera preservá-lo naquela prova; portanto, eles não poderiam falar por Deus. O que eles sabiam é que o Deus sábio e soberano tinha poder para livrá-los. Se Ele assim o desejasse, nem a fornalha nem o rei poderiam impedi-lo; contudo, o seu poder não estaria condicionado a esta circunstância: libertá-los ou não. Deus sabe o que é melhor para nós ainda que não entendemos perfeitamente isso.[11]
Precisamos aprender a confiar em Deus e nas suas promessas, no entanto, devemos também aprender a não confundir os nossos anseios com o propósito de Deus, ainda que aqueles sejam considerados por nós santos e justos.
Calvino conclui: “Sempre que for oportuno, Deus usará seu poder e nos salvará; contudo, se Ele nos levar à morte, decidamos em nossos corações que não nos há nada melhor do que morrermos, e que é prejudicial o prolongamento de nossas vidas”.[12]
Esses jovens demonstraram também que a acusação feita era parcialmente verdadeira; eles não serviriam nem adorariam a deuses estranhos, que nada são: “Se o nosso Deus, a quem servimos, quer livrar-nos, ele nos livrará da fornalha de fogo ardente e das tuas mãos, ó rei. Se não, fica sabendo, ó rei, que não serviremos a teus deuses, nem adoraremos a imagem de ouro que levantaste” (Dn 3.17-18/Dn 3.12).
Eles sabiam que Deus age como determina agir, tendo plenos poderes para levar adiante a Sua determinação(Sl 115.3).
Deus por intermédio de Isaías, falando a respeito da futura destruição da babilônia, diz: “…. O meu conselho permanecerá de pé, farei toda da minha vontade”(Is 46.10).
Quais são os nossos sonhos, planos e projetos para os próximos dias, meses e anos? Como os idealizamos? É necessário que tenhamos em mente que se eles estiverem dentro do propósito de Deus nada poderá impedir-nos. Entretanto, devemos ter sempre em mente o “se”.
Deus, conforme o seu propósito, salvou os seus servos e, o próprio rei pagão Nabucodonosor, teve de admitir: “… não há outro Deus que possa livrar como este” (Dn 3.29). Nabucodonosor aprende que ele pode fazer decretos e governar o seu império, no entanto, o seu poder não é absoluto.
Poder auto-autenticador do Rei
Os homens, por mais poderosos que sejam, na realidade, estão poderosos em decorrência de alguma posição que ocupam, das riquezas e/ou prestígio que possuem, do sucesso de suas realizações ou até mesmo devido à proximidade com pessoas influentes que, por sua vez, se encaixam em alguma das colocações acima.[13] Entretanto, quando a Bíblia fala do poder soberano de Deus, ela se refere não a um estado determinado por fatores externos, tais como dinheiro, fama, prestígio, etc., mas sim, à sua própria natureza.
Deus não deriva o seu poder de nada além de si mesmo. Deus não, simplesmente, está poderoso: ele é o próprio Poder.
Deus é autopoderoso, auto-autenticador de tudo que é e faz. Deus não simplesmente está poderoso: Ele é o próprio Poder. Todo o poder emana dele. Por isso, Ele se manifesta poderosamente: “Uma vez falou Deus (~yhil{a/) (elohim), duas vezes ouvi isto: Que o poder pertence a Deus (~yhil{a/)(elohim)” (Sl 62.11).
A Confissão de Fé de Westminster (1647)resume:
Deus tem em si mesmo, e de si mesmo, toda a vida, glória, bondade e bem-aventurança. Ele é todo suficiente em si e para si, pois não precisa das criaturas que trouxe à existência, não deriva delas glória alguma, mas somente manifesta a sua glória nelas, por elas, para elas e sobre elas. Ele é a única origem de todo o ser; dele, por ele e para ele são todas as coisas e sobre elas tem ele soberano domínio para fazer com elas, para elas e sobre elas tudo quanto quiser. (II.2).
VanGemeren, comentando o Salmo 93.1, exulta:
A exclamação “o Senhor reina”, é uma proclamação do glorioso governo de Yahweh (…). A posição enfática de “o Senhor” no Texto Massorético não deixa ambiguidade na afirmação de que é Yahweh, e nenhuma outra divindade, que reina em glória (Ap 19.6).[14]
E mais, a declaração do reinado de Deus, não implica “entronização” ou um título apenas simbólico, antes, a sua condição de Rei e o exercício do seu reinado.[15] De fato, Deus reina porque é o Rei absoluto de toda a criação. Ninguém deu a Ele para que lhe seja restituído. (Jó 41.11; Rm 11.33-36).
Deus é tão eterno quanto o seu poder. Não podemos falar da história de Deus como de um processo evolutivo, aprendendo, crescendo, tornando-se, por exemplo, o que é. Antes, falamos da história das manifestações do Senhor na história do homem em seus avanços e retrocessos, cumprindo no tempo o que determinou em sabedoria, amor, justiça e santidade na eternidade.
O seu reinado, assim como sua existência, não tem início nem fim. Ele sempre foi e será o que é, independentemente de qualquer elemento externo a Ele. Deus é (existe) eternamente por si próprio.[16] “Somente em Deus a existência e a essência são uma coisa só”, resume Bavinck.[17]
O Senhor (Yehovah) não se torna algo. Ele é o que é eternamente pelo seu próprio poder. Por isso mesmo, Ele será o que será porque eternamente é o Deus absoluto.
Charnock (1628-1680) escreveu de forma magistral:
A eternidade é um atributo negativo, e é uma negação de qualquer medida de tempo para Deus, assim como a imensidão é uma negação de quaisquer limites de lugar. Assim como a imensidão é a difusão de sua essência, a eternidade é a duração de sua essência; e quando dizemos que Deus é eterno, excluímos dele todas as possibilidades de começo e fim, todo fluxo e mudança. Como a essência de Deus não pode ser limitada por nenhum lugar, também não pode ser limitada por nenhum tempo: como é sua imensidão estar em toda parte, assim é sua eternidade estar sempre. (…) Como sua essência abrange todos os seres e os ultrapassa, e sua imensidão supera todos os lugares; assim, sua eternidade compreende todos os tempos, todas as durações e os supera infinitamente.[18]
A existência de Deus é auto-existente por sua própria determinação. A vontade de Deus é o fundamento último de todas as coisas. Isto nos basta.[19]
Somente Ele é absoluto e de fato, é o fim de todas as coisas.[20] Por isso que a Bíblia não tenta explicar a existência de Deus; ela parte apenas do fato consumado de que Deus existe, manifestando o seu poder em seus atos criativos (Gn 1.1).
Deus tem o seu poder em si mesmo e todo poder sobre o seu poder. Nada lhe escapa, é grande demais ou incompreensível a Ele. O Senhor governa sobre todas as coisas com a sua mão poderosa; ninguém o poderá destruir.
Maringá, 18 de junho de 2022.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]Vejam-se: Stephen Charnock, The Existence and Attributes of God, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Two Volumes in one), 1996 (Reprinted), v. 2, p. 12; Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 252ss.; Agostinho, A Cidade de Deus contra os pagãos, 2.ed. Petrópolis, RJ.; São Paulo: Vozes; Federação Agostiniana Brasileira, 1990, v. 1, 5.10, p. 204-205; François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 335-336.
[2]No Catecismo Maior de Westminster(1647) temos a pergunta 14: “Como executa Deus os seus decretos?”. Responde: “Deus executa os seus decretos nas obras da criação e da providência, segundo a sua presciência infalível e o livre e imutável conselho da Sua vontade”. (Veja-se também: Agostinho, A Trindade,São Paulo: Paulus, 1994, III.4.9.
[3]Vejam-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 256; François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 329ss.
[4]“Jesus, fitando neles o olhar, disse-lhes: Isto é impossível aos homens, mas para Deus tudo é possível” (Mt 19.26). “Mas, se ele resolveu alguma coisa, quem o pode dissuadir? O que ele deseja, isso fará” (Jó 23.13).
[5] Stott (1921-2011) coloca nestes termos: “A liberdade de Deus é perfeita, no sentido de que Ele é livre para fazer absolutamente qualquer coisa que Ele queira”(John Stott, Ouça o Espírito, Ouça o Mundo, São Paulo: ABU Editora, 1997, p. 58).
[6]Veja-se: A.W. Pink, Deus é Soberano, Atibaia, SP.: Editora Fiel, 1977, p. 19,21,138.
[7]Veja-se: Ronald S. Wallace, A Mensagem de Daniel, São Paulo: ABU., 1985, p. 60.
[8]B. Marconcini, Daniel: Um povo perseguido procura as fontes da esperança,São Paulo: Paulinas, 1984, p. 30.
[9] “Ao ler esta história não temos de chegar à conclusão de que Deus sempre livra a seus filhos como livrou a aqueles três. Deus nem sempre nos concede livramentos tão dramáticos. (…) A salvação eterna é segura; a liberação do forno de fogo somente foi um sinal dessa salvação” (S.G. De Graaf, El Pueblo de la Promesa,Grand Rapids, Michigan: Subcomision Literatura Cristiana de la Iglesia Cristiana Reformada, 1981, v. 2, p. 372).
[10]João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6,São Paulo: Edições Parakletos, 2000, v. 1, (Dn 3.16-18), p. 206.
[11] “Ao esperarmos pelo livramento divino, é preciso que vigiemos bem para não cedermos às insinuações dos sentidos; tenhamos sempre em mente que Ele nem sempre opera segundos os meios aparentes, senão que nos livra quando usa métodos que são inescrutáveis à razão. Se porventura tentarmos prescrever qualquer linha particular de procedimento, não estaremos agindo de outra forma senão voluntariamente limitando seu infinito poder” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 61.2), p. 563).
[12]João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6,v. 1, (Dn 3.23-25), p. 216.
[13]T. Hobbes, O Leviatã, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 14), 1974, I.x., p. 57ss, fala sobre algumas formas de poder humano.
[14] Willem A. VanGemeren, Psalms: In: Frank E. Gaebelein, gen. ed. The Expositor’s Bible Commentary, Grand Rapids, MI.: Zondervan, 1991, v. 5, (Sl 93.1), p. 607-608. Veja-se também, o apêndice do Salmo 5, “Yahweh é rei”, p. 91ss.
[15] Veja-se: K.A. Kitchen, Ancient Orient and Old Testament, Chicago: InterVarsity, 1966, p. 103-104.
[16] Veja-se uma breve, porém, boa discussão sobre isso em R.C. Sproul, Razão para crer, São Paulo: Mundo Cristão, 1986, p. 80-83.
[17]Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 246.
[18] Stephen Charnock, The Existence and Attributes of God, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Two volumes in one), 1996 (Reprinted), v. 1, p. 281.
[19] Veja-se: João Calvino, As Institutas, III.23.2.
[20]“Nada, exceto Deus mesmo, é um fim em si mesmo” (John Piper, Pense – A Vida da Mente e o Amor de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2011, p. 41).