O Selo e o Penhor do Espírito como realidades na vida de todo crente (5) – Final
Selados em santidade
“E não entristeçais o Espírito de Deus, no qual fostes selados (sfragi/zw) para o dia da redenção” (Ef 4.30).
O Espírito se entristece com os nossos pecados, manifestando o Seu desagrado, de modo externo: por intermédio da Palavra de Deus. Interno: por meio de nossa consciência.
Todas as vezes que agimos de forma contrária aos ensinamentos da Palavra de Deus, entristecemos ao Espírito que em nós habita. O Espírito também se entristece conosco, quando caminhamos de modo contrário ao propósito de Deus para nós, que é a santificação (1Ts 4.3/2Ts 2.13), quando as obras da carne estão cada vez mais evidentes em nossa vida e o fruto do Espírito parece mais distante do nosso procedimento (Gl 5.16-26).
O entristecimento do Espírito, se por um lado revela o nosso pecado, por outro, fala-nos do Seu relacionamento pessoal conosco e de Seu invencível amor, que não se intimida nem se acomoda com a nossa desobediência, antes, se expõe, nos atraindo para Si em amor. Interpreta Graham (1918-2018): “Podemos magoar ou irar alguém que não nos tem afeição, mas entristecer podemos só quem nos ama”.[1]
Deste modo, as operações graciosas de Deus não nos devem conduzir à falsa ideia de viver comodamente, deixando Deus realizar a obra enquanto que eu cuido de meus interesses pessoais. A obra de Deus, que é boa em sua própria essência, envolve o uso diligente dos recursos que Deus mesmo coloca à nossa disposição para o nosso crescimento.
Na Carta aos filipenses, vemos o próprio Paulo se preocupando em orar pela igreja, estimulá-la e exortá-la por meio da Epístola a que frutificasse em sua fé:
E também faço esta oração: que o vosso amor aumente mais e mais em pleno conhecimento e toda a percepção, 10 para aprovardes as coisas excelentes e serdes sinceros e inculpáveis para o Dia de Cristo, 11 cheios do fruto de justiça, o qual é mediante Jesus Cristo, para a glória e louvor de Deus. (Fp 1.9-11).
Esse fruto (Fp 1.11) se revela no desenvolvimento de nossa salvação, conforme ele exorta a igreja:
Assim, pois, amados meus, como sempre obedecestes, não só na minha presença, porém, muito mais agora, na minha ausência, desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor; 13 porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade. (Fp 2.12-13).
Os Cânones de Dort (1619) pontuam bem esta questão:
Essa certeza de perseverança não produz de modo algum nos crentes um espírito de orgulho ou os torna carnalmente seguros; ao contrário, ela é a verdadeira fonte da humildade, reverência filial, verdadeira piedade, paciência em toda tribulação, orações fervorosas, constância nos sofrimentos e em confessar a verdade e alegria sólida em Deus, de modo que a consideração desse benefício serve como um incentivo para a séria e constante prática de gratidão e boas obras, como é evidente nos testemunhos das Escrituras e nos exemplo dos santos.
A renovada confiança de perseverar não produz licenciosidade ou negligência na piedade naqueles que estão se recuperando de uma apostasia, mas isso os torna mais cuidadosos e diligentes quanto a se manterem nos caminhos do Senhor, que ele preparou, para que, ao andarem neles, eles possam preservar a certeza da perseverança, para que não abusem de sua gentileza paternal e Deus tire delas sua graciosa face, a contemplação da qual é para o piedoso mais preciosa do que a vida, e a retirada dela é mais amarga do que a morte, e eles, em consequência disso, caiam em maiores tormentos da consciência.[2]
A eleição de Deus e o seu consequente chamado se revela numa boa obra em nós de transformação e crescimento espiritual.[3] É deste modo que Paulo escreve aos Efésios: “8 Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; 9 não de obras, para que ninguém se glorie. 10 Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (Ef 2.8-10).
A doutrina da perseverança é bem chamada de perseverança dos santos.[4] Dito de outro modo, a nossa perseverança deve ser em santidade. Portanto, neste processo de aperfeiçoamento há, fundamentalmente, a necessidade de nosso crescimento e amadurecimento. Deus não somente nos salva, mas, também, nos faz crescer em nossa caminhada.
A piedade, como evidência de nosso perseverar em santidade, é desenvolvida por meio de nosso crescimento na graça. Na educação divina (disciplina), vemos estampada a Sua graça que atua de forma pedagógica: “Porquanto a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens, educando-nos (paideu/w) para que, renegadas a impiedade e as paixões mundanas, vivamos no presente século, sensata, justa e piedosamente (eu)sebw=j)” (Tt 2.11-12). A piedade autêntica, por ser moldada pela Palavra, traz consigo os perigos próprios resultantes de uma ética contrastante com os valores deste século: “Ora, todos quantos querem viver piedosamente (eu)sebw=j)[5] em Cristo Jesus serão perseguidos” (2Tm 3.12). No entanto, há o conforto expresso por Pedro às Igrejas perseguidas: “….o Senhor sabe livrar da provação [peirasmo/j = “tentação”] os piedosos (eu)sebh/j)….” (2Pe 2.9).
A piedade deve estar associada a diversas outras virtudes cristãs a fim de que seja frutuosa no pleno conhecimento de Cristo (2Pe 1.6-8).[6] A nossa certeza é que Deus nos concedeu todas as coisas que nos conduzem à piedade. Ele exige de nós, os crentes, “o uso diligente de todos os meios exteriores pelos quais Cristo nos comunica as bênçãos da salvação”[7] e que não negligenciemos os “meios de preservação”.[8]
Em Teologia denominamos essas “cousas que nos conduzem à piedade”, de meios de graça ou meios de santificação. Portanto, devemos utilizar de todos os recursos que Deus nos forneceu com este santo propósito: “Visto como, pelo seu divino poder, nos têm sido doadas todas as coisas que conduzem à vida e à piedade (e)use/beia), pelo conhecimento completo daquele que nos chamou para a sua própria glória e virtude” (2Pe 1.3).[9]
A piedade como resultado de nosso relacionamento com Deus deve ter o seu reflexo concreto dentro de casa, sendo revelada por meio do tratamento que concedemos aos nossos pais e irmãos: “….se alguma viúva tem filhos ou netos, que estes aprendam primeiro a exercer piedade (eu)sebe/w) para com a própria casa e a recompensar a seus progenitores; pois isto é aceitável diante de Deus” (1Tm 5.4).[10]
Nunca o nosso trabalho, por mais relevante que seja, poderá se tornar num empecilho para a ajuda aos nossos familiares. A genuína piedade é caracterizada por atitudes condizentes para com Deus (reverência) e para com o nosso próximo (fraternidade). Curiosamente, quando o Novo Testamento descreve Cornélio, diz que ele era um homem “piedoso (Eu)sebh/j) e temente a Deus (…) e que fazia muitas esmolas ao povo e de contínuo orava a Deus” (At 10.2).
A piedade é, portanto, uma relação teologicamente orientada do homem para com Deus em sua devoção e reverência e, a sua conduta biblicamente ajustada e coerente com o seu próximo. A piedade envolve comunhão com Deus e o cultivo de relações justas com os nossos irmãos. “A obediência é a mãe da piedade”, resume Calvino.[11]
Ao mesmo tempo, o Senhor Jesus Cristo é poderoso para nos socorrer em nossas tentações (1Co 10.13):[12] “Pois, naquilo que ele mesmo sofreu, tendo sido tentado, é poderoso (du/namai) para socorrer os que são tentados” (Hb 2.18). (Ver também: Hb 4.15; Jd 24; 1Pe 1.5).[13]
O Espírito aplicou os méritos salvadores de Cristo em nosso coração e, nos preserva íntegros até o fim; nele fomos “selados para o dia da redenção” (Ef 4.30). Pelo fato do Espírito ser Santo, Ele nos quer preservar em santidade até o dia da redenção (Ef 1.13-14). Deus quer nos guardar tal qual Ele é; em santidade. Foi com este propósito que o Filho morreu por nós e, por meio de Seu Espírito, nos preserva (Ef 5.25-27).[14]
Pedro encerra a sua carta dizendo: “Antes, crescei na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. A ele seja a glória, tanto agora como no dia eterno” (2Pe 3.18).
Portanto, temos nesta doutrina um motivo de conforto e desafio. O desafio é vivermos a intensidade da vida cristã em obediência, no conforto de que é Deus mesmo Quem nos preservará até o fim.[15] Analisaremos alguns outros aspectos pressupostos e decorrentes destes.
“Venha o Teu Reino”
A Igreja anela pela concretização plena das virtudes eternas, das quais ela já tem a amostra (Rm 14.17; 15.13; 1Ts 1.6/Gl 5.22,23). É neste espírito que a Igreja ora: “Venha o Teu Reino”. Quem ora pela vinda do Reino, é porque já o conhece, já usufrui das suas riquezas, já provou da sua bem-aventurança (Rm 14.17).[16] Somente um cidadão do Reino pode dizer de forma consciente: “Venha o teu Reino”. Por isso, ele ora para que o Reino já presente venha em toda a sua plenitude sobre todos. Como temos visto, o selo e o penhor não têm um fim em si mesmos, antes apontam para o nosso resgate definitivo (Ef 1.13-14).
O Evangelho, como “palavra da verdade”, modifica a nossa vida neste estado de existência e, também, tem implicações escatológicas. Pelo Evangelho ouvido e crido, temos a certeza da nossa salvação. É o Espírito Santo quem nos garante isso. Algo maravilhoso para nós é saber que temos um Deus que cuida de nós, que se compromete com a salvação de Seu povo, nos garantindo e nos concedendo esta certeza.
A consumação do Reino se dará quando Cristo voltar. Nós que temos as primícias do Espírito, – usufruímos, portanto, ainda que parcialmente, as delícias do Reino –, pelo Espírito, oramos de forma coerente e ardorosa: “Venha o Teu Reino”.[17] “Vem, Senhor Jesus” (Ap 22.17,20). Amém.
Esta alegre certeza me faz lembrar um hino escrito em 1873:
Altos Louvores
Vem, ó Jesus, majestoso reinar;
Teu povo te espera, não queiras tardar!
Vem em poder, apressando esse dia,
Pois tua vontade será feita aqui.
Oh! Volta na glória, trazendo alegria!
A Igreja suspira, ansiosa, por ti!
Vem, ó Jesus, majestoso reinar;
Teu povo te espera, não queiras tardar![18]
Maringá, 15 de fevereiro de 2019.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
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[1]Billy Graham, O Espírito Santo, São Paulo: Vida Nova, 1988, p. 123.
[2] Os Cânones de Dort In: Sinclair B. Ferguson; Joel R. Beeke, orgs. Harmonia das Confissões Reformadas, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, V.12-13. Vejam-se também: Catecismo de Heidelberg, Perguntas: 1,53,54,127.
[3]“O que acontece com o cristão não é mera reforma ou melhoramento da superfície. O Evangelho não é algo que muda o homem no sentido de torná-lo um pouco melhor, no sentido cultural. Não, é uma obra vital realizada por Deus na alma e sobre a alma, no centro mesmo e nos órgãos vitais da vida e da existência do homem” (D. Martyn Lloyd-Jones, A Vida de Alegria, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2008, p. 42).
[4] Hoekema prefere chamá-la de “perseverança do verdadeiro crente” (Anthony Hoekema, Salvos pela Graça, São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 243). Murray argumenta em prol do nome clássico, “perseverança dos santos” (Veja-se: John Murray, Redenção: Consumada e Aplicada, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1993, p. 170-171). Sproul, considerando o termo “perseverança” como “um tanto enganoso”, opta por “preservação”, justificando: “Nós perseveramos porque somos preservados por Deus. Se deixados por conta de nossa própria força, nenhum de nós perseveraria. Só porque somos preservados por graça é que somos capazes de perseverar de alguma maneira” (R.C. Sproul, O que é teologia reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 168). À frente: “A graça preservadora de Deus torna a nossa perseverança tanto possível como real” (p. 179).
[5] Este advérbio só ocorre em dois textos do Novo Testamento: 2Tm 3.12; Tt 2.12.
[6]“Por isso mesmo, vós, reunindo toda a vossa diligência, associai com a vossa fé a virtude; com a virtude, o conhecimento; com o conhecimento, o domínio próprio; com o domínio próprio, a perseverança; com a perseverança, a piedade (e)use/beia); com a piedade (e)use/beia), a fraternidade; com a fraternidade, o amor. Porque estas coisas, existindo em vós e em vós aumentando, fazem com que não sejais nem inativos, nem infrutuosos no pleno conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo” (2Pe 1.5-8).
[7] Catecismo Menor de Westminster, Pergunta, 85. In: A Confissão de Fé, O Catecismo Maior e o Breve Catecismo, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1991, (Edição Especial), p. 431 (Veja-se também, a Pergunta, 88).
[8] Confissão de Westminster, XVII.3.
[9]Ver: Hermisten M.P. Costa, A Palavra e a Oração como Meios de Graça: In: Fides Reformata, São Paulo: Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, 5/2 (2000), 15-48.
[10]“Seria uma boa preparação treinar-se para o culto divino, pondo em prática deveres domésticos piedosos em relação a seus próprios familiares” (João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 5.4), p. 131).
[11] John Calvin, Commentaries of the Four Last Books of Moses, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Calvin’s Commentaries, v. 2), 1996 (Reprinted), v. 1, (Dt 12.32), p. 453.
[12]“Não vos sobreveio tentação que não fosse humana; mas Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados além das vossas forças (du/namai); pelo contrário, juntamente com a tentação, vos proverá livramento, de sorte que a possais (du/namai) suportar” (1Co 10.13).
[13] “Porque não temos sumo sacerdote que não possa (du/namai) compadecer-se das nossas fraquezas; antes, foi ele tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado” (Hb 4.15). “Ora, àquele que é poderoso (du/namai) para vos guardar de tropeços e para vos apresentar com exultação, imaculados diante da sua glória, ao único Deus, nosso Salvador, mediante Jesus Cristo, Senhor nosso, glória, majestade, império e soberania, antes de todas as eras, e agora, e por todos os séculos. Amém!” (Jd 24-25). “Que sois guardados pelo poder (du/namij) de Deus, mediante a fé, para a salvação preparada para revelar-se no último tempo” (1Pe 1.5).
[14]“Maridos, amai vossa mulher, como também Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela, 26 para que a santificasse, tendo-a purificado por meio da lavagem de água pela palavra, 27 para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, porém santa e sem defeito” (Ef 5.25-27).
[15] Anthony Hoekema, Salvos pela Graça, São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 262-263.
[16]Esta é a experiência da Igreja: Ela é na presente era a manifestação do Reino: “A igreja é o centro vivo e ardente do reino, uma testemunha de sua presença e poder, e um precursor de sua vinda final” (Enrique Stob, Reflexiones Éticas: Ensayos sobre temas morales, Grand Rapids, Michigan: T.E.L.L., 1982, p. 68).
[17]“Nós estamos no Reino e, mesmo assim, aguardamos sua manifestação completa; nós compartilhamos de suas bênçãos, mas ainda aguardamos sua vitória total; nós agradecemos a Deus por ter-nos trazido para o Reino do Filho que Ele ama, e ainda assim continuamos a orar: ‘Venha o teu reino’.” (A.A. Hoekema, A Bíblia e o Futuro, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1989, p. 72).
[18] Quarta estrofe do Hino Altos Louvores, nº 46 no Hinário Novo Cântico. Letra de Sarah Poulton Kalley (1825-1907) (1873) e música de compositor inglês Charles Avison (1709-1770), considerado “o mais importante compositor inglês de concertos do século XVIII” (Stanley Sadie, ed. Dicionário Grove de Música: edição concisa, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994, p. 50).