O Pensamento Grego e a Igreja Cristã: Encontros e Confrontos – Alguns apontamentos (8)
A Pregação Cristã
A. Cristianismo, tempo e história
E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei – Agostinho.[1]
Deus inseriu a revelação da Bíblia na História; Ele não a forneceu (como poderia ter feito) em forma de livro-texto teológico. Localizando a revelação na história, que sentido teria para Deus ter-nos fornecido uma revelação cuja história fosse falsa? Também o homem foi inserido neste universo que, como as Escrituras mesmo dizem, fala de Deus. Que sentido, então, teria para Deus ter nos oferecido sua revelação em um livro cheio de falsidades acerca do universo? A resposta para ambas as questões deve ser “nada disso faria sentido!”. Está claro, portanto, que, do ponto de vista das Escrituras em si, podemos observar uma unidade por todo o campo do conhecimento. Deus falou, numa forma linguística e proposicional, verdades sobre si mesmo e verdades sobre o homem, a sua história e o universo. ‒ Francis A. Schaeffer.[2]
A concepção cristã de tempo, mesmo com as suas variações, influenciou diretamente todo o mundo ocidental. A compreensão de que o tempo tem um início, meio e fim era totalmente estranha às culturas pagãs.[3] A questão da história e do tempo é fundamental para o Cristianismo pela sua própria constituição.
O Cristianismo é uma religião de história.[4] Elimine, por exemplo, a historicidade dos 11 primeiros capítulos de Gênesis, e estaremos mutilando o sentido das Escrituras e, por isso mesmo, os fundamentos da fé cristã. Pelo fato de a Criação ter ocorrido na história, bem como a Queda, a promessa (Gn 3.15) e o Dilúvio, é que tudo o mais faz sentido. Se a Queda é apenas uma lenda, porque precisaríamos crer na encarnação, morte e ressurreição de Cristo como fato histórico? Bastaria a criação de outra lenda para, quem sabe, remediar o que fora inventado anteriormente.
A revelação dá-se na história. Qual o sentido de Deus falar e agir na história e, ao mesmo tempo, fornecer por meio de sua Palavra uma história mentirosa, cheia de equívocos e erros? Grande parte dos ensinamentos doutrinários das Escrituras provém de fatos históricos não apenas de proposições doutrinárias.[5] Na história vemos a demonstração prática dos ensinamentos de Deus, revelando os acertos e fracassos de suas criaturas em serem fiéis ao seu Senhor, e, ao mesmo tempo, a demonstração de sua misericórdia incompreensível que atinge o seu ápice na encarnação do Verbo. O Cristianismo não se ampara em lendas, antes, em fatos os quais devem ser testemunhados, visto que têm uma relação direta com a vida dos que creem.[6] O Cristianismo é uma religião de fatos, palavra e vida. Os fatos, corretamente compreendidos, têm uma relação direta com a nossa vida. A fé cristã fundamenta-se no próprio Cristo: O Deus-Homem. Sem o Cristo Histórico não haveria Cristianismo.[7] A sua força e singularidade estão neste fato, melhor dizendo: na pessoa de Cristo, não simplesmente nos seus ensinamentos.[8] O Cristianismo é o próprio Cristo. A encarnação é toda e inclusivamente missionária: o Verbo fez-se carne e habitou entre nós (Jo 1.14). É por isso também, que o Cristianismo é uma religião de memória, relatando os feitos de Deus e desafiando o povo a reafirmar a sua fé a partir do rememorar dos atos de Deus
[1]Agostinho, Confissões, São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 6), 1973, XI.14.17. p. 244.
[2]Francis A. Schaeffer, O Deus que intervém, 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 146.
[3]Cf. Gene Edward Veith, Jr, De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 22-23.
[4] Veja-se a exposição de Alan Richardson, Así se hicieron los Credos: Una breve introducción a la historia de la Doctrina Cristiana, Barcelona: Editorial CLIE, 1999, p. 15ss.
[5] Veja-se, por exemplo: Francis A. Schaeffer, Nenhum conflito final: a Bíblia sem erro em tudo o que ela afirma, Brasília, DF.: Monergismo, 2017, p. 13-33.
[6] Veja-se: F.A. Schaeffer, O Deus que intervém, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 250-251.
[7] Georges Duby (1919-1996), dentro de uma perspectiva puramente histórica, admite: “O Cristianismo, que impregnou fundamentalmente a sociedade medieval, é uma religião da história. Proclama que o mundo foi criado num dado momento e que, num outro, Deus fez-se homem para salvar a humanidade. A partir disso, a história continua e é Deus quem a dirige” (Georges Duby, Ano 1000, ano 2000, na pista de nossos medos, São Paulo: Editora UNESP; Imprensa Oficial do Estado, 1999, p. 16). “Os historiadores insistiram com justeza sobre o fato de que o cristianismo é uma religião histórica, ancorada na história e se afirmando como tal” (Jacques Le Goff, Tempo: In: Jacques Le Goff; Jean-Claude Schmitt, coords. Dicionário Temático do Ocidente Medieval, Bauru,SP.; São Paulo, SP.: Editora da Universidade Sagrado Coração; Imprensa Oficial do Estado, 2002, v. 2, p. 534). “O cristianismo, como também a religião de Israel, da qual ele nasceu, se apresenta como uma religião histórica de forma absolutamente concreta, em comparação à qual nenhuma das outras religiões do mundo pode se equiparar – nem mesmo o Islã, apesar de este se aproximar mais do cristianismo e do judaísmo, nesse sentido, que qualquer outra religião” (Christopher Dawson, Dinâmicas da História no Mundo, São Paulo: É Realizações Editora, 2010, p. 343). Do mesmo modo: Marc Bloch, Apologia da história, ou, O ofício do historiador, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 58. Veja-se também: Gordon H. Clark, Uma visão cristã dos homens e do mundo, Brasília, DF.: Monergismo, 2013, p. 85, 92.
[8]Veja-se: Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 23ss. “Qualquer coisa que se apresente como cristianismo, mas que não insista na absoluta e essencial necessidade de Cristo, não é cristianismo. Se Ele não for o coração, a alma e o centro, o princípio e o fim do que é oferecido como salvação, não é a salvação cristã, seja lá o que for” (D. M. Lloyd-Jones, O supremo propósito de Deus: Exposição sobre Efésios 1.1-23, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 143). “O evangelho nos confronta com fatos. Ele se baseia completamente numa pessoa; está fundamentado em fatos definidos que ocorreram ao longo da história. (…) Ele me conduziu por entre os fatos, ao longo do túnel das trevas em direção à aurora que ilumina a outra extremidade” (D.M. Lloyd-Jones, Não se perturbe o coração de vocês, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2016, p. 29). Veja-se Alister E. McGrath, A gênese da doutrina: fundamentos da crítica doutrinária, São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 195ss.