O Pensamento Grego e a Igreja Cristã: Encontros e Confrontos – Alguns apontamentos (9)
3.1. Cristianismo, tempo e história (continuação)
Bavinck (1854-1921) corretamente destaca a singularidade de Cristo para o Cristianismo:
Ele ocupa um lugar completamente único no Cristianismo. Ele não foi o fundador do Cristianismo em um sentido usual, ele é o Cristo, o que foi enviado pelo Pai e que fundou Seu reino sobre a terra e agora expande-o até o fim dos tempos. Cristo é o próprio Cristianismo. Ele não está fora, Ele está dentro do Cristianismo. Sem Seu nome, pessoa e obra, não há Cristianismo. Em outras palavras, Cristo não é aquele que aponta o caminho para o Cristianismo, Ele mesmo é o caminho.[1]
Se formos sinceros em nossa investigação bíblica, não restam muitas alternativas para nós. Ou Jesus Cristo é de fato Deus conforme o seu próprio testemunho e, assim, podemos então considerá-lo de forma decorrente como um grande mestre, um bom homem, justo e misericordioso, ou Ele é um farsante não merecendo a nossa fé nem mesmo o nosso respeito.
Barth (1886-1968) coerentemente afirma que a Escritura não nos deixa vagueando em nossa fé, antes, quando nos fala de Deus, aponta para Jesus Cristo, em quem nossa atenção e pensamentos devem se concentrar.[2]
Stott (1921-2011) coloca a questão nestes termos: “Jesus deve ser adorado ou apenas admirado? Se ele é Deus, é digno de nossa adoração, fé e obediência; se não é Deus, dedicar a ele essa devoção é idolatria”.[3]
Se as reivindicações divinas e redentivas do Jesus Cristo histórico são verdadeiras como de fato são, a mensagem do Evangelho deve ser anunciada ao mundo para que aqueles que crerem sejam salvos.
Noll resume bem ao dizer que: “Estudar a história do cristianismo é lembrar continuamente o caráter histórico da fé cristã”.[4]
Sem o fato histórico da encarnação, morte e ressurreição de Cristo, podemos falar até de experiência religiosa, mas não de experiência cristã. A experiência cristã depende fundamentalmente destes eventos.[5] É por isso que a pregação da Igreja primitiva, conforme nos mostram as Escrituras, estava fundamentalmente amparada na certeza da ressurreição do Senhor.[6]
Quando focamos o nosso olhar na experiência, corremos o risco de perdermos a dimensão da essência, do referente, que é Deus. Neste processo, como escreveu Barth (1886-1968), “a passagem da experiência do Senhor à experiência de Baal é curta. O religioso e o sexual são extremamente semelhantes”.[7]
Jesus Cristo é o clímax da Revelação. Ele é a Palavra Final de Deus. Nele temos não uma metáfora ou um sinal, antes, temos o próprio Deus que Se fez homem na história.
Sire escreveu de modo esclarecedor:
Jesus Cristo é a revelação final e especial de Deus. Porque Jesus Cristo era verdadeiramente Deus Ele nos mostrou mais plenamente com quem Deus era semelhante do que qualquer outra forma de revelação. Porque Jesus foi também completamente homem, Ele falou mais claramente a nós do que pode fazê-lo qualquer outra forma de revelação.[8]
A História é de grande relevância para a escatologia e para a teologia. Lloyd-Jones (1899-1981) chega a dizer que “‘O problema da história’ é o grande tema da Bíblia Sagrada”.[9]
A História da Igreja, bem como da Teologia, tem um lado divino: Deus dirige a História e, um lado humano: os fatos compartilhados por todos nós que a vivemos. Os atos de Deus, na História, não são objeto de análise do historiador. Não somos Lucas, inspirados infalivelmente por Deus, apresentando uma interpretação inspirada.[10] A relação entre a história e a teologia é extremamente complexa e de difícil interpretação.[11] Além disso, é preciso delimitar a esfera de domínio do historiador e do teólogo. Somos homens comuns, que procuramos estabelecer métodos, examinar documentos, fazer-lhes perguntas e interpretá-los a bem da melhor compreensão possível do que aconteceu.
Nesse sentido, a História é uma ciência social “cujo objeto é o conhecimento do processo de transformação da sociedade ao longo do tempo”.[12] Ela tem como pressuposto, a consciência de determinada ignorância – aliás, a consciência da ignorância é um requisito fundamental para o historiador – para a qual buscaremos uma solução.[13]
Contudo não captamos o fato absolutamente. Ele, como “conhecimento autêntico e seguro”, sempre nos escapa;[14] compreendemos, sim, as versões, as nossas versões dos fatos que julgamos serem coerentes com eles. No entanto, há uma interação mutativa: as evidências interferem em nossa cosmovisão e esta, por sua vez, fornece-nos novos cânones – provisórios é verdade – de aproximação das mesmas evidências que, agora, podem já não ser consideradas evidências.
O estudo do passado, se devidamente compreendido, ainda que não exaustivamente, pode nos levar a reavaliar as nossas próprias suposições que, em muitos casos, são “crenças correntes”[15] já tão bem estabelecidas que julgávamos acima de qualquer “suspeita”. Georges Duby (1919-1996), colocou isto de forma bela e ao mesmo tempo angustiante: “Todo historiador se extenua para conseguir a verdade; essa presa escapa-lhe sempre”.[16]
A História da Igreja, por exemplo, é uma ciência que não está atrelada a nenhuma ciência em particular. Como ciência histórica, deve apresentar um quadro histórico e cronológico dos principais fatos da vida da Igreja do período analisado. Para que isso seja feito com clareza, tornam-se necessárias fontes documentais. Nelas, possamos a nos alicerçar para exaurir as informações de cada época, a fim de formular um quadro interpretativo coerente com os documentos disponíveis.
Maringá, 08 de novembro de 2019.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 311.
[2]Karl Barth, Church Dogmatics, Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 2010, II/2, p. 52-53.
[3]Timothy Dudley, Cristianismo autêntico: 968 textos selecionados das obras de John Stott, São Paulo: Editora Vida, 2006, p. 44. C.S. Lewis escreveu de forma contundente: “Um homem que fosse só homem, e dissesse as coisas que Jesus disse, não seria um grande mestre de moral: seria ou um lunático, em pé de igualdade com quem diz ser um ovo cozido, ou então seria o Demônio. Cada um de nós tem que optar por uma das alternativas possíveis. Ou este homem era, e é, Filho de Deus, ou então foi um louco, ou cuspir nele e matá-lo como um demônio; ou podemos cair a seus pés e chamá-lo de Senhor e Deus. Mas não venhamos com nenhuma bobagem paternalista sobre ser Ele um grande mestre humano. Ele não nos deu esta escolha. Nem nunca pretendeu” (C.S. Lewis, A essência do Cristianismo, São Paulo: ABU Editora, 1979, p. 29). Boice com maestria analisa as opções fornecidas por Lewis. Veja-se: James M. Boice, Fundamentos da Fé Cristã, Rio de Janeiro: Editora Central Gospel, 2011, p. 238-240. John Piper faz algo semelhante, com uma aproximação diferente. (Veja-se: John Piper, Um homem chamado Jesus Cristo, São Paulo: Vida, 2005, p. 11-12). Do mesmo modo, Josh McDowell, Mais que um carpinteiro, Venda Nova, MG.: Editora Betânia, 1989,p. 26-35.
[4]Mark A. Noll, Momentos Decisivos na História do Cristianismo, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2000,p. 16. Vejam-se também: Clyde P. Greer, Jr., Refletindo honestamente sobre a história: In: John F. MacArthur Jr. ed. ger. Pense Biblicamente!: recuperando a visão cristã do mundo, São Paulo: Hagnos, 2005, p. 400-401.
[5] Cf. J. Gresham Machen, Cristianismo e Liberalismo, São Paulo: Os Puritanos, 2001, p. 77.
[6] “Gostemos ou não, não podemos escapar ao fato de que historicamente o Cristianismo foi fundado sobre a crença na ressurreição” (Alan Richardson, Así se hicieron los Credos: Una breve introducción a la história de la Doctrina Cristiana, Barcelona: Editorial CLIE, 1999, p. 24).
[7] Karl Barth, A Palavra de Deus e a palavra do homem, São Paulo: Novo Século, 2004, p. 217.
[8]James W. Sire, O universo ao lado, São Paulo: Hagnos, 2004, p. 40.
[9] D.M. Lloyd-Jones, Do temor à fé, Miami: Editora Vida, 1985, p. 9.
[10]Carson constatando a secularização na prática e nos discursos, arrematou: “Hoje não existe um departamento de história na terra que aprovaria uma dissertação de doutoramento que tentasse inferir algumas coisa sobre a providência” (D.A. Carson, O Deus amordaçado: o Cristianismo confronta o pluralismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2013, p. 38-39). Por sua vez, estimulando a nossa modéstia na interpretação da histórica, veja-se: Darryl G. Hart, 1929 e tudo aquilo, ou o que o calvinismo diz aos historiadores em busca de significado?: In: David W. Hall, Calvino em praça pública, São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p 19-34.
[11] Ver: Michel De Certeau, A Escrita da História, 2. ed.Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 33ss.
[12]Nelson W. Sodré, Formação histórica do Brasil, São Paulo: Brasiliense, (1962), p. 3.
[13]Veja-se: R.G. Collingwood, A Ideia de História, Lisboa: Editorial Presença, (s.d.), p. 21.
[14] “O homem sente necessidade absoluta de chegar ao conhecimento autêntico do que verdadeiramente aconteceu, ainda que tenha consciência da pobreza dos meios de que para isso dispõe” (Johan Huizinga, El Concepto de la Historia y Otros Ensayos, 4. reimpresión,México: Fondo de Cultura Econômica, 1994, p. 92).
[15]Veja-se: Quentin Skinner, Liberdade antes do Liberalismo,São Paulo: Editora UNESP/Cambridge, 1999, p. 90.
[16] Georges Duby, O Prazer do Historiador: In: Pierre Nora, et. al. Ensaios de Ego-História,Lisboa: Edições 70, (1989), p. 110.