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O Divino e o humano no tempo e na história: Um testemunho de fé - Hermisten Maia

O Divino e o humano no tempo e na história: Um testemunho de fé

Quanto à história da Igreja, que se poderia cometer o erro de desprezar, eu devo acrescentar que sua função é enciclopédica: ela tem a honra de ser constantemente requisitada e ocupa um posto legítimo dentro do ensinamento cristão. − Karl Barth [1].

A concepção cristã de tempo, mesmo com as suas variações, influenciou diretamente todo o mundo ocidental. A compreensão de que o tempo tem um início, meio e fim era totalmente estranha às culturas pagãs. A questão da história e do tempo é fundamental para o Cristianismo pela sua própria constituição.

O Cristianismo é uma religião de história. Elimine, por exemplo, a historicidade dos 11 primeiros capítulos de Gênesis, e estaremos mutilando o sentido das Escrituras e, por isso mesmo, os fundamentos da fé cristã. Pelo fato de a Criação ter ocorrido na história, bem como a Queda, a promessa (Gn 3.15) e o Dilúvio, é que tudo o mais faz sentido. Se a Queda é apenas uma lenda, porque precisaríamos crer na encarnação, morte e ressurreição de Cristo como fato histórico? Bastaria a criação de outra lenda para, quem sabe, remediar o que fora inventado anteriormente. A revelação dá-se na história. Qual o sentido de Deus falar e agir na história e, ao mesmo tempo, fornecer por meio de sua Palavra uma história mentirosa, cheia de equívocos e erros? Grande parte dos ensinamentos doutrinários das Escrituras provém de fatos históricos, não apenas de proposições doutrinárias [2].

Insistimos: o Cristianismo não se ampara em lendas, antes, em fatos os quais devem ser testemunhados, visto que têm uma relação direta com a vida dos que creem. O Cristianismo é uma religião de fatos, palavra e vida. Os fatos, corretamente compreendidos, têm uma relação direta com a nossa vida. A fé cristã fundamenta-se no próprio Cristo: O Deus-Homem. Sem o Cristo Histórico não haveria Cristianismo [3]. A sua força e singularidade estão neste fato, melhor dizendo: na pessoa de Cristo, não, simplesmente, nos seus ensinamentos [4]. O Cristianismo é o próprio Cristo. A encarnação é toda e inclusivamente missionária: o Verbo fez-se carne e habitou entre nós (Jo 1.14).

Bavinck (1854-1921) corretamente destaca a singularidade de Cristo para o Cristianismo:

Ele ocupa um lugar completamente único no Cristianismo. Ele não foi o fundador do Cristianismo em um sentido usual, ele é o Cristo, o que foi enviado pelo Pai e que fundou Seu reino sobre a terra e agora expande-o até o fim dos tempos. Cristo é o próprio Cristianismo. Ele não está fora, Ele está dentro do Cristianismo. Sem seu nome, pessoa e obra, não há Cristianismo. Em outras palavras, Cristo não é aquele que aponta o caminho para o Cristianismo, Ele mesmo é o caminho [5].

Se as reivindicações divinas e redentivas do Jesus Cristo histórico são verdadeiras como de fato são, a mensagem do evangelho deve ser anunciada ao mundo para que aqueles que crerem sejam salvos.

Noll resume bem ao dizer que: “Estudar a história do cristianismo é lembrar continuamente o caráter histórico da fé cristã” [6].

Sem o fato histórico da encarnação, morte e ressurreição de Cristo, podemos falar até de experiência religiosa, mas não de experiência cristã. A experiência cristã depende fundamentalmente destes eventos [7]. Quando focamos o nosso olhar na experiência, corremos o risco de perder a dimensão da essência, do referente, que é Deus. Neste processo, como escreveu Barth (1886-1968), “a passagem da experiência do Senhor à experiência de Baal é curta. O religioso e o sexual são extremamente semelhantes” [8].

Jesus Cristo é o clímax da revelação. É a Palavra final de Deus. Nele, temos não uma metáfora ou um sinal, antes, temos o próprio Deus que se fez homem na história. “Jesus Cristo é a revelação final e especial de Deus. Porque Jesus Cristo era verdadeiramente Deus, ele nos mostrou mais plenamente com quem Deus era semelhante do que qualquer outra forma de revelação. Porque Jesus foi também completamente homem, Ele falou mais claramente a nós do que pode fazê-lo qualquer outra forma de revelação” [9].

A História da Igreja, bem como da Teologia, tem um lado divino: Deus dirige a História e, um lado humano: os fatos compartilhados por todos nós que a vivemos. Os atos de Deus, na História, não são objeto de análise do historiador. Não somos Lucas, inspirados infalivelmente por Deus, apresentando uma interpretação inspirada. A relação entre a história e a teologia é extremamente complexa e de difícil interpretação [10]. Além disso, é preciso delimitar a esfera de domínio do historiador e do teólogo. Somos homens comuns, que procuramos estabelecer métodos, examinar documentos, fazer-lhes perguntas e interpretá-los a bem da melhor compreensão possível do que aconteceu.

Nesse sentido, a História é uma ciência social “cujo objeto é o conhecimento do processo de transformação da sociedade ao longo do tempo” [11]. Ela tem como pressuposto a consciência de determinada ignorância – aliás, a consciência da ignorância é um requisito fundamental para o historiador – para a qual buscaremos uma solução [12].

Contudo, não captamos o fato absolutamente. Ele, como “conhecimento autêntico e seguro”, sempre nos escapa [13]; compreendemos, sim, as nossas versões dos fatos que julgamos ser coerentes com eles. No entanto, há uma interação mutativa: as evidências interferem em nossa cosmovisão e esta, por sua vez, fornece-nos novos cânones – provisórios é verdade – de aproximação das mesmas evidências que, agora, podem já não ser consideradas evidências.

O estudo do passado, se devidamente compreendido, ainda que não exaustivamente, pode nos levar a reavaliar as nossas próprias suposições que, em muitos casos, são “crenças correntes” [14] já tão bem estabelecidas que julgávamos acima de qualquer “suspeita”. O grande historiador contemporâneo Georges Duby (1919-1996), colocou isto de forma bela e ao mesmo tempo angustiante: “Todo historiador se extenua para conseguir a verdade; essa presa escapa-lhe sempre” [15].

A História da Igreja, por exemplo, é uma ciência que não está atrelada a nenhuma ciência em particular. Como ciência histórica, deve apresentar um quadro histórico e cronológico dos principais fatos da vida da Igreja do período analisado. Para que isso seja feito com clareza, tornam-se necessárias fontes documentais. Nelas, passamos a nos alicerçar para exaurir as informações de cada época, a fim de formular um quadro interpretativo coerente com os documentos disponíveis.

Na história temos a revelação dos atos de Deus. Deus age ordinariamente por meios dos fenômenos “naturais”. Isso faz parte de nossa fé. No entanto, enquanto historiador, o cristão deve avaliar os documentos e elaborar suas hipóteses a partir desses fenômenos esforçando-se para que as suas conclusões não sejam gratuitas. Que Deus nos abençoe. Amém.

São Paulo, 08 de novembro de 2018.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

 


 

[1] Karl Barth, Esboço de uma Dogmática, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 12.

[2] Veja-se, por exemplo: Francis A. Schaeffer, Nenhum conflito final: a Bíblia sem erro em tudo o que ela afirma, Brasília, DF.: Monergismo, 2017, p. 13-33.

[3] Georges Duby (1919-1996), dentro de uma perspectiva puramente histórica, admite: “O Cristianismo, que impregnou fundamentalmente a sociedade medieval, é uma religião da história. Proclama que o mundo foi criado num dado momento e que, num outro, Deus fez-se homem para salvar a humanidade. A partir disso, a história continua e é Deus quem a dirige” (Georges Duby, Ano 1000, ano 2000, na pista de nossos medos, São Paulo: Editora UNESP.; Imprensa Oficial do Estado, 1999, p. 16). “Os historiadores insistiram com justeza sobre o fato de que o cristianismo é uma religião histórica, ancorada na história e se afirmando como tal” (Jacques Le Goff, Tempo: In: Jacques Le Goff; Jean-Claude Schmitt, coords. Dicionário Temático do Ocidente Medieval, Bauru, SP.; São Paulo, SP.: Editora da Universidade Sagrado Coração; Imprensa Oficial do Estado, 2002, v. 2, p. 534). “O cristianismo, como também a religião de Israel, da qual ele nasceu, se apresenta como uma religião histórica de forma absolutamente concreta, em comparação à qual nenhuma das outras religiões do mundo pode se equiparar – nem mesmo o Islã, apesar de este se aproximar mais do cristianismo e do judaísmo, nesse sentido, que qualquer outra religião” (Christopher Dawson, Dinâmicas da História no Mundo, São Paulo: É Realizações Editora, 2010, p. 343). Do mesmo modo: Marc Bloch, Apologia da história, ou, O ofício do historiador, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 58).

[4] Veja-se: Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 23ss. “Qualquer coisa que se apresente como cristianismo, mas que não insista na absoluta e essencial necessidade de Cristo, não é cristianismo. Se Ele não for o coração, a alma e o centro, o princípio e o fim do que é oferecido como salvação, não é a salvação cristã, seja lá o que for” (D. M. Lloyd-Jones, O supremo propósito de Deus: Exposição sobre Efésios 1.1-23, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 143).

[5] Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 311.

[6] Mark A. Noll, Momentos Decisivos na História do Cristianismo, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2000, p. 16. Vejam-se também: Clyde P. Greer, Jr., Refletindo Honestamente sobre a História: In: John F. MacArthur Jr. ed. ger. Pense Biblicamente!: recuperando a visão cristã do mundo, São Paulo: Hagnos, 2005, p. 400-401.

[7] Cf. J. Gresham Machen, Cristianismo e Liberalismo, São Paulo: Os Puritanos, 2001, p. 77.

[8] Karl Barth, A Palavra de Deus e a Palavra do homem, São Paulo: Novo Século, 2004, p. 217.

[9] James W. Sire, O Universo ao Lado, São Paulo: Hagnos, 2004, p. 40.

[10] Ver: Michel De Certeau, A Escrita da História, 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 33ss.

[11] Nelson W. Sodré, Formação Histórica do Brasil, São Paulo: Brasiliense, (1962), p. 3.

[12] Veja-se: R.G. Collingwood, A Idéia de História, Lisboa: Editorial Presença, (s.d.), p. 21.

[13] “O homem sente necessidade absoluta de chegar ao conhecimento autêntico do que verdadeiramente aconteceu, ainda que tenha consciência da pobreza dos meios de que para isso dispõe” (Johan Huizinga, El Concepto de la Historia y Otros Ensayos, 4. reimpresión, México: Fondo de Cultura Econômica, 1994, p. 92).

[14] Veja-se: Quentin Skinner, Liberdade antes do Liberalismo, São Paulo: Editora UNESP/Cambridge, 1999, p. 90.

[15] Georges Duby, O Prazer do Historiador: In: Pierre Nora, et. al. Ensaios de Ego-História, Lisboa: Edições 70, (1989), p. 110.

2 thoughts on “O Divino e o humano no tempo e na história: Um testemunho de fé

  • 11 de novembro de 2018 em 15:46
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    Parabéns pelo texto, lúcido e contemporâneo, louvado seja Deus!!

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    • 12 de novembro de 2018 em 11:16
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      Obrigado Fábio!

      Resposta

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