Introdução ao Estudo dos Credos e Confissões (36) – O uso de Catecismos e Confissões: Valor e importância (1)
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2. Valor e importância
A ideia de Credos desagrada a muitas pessoas porque os Credos pressupõem caminhos a serem seguidos. Assim, imaginam os Credos como um empobrecimento espiritual, um amordaçamento do Espírito. Dentro desta perspectiva, a doutrina tem pouco valor, o que importa de fato é a “vida cristã”; daí as ênfases de tais pessoas ou grupos nas “experiências” místicas – que, via de regra, pretendem convalidar a Palavra –, ou num “evangelho” puramente ético-social. Todavia, ambos os comportamentos, que revelam o mesmo equívoco, pecam por não compreender que a base de uma vida cristã autêntica é uma sólida doutrina vivenciada (Veja-se: 1Tm 4.16).[1]
Lloyd-Jones (1899-1981) acentuou bem este ponto, dizendo:
Toda a doutrina cristã visa levar, e foi destinada a levar a um bom resultado prático. (…) A doutrina visa levar-nos a Deus, e a isso foi destinada. Seu propósito é ser prática (…) a nossa vida cristã nunca será rica, se não conhecermos e não aprendermos a doutrina.[2]
Você não poderá ser santo, se não conhecer bem a doutrina. Doutrina é a ligação direta que leva à santidade. É somente quando compreendemos estas verdades fundamentais que podemos atender ao apelo lógico para a conduta e o comportamento agradáveis a Deus.[3]
Alinhemos agora, alguns elementos que atestam a importância e o valor dos Credos:
1) A Confissão de nossa fé é uma obrigação natural de todo cristão.[4] Os Credos facilitam a confissão pública de nossa fé, organizando de forma sucinta os principais pontos doutrinários de uma denominação.
2) Oferecem-nos de forma abreviada o resultado de um processo cumulativo da história, reunindo as melhores contribuições de diversos servos de Deus na compreensão da Verdade. Devemos estar atentos de que a nossa leitura das Escrituras não é a primeira nem será a última.[5] As confissões refletem mais especificamente a compreensão de uma igreja, não de um teólogo em particular com suas pré-compreensões.[6] Estas elaborações, ainda que revelem questões locais e circunstanciais, têm a sua fundamentação nas Escrituras, valendo-se de diversas contribuições da igreja, elaboradas, revistas, corrigidas e consolidadas ao longo da história.[7] Ainda que a confissão seja individual, um testemunho de nossa fé, os credos se constituem num patrimônio da igreja.[8] Não estamos sozinhos; podemos e devemos nos valer do que o Espírito tem operado por meio de seus servos ao longo da história.
Como vimos parcialmente no primeiro post dessa série, Veith nos desafia e consola:
Os cristãos modernos são os herdeiros de uma grande tradição intelectual cristã. Essa tradição de pensamento ativo e solução prática de problemas é uma aliada vital dos cristãos que lutam contra as tendências intelectuais do mundo contemporâneo. O uso das perspectivas do passado pode fornecer uma perspectiva valiosa sobre as questões atuais. Podemos, assim, livrar-nos da tirania do presente, a suposição de que a maneira que as pessoas pensam hoje é o único modo possível de pensar.[9]
Os cristãos de hoje podem fazer uso da tradição intelectual cristã, como também podem se tornar uma parte dela, que exerceu um tremendo impacto no mundo. Uma das chaves para solucionar os dilemas que um cristão enfrentará no mundo contemporâneo é perceber que nenhum cristão precisa encarar nenhum problema sozinho.[10]
Em outro lugar, referindo-nos à ciência, enfatizamos que ela não tem pátria nem idade; não sendo privilégio de um povo, menos ainda de um indivíduo; todo cientista – usando a figura de João de Salisbury (c. 1110-1180)[11] – equivale a um anão sobre os ombros de gigantes, valendo-se das contribuições de seus predecessores, a fim de poder enxergar um pouco além deles.
Podemos aplicar esta figura à teologia. Aliás, Packer já o fez, mais especificamente aplicando à tradição:
A tradição nos permite ficar sobre os ombros de muitos gigantes que pensaram sobre a Bíblia antes de nós. Podemos concluir pelo consenso do maior e mais amplo corpo de pensadores cristãos, desde os primeiros Pais até o presente, como recurso valioso para compreender a Bíblia com responsabilidade. Contudo, tais interpretações (tradições) jamais serão finais; precisam sempre ser submetidas às Escrituras para mais revisão.[12]
Continuaremos no próximo post elencando outros argumentos.
Maringá, 22 de janeiro de 2019.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Veja-se uma boa discussão histórica sobre esse ponto em: Alister E. McGrath, A gênese da doutrina: fundamentos da crítica doutrinária, São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 84-90 (em especial).
[2]D.M. Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 85-86.
[3]D.M. Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, p. 254. Alhures Jones insiste: “Uma das primeiras coisas que você deve aprender nesta vida cristã e nesta guerra é que, se você estiver errado em sua doutrina, estará errado em todos os aspectos da sua vida. Provavelmente estará errado em sua prática e em sua conduta; e certamente estará errado em sua experiência” (David Martyn Lloyd-Jones, O Combate Cristão, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1991, p. 101-102). “Não existe nada que seja tão errôneo e tão completamente falso como não perceber a importância primordial da doutrina verdadeira” (Ibidem., 102). “A verdadeira doutrina cristã é sempre urgentemente importante. É de suma importância para toda a vida da Igreja” (Ibidem., p. 103). “Se me pedissem para mencionar o maior problema entre os cristãos atuais, incluindo-se os conservadores, eu diria que é a nossa falta de espiritualidade e de um verdadeiro conhecimento de Deus” (D.M. Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, p. 8. Prefácio). “Jamais poderemos conhecer demasiadamente as grandes doutrinas da fé, mas se esse conhecimento não nos leva a uma experiência cada vez mais profunda do amor de Cristo, não passa de conhecimento que ‘incha’ (1Co 8.1)” (Ibidem., p. 8. Prefácio) “O conhecimento é absolutamente essencial; sem conhecimento não pode haver nenhum crescimento. Todavia o conhecimento, no sentido verdadeiramente cristão, nunca é meramente intelectual. É assim, e isso porque é o conhecimento de uma Pessoa. O propósito de toda doutrina, o valor de toda instrução, é levar-nos à Pessoa do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (Ibidem., p. 165). “O evangelho não começa com as minhas dores e penas, minha necessidade de orientação, minha aflição. Não, começa com conhecer a Deus (…). O objetivo do cristianismo é levar-nos ao conhecimento de Deus como Deus, e ao conhecimento do Senhor Jesus Cristo” (Ibidem., p. 127).
[4] “A confissão é a obrigação de todos os crentes, e é também um ditado deles aos seus próprios corações; a pessoa que realmente crê, com todo o seu coração e com toda a sua alma, não pode fazer outra coisa senão confessar, isto é, dar testemunho da verdade que a libertou e da esperança que foi plantada em seu coração por essa verdade (Mt 10.32; Rm 10.9,10; 2Co 4.13; 1Pe 3.15; 1Jo 4.2,3)” (Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara D’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 130).
[5] “Os evangélicos têm tido sempre a tendência de ler a Escritura como se fossem os primeiros a fazer isso. Precisamos lembrar que outros já estiveram lá antes de nós, e já leram antes que nós o fizéssemos. Esse processo de receber a revelação escritural é ‘tradição’ – não uma fonte de revelação somada à Escritura, e sim um modo particular de se entender a Bíblia que a igreja cristã tem reconhecido como responsável e confiável” (Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 81).
[6] “Ninguém vai à Bíblia sozinho, mas leva consigo toda uma multidão de influências. É infinitamente mais fácil distorcer a Palavra de Deus quando nos isolamos do consenso de outros crentes através dos tempos e do espaço” (Michael S. Horton, Os Sola’s de Reforma: In: J.M. Boice; B. Sasse, Reforma Hoje, São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 105).
[7] “A função das confissões ou credos não é puxar a Escritura para trás, mas mantê-la e protegê-la contra caprichos individuais (Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara D’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 130).
[8] Veja-se: W. Seibel, Confissão: In: Heinrich Fries, ed. Dicionário de Teologia, 2. ed. São Paulo: Loyola, 1987, v. 1, p. 274.
[9]Gene Edward Veith, Jr., De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 97.
[10]Gene Edward Veith, Jr, De Todo o Teu Entendimento, p. 99.
[11] Cf. N. Abbagnano; A. Visalberghi, Historia de la Pedagogía, Novena reimpresión, México: Fondo de Cultura Económica, 1990, p. 203. Parece que esta figura também foi empregada por outro teólogo medieval, “que morreu quase 300 anos antes de Lutero nascer….”, Pedro de Blois (Cf. Timothy George, Teologia dos Reformadores, São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 23). Newton mais tarde (05/02/1676) em carta a Robert Hooke (1635-1703 – seu ferrenho adversário (Cf. Paolo Casini, Newton e a Consciência Européia, São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1995, p. 26ss) -, supostamente referindo-se a Kepler (1571-1630), Galileu (1564-1643) e Descartes (1596-1650), entre outros, também faria uso desta analogia. (Veja-se: N. Abbagnano; A. Visalberghi, Historia de la Pedagogía, p. 280; Stephen Hawking, Os Gênios da Ciência: Sobre os ombros do Gigante: as mais importantes ideias e descobertas da física e da astronomia, Rio de Janeiro: Elsevier Editora, 2005, p. XI, 441).
[12] J.I. Packer, O Conforto do Conservadorismo: In: Michael Horton, ed. Religião de Poder, p. 235. “Quem examina a tradição encontra aberta diante de si a sabedoria de todas as épocas” (J.I. Packer, Ibidem., p. 237). “Humildade no juízo particular quer dizer que continuamos a examinar as Escrituras até ficar claro o que Deus disse, proibindo nosso intelecto orgulhoso de tirar conclusões sobre aquilo que o Deus da Bíblia deixa em aberto ou de recusar-nos a aceitar ajuda da tradição cristã na interpretação das Escrituras sob a suposição de que um estudante da Bíblia ‘se vira’ perfeitamente bem sem essa ajuda” (J.I. Packer, O Conforto do Conservadorismo: In: Michael Horton, ed. Religião de Poder, p. 241). Carson de forma particular ilustra isso: “Em meu próprio horizonte, reconheço alegremente um senso de dívida para com uma hoste de eruditos de cujo entendimento me beneficio, embora um tanto inadequadamente” (John Piper; D.A. Carson, O Pastor como Mestre e o Mestre como Pastor, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2011, p. 112).
Muito bom.