Introdução ao Estudo dos Credos e Confissões (16) – A Reforma e os seus Credos (1)
Este artigo é continuação do: Introdução ao Estudo dos Credos e Confissões (15) – Escritura & Tradição: Uma primazia relacional proveitosa e enriquecedora à igreja
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Introdução
Os Credos da Reforma são as Confissões de Fé e Catecismos que surgiram no período da Reforma ou por inspiração daquele movimento, refletindo uma teologia semelhante. Neles não temos a pretensão de uma nova teologia, antes, a explicação dos Credos aceitos pela igreja. Portanto, mais do que uma teologia inovadora, temos uma visão nova e paradoxalmente restauradora das antigas doutrinas das Escrituras.
A expressão “confissão” é extraída do Novo Testamento, o(mologi/a (1Tm 6.12-13/ Hb 3.1; 4.4; 10.23). Na Igreja primitiva, a expressão foi usada no sentido de uma “declaração solene” e, passou a descrever o testemunho dos mártires antes de sua morte.[1] Posteriormente, o Protestantismo passou a usar a palavra para designar as suas declarações elaboradas de fé.
Conforme vimos, nos séculos 4º e 5º a Igreja foi intensa e necessariamente ativa em seus pronunciamentos quanto às heresias que afloravam em seu meio. Ali temos a elaboração de Credos ((Nicéia (325), Constantinopla (381), Calcedônia (451), Atanasiano (c. 500)) que foram de capital importância para que os fiéis tivessem uma visão clara do que a Igreja cria e ensinava.
Num ambiente de efervescência teológica que revelava mais a criatividade humana do que fidelidade bíblica, foi de fundamental importância que a Igreja se posicionasse revelando de modo evidente o seu compromisso com a Escritura Sagrada.
De certa forma, podemos dizer que o que foram os séculos 4º e 5º para a elaboração dos Credos, foram os séculos 16 e 17 para a confecção das Confissões e Catecismos. A razão nos parece evidente: Na Reforma, as Igrejas logo sentiram a necessidade de formalizar a sua fé, apresentando sua interpretação sobre diversos assuntos que as distinguia da igreja romana; com o passar do tempo, surgem outras denominações dentro da Reforma, que, discordavam entre si sobre alguns pontos, daí a necessidade de se estabelecer cada um per si, os seus princípios doutrinários.
Calvino (1509-1564), já combatera a “fé implícita”[2] – que era patente na teologia católica –, declarando que a nossa fé deve ser “explícita”. No entanto, ele ressalta que devido ao fato de que nem tudo foi revelado por Deus, bem como à nossa ignorância e pequenez espiritual, muito do que cremos permanecerá nesta vida de forma implícita.
Calvino depois de um extenso comentário, nos diz:
Certamente que não nego (de que ignorância somos cercados!) que muitas cousas nos sejam agora implícitas, e ainda o hajam de ser, até que, deposta a massa da carne, nos hajamos achegado mais perto à presença de Deus, cousas essas em que nada pareça mais conveniente que suspender julgamento, mas firmar o ânimo a manter a unidade com a Igreja.[3] Com este pretexto, porém, adornar com o nome de fé à ignorância temperada com humildade, é o cúmulo do absurdo. Ora, a fé jaz no conhecimento de Deus e de Cristo (Jo 17.3), não na reverência à Igreja.[4] (grifos meus).
Em outro lugar:
Que costume é esse de professar o evangelho sem saber o que ele significa? Para os papistas, que se deixam dominar pela fé implícita, tal coisa pode ser suficiente. Mas para os cristãos não existe fé onde não haja conhecimento.[5]
Pelas palavras de Calvino, podemos observar a necessidade latente do ensino e estudo constante da Palavra de Deus, a fim de que cada homem, sendo como é, responsável diante de Deus, tenha condições de se posicionar diante de Deus de forma consciente; a fé explícita é patenteada pela Igreja por intermédio do ensino da Palavra.[6]
Tillich (1886-1965) interpretando esse fato, diz:
Cada indivíduo deve ser capaz de confessar os próprios pecados, experimentar o significado do arrependimento, e se tornar certo de sua salvação em Cristo. Essa exigência gerava um problema no protestantismo. Significava que todas as pessoas precisavam ter o mesmo conhecimento básico das doutrinas fundamentais da fé cristã. No ensino dessas doutrinas não se emprega o mesmo método para o povo comum e para os candidatos às ordens, ou para os futuros professores de teologia, com a prática do latim e grego, da história da exegese e do pensamento cristão. Como se pode ensinar a todos? Naturalmente, apenas se tornarmos o ensino extremamente simples.[7]
Essa necessidade determina o uso cada vez mais evidente da razão, a fim de apresentar de forma mais razoável possível a doutrina, e ao mesmo tempo, de forma simples. Eis dois marcos do ensino ortodoxo: amplitude e simplicidade. O ser humano é responsável diante de Deus; ele dará contas de si mesmo ao seu Criador; portanto, tendo oportunidade, ele precisa conhecer devidamente a Palavra de Deus em toda a sua plenitude revelada.
Nesse período são compostas diversas “Confissões”, que além de visar preservar a sã doutrina, objetivavam tornar clara e objetiva a fé dos crentes. Essas declarações de fé precisavam ser, até certo ponto, completas. Entretanto, precisavam ao mesmo tempo ser simples, para que o crente comum (não iniciado nas questões teológicas) pudesse entender o que estava sendo dito. Confrontando este ensinamento com a Palavra de Deus, o crente teria, assim, uma compreensão bíblica da sua fé. Nesse contexto e, com objetivos eminentemente didáticos, surgem os catecismos (Gr. Kathxe/w = “ensinar”, “instruir”, “informar”. Cf. Lc 1.4; At 18.25; 21.21,24; Rm 2.18; 1Co 14.19; Gl 6.6.), constituídos, ainda que não exclusivamente, com perguntas e respostas. Até o século XVI, a palavra “catecismo” não tivera sido usada neste sentido.[8] Os catecismos visavam servir para instruir as crianças e os adultos;[9] este é o motivo que contribuiu decisivamente para a proliferação de catecismos, sendo que a maioria deles jamais passou da forma manuscrita, visto que muitos pastores os elaboravam apenas para a sua congregação local, visando atender às suas necessidades doutrinárias.[10]
São Paulo, 5 de dezembro de 2018.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]Vejam-se: Otto Michel, O(mologe/w: In: G. Friedrich; G. Kittel, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982, v. 5, p. 199-220; Mark A. Noll, ed. Confessions and Catechisms of the Reformation, Vancouver: Regent College, 2004, p. 13; Mark A. Noll, Confissões de Fé: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, v. 1, p. 336.
[2] Que chama de “espectro papista” (J. Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 10.17), p. 375) e, “fé forjada e implícita inventada pelos papistas. Pois por fé implícita eles querem dizer algo destituído de toda luz da razão” (João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (Tt 1.1), p. 299), que “separa a fé da Palavra de Deus” (J. Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 10.17), p. 375).
[3] Foi com este espírito que Calvino nos advertiu diversas vezes: “As cousas que o Senhor deixou recônditas em secreto não perscrutemos, as que pôs a descoberto não negligenciemos, para que não sejamos condenados ou de excessiva curiosidade, de uma parte, ou de ingratidão, de outra” (J. Calvino, As Institutas, III.21.4). “Nem nos envergonhemos em até este ponto submeter o entendimento à sabedoria imensa de Deus, que em Seus muitos arcanos sucumba. Pois, dessas cousas que nem é dado, nem é lícito saber, douta é a ignorância, a avidez de conhecimento, uma espécie de loucura” (As Institutas, III.23.8). ”Que esta seja a nossa regra sacra: não procurar saber nada mais senão o que a Escritura nos ensina. Onde o Senhor fecha seus próprios lábios, que nós igualmente impeçamos nossas mentes de avançar sequer um passo a mais” (J. Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Edições Paracletos, 1997, (Rm 9.14), p. 330).
[4]João Calvino, As Institutas, III.I.3. (Veja-se também III.2.5ss). Em outras passagens, Calvino discorreu sobre a fé; cito aqui algumas delas: “Fé verdadeira, é aquela que o Espírito de Deus sela em nosso coração” (João Calvino, As Institutas, I.7.5). “A fé não consiste na ignorância, senão no conhecimento; e este conhecimento há de ser não somente de Deus, senão também de sua divina vontade” (As Institutas, III.2.2). “É um conhecimento firme e certo da vontade de Deus concernente a nós, fundamentado sobre a verdade da promessa gratuita feita em Jesus Cristo, revelada ao nosso entendimento e selada em nosso coração pelo Espírito Santo” (As Institutas, III.2.7). “Nossa fé repousa no fundamento de que Deus é verdadeiro. Além do mais, esta verdade se acha contida em sua promessa, porquanto a voz divina tem de soar primeiro para que possamos crer. Não é qualquer gênero de voz que é capaz de produzir fé, senão a que repousa sobre uma única promessa. Desta passagem, pois, podemos deduzir a relação mútua entre a fé dos homens e a promessa de Deus. Se Deus não prometer, ninguém poderá crer” (João. Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 10.23), p. 270). “Fé verdadeira é aquela que ouve a Palavra de Deus e descansa em sua promessa” (João. Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 11.11) p. 318). “Nossa fé não tem que estar fundamentada no que nós tenhamos pensado por nós mesmos, senão no que nos foi prometido por Deus” (J. Calvino, Sermones Sobre la Obra Salvadora de Cristo, Jenison, Michigan: TELL, 1988, “Sermon nº 13”, p. 156).
[5]João Calvino, Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 1.2), p. 25.
[6] “A Escritura é a escola do Espírito Santo, na qual, como nada é omitido não só necessário, mas também proveitoso de conhecer-se, assim também nada é ensinado senão o que convenha saber” (João. Calvino, As Institutas, III.21.3).
[7]Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX, São Paulo: ASTE., 1986, p. 41.
[8]Cf. D.F. Wright, Catecismos: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1988-1990, v. 1, p. 249.
[9]Veja-se: M. Lutero, Catecismo Maior, Prefácio, II.1-6: In: Os Catecismos, Porto Alegre, RS.; /São Leopoldo, RS.: Concórdia; Sinodal, 1983, p. 391. Ver também: Alister E. McGrath, Teologia Sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 106.
[10] Daqui depreende-se que não foram somente eruditos que escreveram catecismos, mas também pastores, que estavam preocupados especificamente com a sua comunidade local (Veja-se: David. F. Wright, Catechism: Donald K. McKim, ed. Encyclopedia of the Reformed Faith, Louisville, Kentucky, Westminster; John Knox Press, 1992, p. 60).
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