“Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (19)
Curiosamente, ao aproximar-se o final do seu ministério terreno, às vésperas da sua autoentrega, Jesus se despede de seus discípulos falando do Consolador e, também, das tribulações pelas quais passariam (Jo 13-16). Há aqui uma transição muito importante e significativa: o Senhor após falar de seu sofrimento, considera-o como algo vencido – o que deve servir de estímulo aos discípulos: “Estas coisas vos tenho dito para que tenhais paz em mim. No mundo, passais por aflições; mas tende bom ânimo; eu venci o mundo” (Jo 16.33).[1]
A cruz ‒ ainda incompreensível e inimaginável aos discípulos ‒ símbolo de vergonha, humilhação, dor e aparente derrota, faz parte essencial de sua vitória. Aliás, todo o seu ministério, envolvendo o seu nascimento, ressurreição, ascensão e retorno glorioso, encontra o seu sentido na cruz. Notemos, então, que a cruz não pode ser apenas um enfeite ou ornamento, antes, nos fala do pecado humano, da justiça, da santidade e do amor de Deus.[2] Sem a cruz de Cristo não há evangelho, nem fé, e, portanto, pregação.
Os discípulos de Cristo não devem se enganar, daí o Senhor longe de lhes alimentar expectativas materiais, diz:
10Bem-aventurados os perseguidos (diw/kw) por causa da justiça (dikaiosu/nh), porque deles é o reino dos céus. 11Bem-aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem (o)neidi/zw), e vos perseguirem (diw/kw), e, mentindo (yeu/domai), disserem todo mal (ponhro/j) contra vós. 12 Regozijai-vos (xai/rw)[3] e exultai (a)gallia/w), porque é grande o vosso galardão (misqo/j) nos céus; pois assim perseguiram (diw/kw) aos profetas que viveram antes de vós. (Mt 5.10-12).
O ódio ao Filho se estende ao Pai: “Quem me odeia também a meu Pai” (Jo 15.23). Jesus diz que seus discípulos habitam temporariamente no mundo, mas, como escolhidos de Deus, foram eficazmente chamados.
A Igreja é chamada de família de Deus; judeus e gentios foram unidos em um só Corpo (Ef 2.17-19).[4] Isso é um privilégio inigualável e que, em última instância, a sua grandeza ultrapassa a nossa compreensão. Porém, não nos iludamos. Se odeiam ao Pai e ao Filho, o nosso irmão mais velho, qual a expectativa que a igreja pode ter em relação ao mundo? Ser amada, tolerada, perseguida? É preciso discernimento. No período de paz, as coisas podem ser mascaradas; os sintomas podem não ser percebidos. Porém, nos momentos de evidente posicionamento, não nos iludamos: em essência somos odiados pelo mundo por aquilo que somos e representamos.
Jesus Cristo orando pelos seus discípulos, diz: “Eles não são do mundo como também eu não sou (…). Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo” (Jo 17.16,18). O apóstolo João exorta: “Não ameis o mundo nem as cousas que há no mundo (…) o mundo passa, bem como a sua concupiscência; aquele, porém, que faz a vontade de Deus permanece eternamente” (1Jo 2.15,17).
Percebem então o conflito? O ódio do mundo é devido ao contraste existente entre osfilhos de Deus e os filhos do mundo. O mundo aborrece os discípulos de Cristo pelo fato destes terem uma forma diferente de avaliação da vida; eles olham a realidade partindo de uma perspectiva diferente.
Bonhoeffer (1906-1945) resume: “A Igreja de Cristo, a Igreja dos discípulos, foi arrebatada ao domínio do mundo. Vive no mundo, é verdade. Mas foi feita um corpo, é um domínio independente, um espaço para si. É a Santa Igreja (Ef 5.27), a Comunhão dos Santos (1Co 14.33)”.[5]
Desta forma, o que caracteriza a diferença é o chamamento de Cristo. Cristo nos chama e nos transforma pela sua Palavra. A Palavra de Deus é transformadora. Ela opera de tal forma que nem mais conseguimos entender como podíamos viver do modo antigo e, ao mesmo tempo, como não enxergávamos antes a significativa realidade, importância e beleza da vida cristã.
São Paulo, 19 de fevereiro de 2020.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] Veja-se Hermisten M.P. Costa, A Tua Palavra é a Verdade, Brasília, DF.: Monergismo, 2010.
[2] “A justiça e o amor se encontraram e se abraçaram. Os santos atributos de Deus são glorificados juntamente na morte do Filho de Deus na cruz” (David Martyn Lloyd-Jones, Uma Nação sob a Ira de Deus: estudos em Isaías 5, 2. ed. Rio de Janeiro: Textus, 2004, p. 222).
[3] O verbo está no imperfeito, xai/rete, indicando uma ação incompleta visto que ainda está em processo de realização com vistas ao seu objetivo final. Neste caso, a alegria recomendada deve ser contínua.
[4]“17E, vindo, evangelizou paz a vós outros que estáveis longe e paz também aos que estavam perto; 18porque, por ele, ambos temos acesso ao Pai em um Espírito. 19Assim, já não sois estrangeiros e peregrinos, mas concidadãos dos santos, e sois da família de Deus” (Ef 2.27-19).
[5] D. Bonhoeffer, Discipulado, 2. ed. São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1984, p. 169.