Eu lhes tenho dado a tua Palavra (Jo 17.1-26) (83)
O Espírito como Senhor da vida e Mestre da Oração (Continuação)
Calvino observou que na oração, “a língua nem sempre é necessária, mas a oração verdadeira não pode carecer de inteligência e de afeto de ânimo”,[1] a saber:
O primeiro, que sintamos nossa pobreza e miséria, e que este sentimento gere dor e angústia em nossos ânimos. O segundo, que estejamos inflamados com um veemente e verdadeiro desejo de alcançar misericórdia de Deus, e que este desejo acenda em nós o ardor de orar.[2]
Depois de falar sobre a necessidade de termos grande zelo pelo nome de Deus, zelo este que fez com que o salmista pedisse o castigo de Deus contra os seus inimigos que profanaram o templo, destruíram Jerusalém e mataram seus filhos de forma cruel, Calvino acrescenta: “Se este sentimento reinasse em nossos corações, o mesmo facilmente moderaria o desgoverno de nossa carne; e se a sabedoria do Espírito lhe fosse acrescida, nossas orações estariam em estrita concordância com os justos juízos de Deus”.[3]
Spener (1635-1705), escrevendo sobre a oração, segue uma linha semelhante: “Não é suficiente que se ore exteriormente, com a boca, pois a oração verdadeira e mais necessária acontece no nosso ser interior, podendo expressar-se em palavras ou permanecer na alma, mas, de qualquer maneira, lá acha e encontra Deus”.[4]
Paulo diz que nós, os crentes em Cristo, recebemos o Espírito de ousada confiança em Deus, que nos leva, na certeza de nossa filiação divina, a clamar “Aba, Pai”. ”Porque não recebestes o espírito de escravidão para viverdes outra vez atemorizados, mas recebestes o espírito de adoção, baseados no qual clamamos Aba, Pai” (Rm 8.15).[5]
O fato de Paulo usar a mesma expressão de Cristo para nós “significa que, quando Jesus deu a Oração Dominical aos seus discípulos, também lhes deu autoridade para segui-lo em se dirigirem a Deus como ‘abbã’, dando-lhes, assim, uma participação na sua condição de Filho”.[6] Somente pelo Espírito poderemos nos dirigir a Deus desta forma, como uma criança que se lança sem reservas nos braços do seu Pai amoroso.
Quando oramos sabemos que estamos falando com o nosso Pai. Desta forma, a oração é uma prerrogativa dos que estão em Cristo. Somente os que estão em Cristo pela fé, têm a Deus como o seu legítimo Pai (Jo 1.12; Rm 8.14-17; Gl 4.6; 1Jo 3.1-2). De onde se segue que a oração do Pai Nosso, apesar de não mencionar explicitamente o nome de Cristo, é feita no Seu nome, visto que somos filhos de Deus – e é nesta condição que nos dirigimos a Deus –por intermédio de Cristo Jesus (Gl 3.26).[7]
Portanto, quando oramos o Pai Nosso sinceramente, na realidade estamos orando no nome de Jesus Cristo, pois, foi Ele mesmo quem nos ensinou a fazê-lo. Assim, devemos, pelo Espírito – nosso intercessor – no nome de Jesus – nosso Mediador – orar “Pai nosso que estás no céu….”.
Maringá, 27 de junho de 2020.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]J. Calvino, Catecismo de Genebra, Perg. 240. Para uma interpretação alternativa do texto de Romanos 8.26-27, consulte Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática,p. 916-917, que associa a passagem a “suspiros e gemidos inarticulados que nós mesmos emitimos em oração, que então o Espírito Santo transforma em intercessão efetiva diante do trono divino” (p. 916).
[2]J. Calvino, Catecismo de Genebra, Perg. 243.
[3]João Calvino, O Livro dos Salmos,São Paulo: Edições Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 79.12), p. 260.
[4]Ph. J. Spener,Mudança para o Futuro: Pia Desideria,São Paulo; Curitiba, PR.: Encontrão Editora; Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião, São Bernardo do Campo, SP.: 1996, p. 119.
[5] Veja-se: Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 618.
[6] O. Hofius, Pai: In: Colin Brown, ed. ger., O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento,São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 3, p. 383.
[7] Veja-se: João Calvino, As Institutas,III.20.36.