Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (82)
5.9. O Espírito como Senhor da vida e Mestre da Oração (Continuação)
O auxílio do Espírito
Paulo, discorrendo sobre a fraqueza humana, a exemplifica na vida cristã no fato de nem ao menos sabermos orar como convém (Rm 8.26-27).[1] Por isso, o Espírito que em nós habita nos auxilia em nossas orações, fazendo-nos pedir o que convém, o que é natural e necessário à nossa existência, capacitando-nos a rogar de acordo com a vontade de Deus. A oração eficaz é aquela que tem o Espírito como seu autor. Sem o auxílio do Espírito jamais oraríamos com discernimento.
Calvino, analisando o fato de que pedimos tantas coisas erradas a Deus e que, se Ele nos concedesse o que solicitamos, traria muitos males sobre nós,[2] ao tratar da Oração do Senhor, afirma:
Nem podemos abrir a boca diante de Deus, sem grave perigo, a não ser que o Espírito nos instrua sobre a norma certa de orar [Rm 8.26]. Em quão maior apreço merece ser julgado entre nós este privilégio, quando o Unigênito Filho de Deus nos sugere à boca palavras que desvencilhem nossa mente de toda vacilação!.[3]
A oração genuína é sempre precedida do senso de necessidade e de uma fé autêntica nas promessas de Deus.[4]
Muitas vezes estamos tão confusos diante das opções que temos, que não sabemos nem mesmo como apresentar os nossos desejos e as nossas dúvidas diante de Deus. Todavia o Espírito nos socorre. Ele “ora a nosso favor quando nós mesmos deveríamos ter orado, porém não sabíamos para que orar”, resume Palmer (1922-1980).[5]
Comentando o Salmo 91.12, diz o reformador: “Nunca podemos aquilatar os sérios obstáculos que Satanás poria contra nossas orações não nos sustentasse Deus da maneira aqui descrita”.[6] Em outro lugar, ilustra a sua tese:
Chamo tentação espiritual quando não somente somos açoitados e afligidos em nossos corpos; senão quando o diabo opera de tal modo em nossos pensamentos que Deus se nos converte em inimigo mortal, ao que já não podemos ter acesso, convencidos de que nunca mais terá misericórdia de nós.[7]
Precisamos, portanto, “que o mesmo Deus nos ensine, conforme ao que Ele sabe que convém, e que Ele nos leve guiando como que pela mão, e que nós o sigamos”.[8]
Orar como convém é orar segundo a vontade de Deus, colocando os nossos desejos em submissão com o santo propósito de Deus. Isso só é possível pelo Espírito de Deus que se conhece perfeitamente (1Co 2.10-12).[9] Assim, toda oração genuína é sob a orientação e direção do Espírito (Ef 6.18; Jd 20).[10]
O Catecismo Maior de Westminster ensina:
Não sabendo nós o que havemos de pedir, como convém, o Espírito nos assiste em nossa fraqueza, habilitando-nos a saber por quem, pelo quê, e como devemos orar; operando e despertando em nossos corações (embora não em todas as pessoas, nem em todos os tempos, na mesma medida) aquelas apreensões, afetos e graças que são necessários para o bom cumprimento do dever.[11]
Dupla intercessão
O Espírito ora conosco e por nós. Ele, juntamente com Cristo, em esferas diferentes, intercede por nós: “Cristo intercede por nós, no céu, e o Espírito Santo na Terra. Cristo nosso Cabeça Santo, estando ausente de nós, intercede fora de nós; o Espírito Santo, nosso Consolador intercede em nosso próprio coração, que Ele escolheu como seu templo”, contrasta Kuyper (1837-1920).[12]
A intercessão de Cristo respalda-se nos seus merecimentos, obtendo para os seus eleitos, os frutos da sua obra expiatória (Rm 8.34; Hb 7.25; 1Jo 2.1).[13] A intercessão de Cristo exclusivamente pelos seus discípulos,[14] faz parte de seu ministério sacerdotal, levando sobre si um jugo totalmente desigual e incompreensível a nós, como escreveu meu estimado mestre, Salum: “O Senhor Jesus Cristo, no Ttribunal Ddivino, intercede pelos seus eleitos e carrega sobre si o peso de uma troca estranha, porém, gloriosa, incompreensível à nossa mente pecaminosa, mas acolhida com júbilo mediante fé” (Mt 11.28-30)”.[15]
“A intercessão de Cristo é uma contínua aplicação de sua morte para nossa salvação”, resume Calvino.[16]
O Espírito intercede por nós considerando as nossas necessidades vitais e costumeiramente imperceptíveis aos nossos próprios olhos.
Maringá, 27 de junho de 2020.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]“26 Também o Espírito, semelhantemente, nos assiste em nossa fraqueza; porque não sabemos orar como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós sobremaneira, com gemidos inexprimíveis. 27 E aquele que sonda os corações sabe qual é a mente do Espírito, porque segundo a vontade de Deus é que ele intercede pelos santos” (Rm 8.26-27).
[2]Bernardo de Claraval (1090-1153), disse: “Não permitam que eu tenha tamanha miséria, pois dar a mim o que desejo, dar a mim o que meu coração almeja, é um dos mais terríveis julgamentos do mundo” (ApudJeremiah Burroughs, Aprendendo a Estar Contente, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1990, p. 28).
[3]João Calvino, As Institutas ou Tratado da Religião Cristã, 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, III.20.34. Comentando o texto de Romanos 8.26, Calvino segue a mesma linha: “O Espírito, portanto, é Quem deve prescrever a forma de nossas orações” (João Calvino, Exposição de Romanos,São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 8.26), p. 291). Ver também, J. Calvino, O Catecismo de Genebra,Perg. 254.
[4] Veja-se: João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, p. 34.
[5] Edwin H. Palmer, El Espíritu Santo,Edinburgh: El Estandarte de la Verdad, (s.d.), Edición revisada, p. 190.
[6] João Calvino, O Livro dos Salmos,São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 91.12), p. 454.
[7]Juan Calvino, El Carácter de Job, Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L., 1988, (sermón nº 1), p. 28.
[8]J. Calvino, Catecismo de Genebra, Perg. 254.
[9]Leenhardt, comenta: “Para orar ‘como convém’ é preciso orar ‘segundo a vontade de Deus’; isto, entretanto, não pode advir senão de Deus, Que só Se conhece. O mais é ação estéril” (Franz J. Leenhardt, Epístola aos Romanos,São Paulo: ASTE., 1969, p. 226).
[10]“Com toda oração e súplica, orando em todo tempo no Espírito e para isto vigiando com toda perseverança e súplica por todos os santos” (Ef 6.18). “Vós, porém, amados, edificando-vos na vossa fé santíssima, orando no Espírito Santo” (Jd 20).
[11] Catecismo Maior de Westminster,Perg. 182.
[12] Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 634.
[13] “Não temos como medir esta intercessão pelo nosso critério carnal, pois não podemos pensar do Intercessor como humilde suplicante diante do Pai, com os joelhos genuflexos e com as mãos estendidas. Cristo contudo, com razão intercede por nós, visto que comparece continuamente diante do Pai, como morto e ressurreto, que assume a posição de eterno intercessor, defendendo-nos com eficácia e vívida oração para reconciliar-nos com o Pai e levá-lo a ouvir-nos com prontidão” (J. Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 8.34), p. 304).
[14]Berkhof (1873-1957) demonstrando a Expiação Limitada de Cristo, enfatizou esse ponto: “A obra sacrificial de Cristo e sua obra intercessória são simplesmente dois aspectos diferentes de sua obra expiatória e, portanto, o alcance de uma não pode ser mais amplo que o da outra. Ora, Cristo limita mui definidamente a sua obra intercessória, quando diz: ‘Não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus’ (Jo 17.9). Por que limitaria ele a sua oração intercessória se, de fato, pagou o preço por todos?” (Louis Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990, p. 396).
[15]Oadi Salum, Teologia Sistemática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 400.
[16]John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1981, v. 22, (1Jo 2.1l), p. 171.