Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (75)
5.9. O Espírito como Senhor da vida e Mestre da Oração (Continuação)
O Espírito Criador e Recriador
O Antigo Testamento emprega a palavra (ahUr) (rüah), para “espírito”, sendo traduzida por “vento”, “espírito”, “alento”, “hálito”, “sopro” etc. A ideia básica é de “ar em movimento” (Gn 2.7; Ex 10.13,19; 14.21; Dt 32.11; Jó 1.19; Is 7.2).[1]
Quando ‘ahUr é empregado para Deus, denota o seu poder incorruptível e preservador.[2] Portanto, a ideia de vento aponta para o poder soberano de Deus que se manifesta algumas vezes como juiz, outras vezes como consolador[3] e, também, que se movimenta livremente, figuradamente, como uma tempestade, um tufão incontrolável. Daí a impossibilidade de prender, domesticar ou dominar o Espírito de Deus.
Das 389 ocorrências do substantivo no Antigo Testamento,[4] 136 se referem ao Espírito que é chamado de “Espírito de Deus” (Gn 1.2) e, principalmente, “Espírito do Senhor” (hawhy)[5] (Cf. Jz 6.34; 1Sm 16.13; Is 11.2). Estas designações não sugerem nenhum tipo de subordinação, antes, são apenas nomes que expressam o Deus que executa o seu querer. São, portanto, nomes “executivos” de Deus.[6]
Em diversos textos, refere-se ao “espírito humano”, sempre evidenciando a sua dependência de Deus,[7] visto ser o Espírito de Deus o poder vitalizador e gerador de toda criação[8] (Gn 1.2; 6.3; Jz 3.10; 13.15/14.6; 1Sm 10.6; Jó 26.13; 33.4; 34.14-15; Sl 104.29-30; 146.4; Ec 12.7; Is 40.7), inclusive dos animais (Gn 6.17; 7.15,22; Ec 3.19-21). Considerando a variedade de emprego da palavra, torna-se, em determinados casos, necessário um exame cuidadoso do contexto onde o termo é utilizado.
O Antigo Testamento enfatiza mais a atividade do Espírito do que a sua natureza, no entanto, nem por isso deixa de evidenciar a sua personalidade e divindade (Sl 51.11; Is 48.16;[9] 63.10,11; Zc 3.9/Zc 4.6,10;[10] Mq 2.7),[11] bem como a sua distinção de Deus (Nm 11.17; Ez 37.9), temas que serão melhor desenvolvidos no Novo Testamento. [12]
A atividadedo Espírito é demonstrada mais amplamente no homem, ainda que não exclusivamente, visto ser ele o agente e sustentador da criação (Gn 1.2; Jó 4.9; 26.13; 33.4; 34.14,15; Sl 33.6; 104.30; Is 40.7; 42.5). Há em todas as criaturas a sustentação de Deus. Nada existe sem a manutenção constante dele.[13]
O Antigo Testamento mostra o Espírito como onisciente (Is 40.13), onipresente(Sl 139.7) e onipotente (Is 34.16), evidenciando, assim, a impotência e inércia dos ídolos, uma vez que eles não têm espírito, não têm vida (Hc 2.19/Jr 10.14). Somente Deus pode conceder vitalidade, já que a vida pertence a ele (Ez 37.14/Hc 3.2) (hfyfx) (hãyãh).[14]
O Espirito Santo, conforme a sua natureza santa, produz no homem o caráter moral de Deus, esquadrinhando o coração dele, entristecendo-se e testificando contra o pecado, conduzindo-o por meio da regeneração (Ez 11.19; 36.26,27), ao arrependimento, à fé e à santidade (Ne 9.20,30; Sl 32.2; 51.11; 143.10; Is 59.21; 63.10,11; Ez 39.29; Ag 2.5), que se revelam num fervor religioso (Is 26.9; Zc 12.10). O Antigo Testamento ensina, claramente, que as operações do Espírito Santo envolviam uma renovação moral e espiritual de seu povo.[15]
Maringá, 16 de junho de 2020.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1] J. Barton Payne, hUr: In: R. Laird Harris, ed. Theological Wordbook of the Old Testament, 2. ed. Chicago: Moody Press, 1981. v. 2, p. 836a.
[2] F. Baumgärtel, Pneu=ma: In: G. Friedrich; G. Kittel, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982, v. 6, p. 364.
[3] Ver: Alister E. McGrath, Teologia Sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005,p. 362.
[4] 378 vezes em hebraico e 11 em aramaico (Cf. Hans W. Wolff, Antropologia do Antigo Testamento,2. ed. São Paulo: Loyola, 1983, p. 51). Vejam-se também: J. Barton Payne, hUr: In: R. Laird Harris, ed. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1407 e Wilf Hildebrandt, Teologia do Espírito de Deus no Antigo Testamento, São Paulo: Editora Academia Cristã, 2004, p. 17.
[5] Como sabemos, o tetragrama YHWH é o nome pessoal de Deus, considerado pelos judeus como o nome por excelência de Deus; ele é usado 5321 vezes no Antigo Testamento. “É especialmente no nome Yhwh que o Senhor se revela como o Deus de Graça” (Herman Bavinck, The Doctrine of God,2. ed. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1955, p. 103). Esse é reconhecido como sendo o nome pessoal, real, essencial e pactual de Deus (hw”hoy>) (Yehovah), o qual não é atribuído a nenhum outro suposto Deus ou seres angelicais (Cf. Paulo Anglada, Soli Deo Gloria: O Ser e as obras de Deus, Ananindeua, PA.: Knox Publicações, 2007, p. 35). “O ‘nome’ é Deus em revelação” (Geerhardus Vos, Teologia Bíblica, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 139). (hw”hoy>) (Yehovah) é o nome revelacional de Deus (Ex 3.14-15; 6.2-3), “Eu sou o que sou” ou, “Eu sou o que serei” ou ainda: “Eu serei o que serei”. Porém, a sua origem é disputada entre os eruditos, não se tendo uma opinião concensual. (Uma breve, porém, ótima discussão sobre o assunto temos em Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 144-147. Mais atual, porém, menos crítico: Terence Fretheim, Javé: In: Willem A. VanGemeren, org. Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 4, p. 736-741). No entanto, é o nome com o qual Deus se manifesta a Moisés e pelo nome que quer ser sempre lembrado.
[6] Veja-se: B.B. Warfield, A Doutrina Bíblica da Trindade,Leiria: Edições Vida Nova, (s.d.), p. 165.
[7] Wolff acentua que: “A maioria dos textos que tratam da rûach de Deus ou dos homens mostra Deus e o homem em relação dinâmica. O fato de que um homem como rûach é vivo, quer o bem e age com autorização não vem dele mesmo” (H.W. Wolff, Antropologia do Antigo Testamento, p. 60).
[8]Veja-se: Walther Eichrodt, Teologia Del Antiguo Testamento, Madrid: Ediciones Cristiandad, 1975, v. 1, p. 196; Veja-se: também, v. 2, p. 56ss; Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo, p. 20-24; Alister E. McGrath, Teologia Sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã, p. 363.
[9] O profeta aqui alude a si mesmo e ao Espírito, indicando a sua inspiração profética (Cf. Is 61.1; Ez 2.2; 11.5; 37.1; Zc 7.12). (Veja-se: A.R. Crabtree, A Profecia de Isaías,Rio de Janeiro: Casa Publicadora Batista, 1967, v. 1, p. 166; C.F. Keil; F. Delitzsch, Commentary on the Old Testament,Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, v. VII/2, 1969, p. 252-253).
[10] Aqui, Zacarias fala de forma poética do Espírito de Deus como sendo os “sete olhos”. Figura análoga é empregada em Ap 4.5. (Veja-se: J. Barton Payne, The Theology of the Older Testament,Grand Rapids, Michigan: Zondervan, © 1961, p. 174).
[11] Um contraste revelante é feito, quando é dito que os ídolos não têm hUr (Jr 10.14; Hc 2.19).
[12]Vejam-se: B.B. Warfield, The biblical doctrine of the Trinity: In: The Works of Benjamin B. Warfield, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 2000 (Reprinted), v. 2, p. 141-142 e Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo, p. 40.
[13] Cf. Abraham Kuyper, The Work of the Holy Spirit,p. 27.
[14] Este verbo e os seus derivados ocorrem no Antigo Testamento cerca de 800 vezes, sendo traduzido normalmente por “viver” e “vida”. A sua origem etimológica ainda não foi explicada satisfatoriamente. Biblicamente, hfyfx tem o sentido de: a) Chamar à existência o que não existia: (Gn 2.7 (adjetivo: yfx “vivente”); Jó 33.4/2Rs 5.7), e b) Preservar vivo:(Gn 7.3; 19.32; Sl 33.19; 41.2).
[15] Veja-se: Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo, p. 26-31.