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Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (53) - Hermisten Maia

Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (53)

5.4. Santificação como processo inacabado

Santificação, portanto, é o processo sobrenatural que se inicia com a regeneração, consistindo no progressivo abandono do pecado em direção a Deus. Nós somos santos em santificação! Em outras palavras: Fomos separados do mundo (santo) para crescermos, progredirmos em nossa fé (santificação). A santidade posicional requer necessariamente a santidade existencial!

A santificação jamais terá fim nesta vida. Nós não somos perfeitos, nem o seremos enquanto estivermos neste modo de vida terreno. Todavia, buscamos a perfeição; caminhamos em sua direção. Contudo, como não estamos livres da influência do pecado, significa que a nossa caminhada não é sempre na mesma direção, muitas vezes avançamos, outras vezes retrocedemos. No entanto, nesse processo, até mesmo as nossas quedas, de alguma forma fazem parte do nosso currículo salvador tendo como propósito final glorificar a Deus.

A oração do “Pai Nosso” indica que somos pecadores carentes da misericórdia perdoadora de Deus.[1] O pecado continuará por todo este estado de existência a exercer influência sobre nós. Por isso, qualquer conceito de perfeccionismo espiritual, que declare que o crente não mais peca, é ilusório e, portanto, antibíblico.[2]

Por outro lado, é preciso que entendamos que a consciência da não existência do perfeccionismo espiritual não nos pode conduzir ao extremo oposto de nos acomodar com o pecado e, até mesmo, nutrir um certo orgulho em preservá-lo.

A Palavra de Deus ensina enfaticamente que nós pecamos, mesmo após o nosso novo nascimento.[3]  Lemos nas Escrituras: “Quem pode dizer: Purifiquei o meu coração, limpo estou do meu pecado?” (Pv 29.9). “Não há homem justo sobre a terra, que faça o bem e que não peque” (Ec 7.20. Vejam-se: Rm 6.20; 7.13-25; Tg 3.2. 1Jo 1.8). Contudo não existem carências em nossa vida cristã que não possam ser supridas pelo próprio Cristo, nosso Senhor, e ele o faz nos renovando por meio do seu conhecimento pela Palavra.

O pecado tem um poder sutil. Ele nos aliena de Deus e, consequentemente de nós mesmos; fornece-nos óculos coloridos por meio dos quais nunca enxergamos a gravidade de nossa real situação. O cristianismo tem como de seus ingredientes fundamentais, a consciência de que somos pecadores e, que, sem o perdão de Deus permanecemos sob a Sua ira.

O Apóstolo João escreve aos crentes de todas as épocas, advertindo-nos quanto ao fato de nossos pecados:“Se dissermos que não temos pecado nenhum, a nós mesmos nos enganamos, e a verdade não está em nós”(1Jo 1.10/1Jo 2.1).

O que nos distingue da nossa antiga condição, além da consciência de que somos pecadores, é que não mais temos prazer no pecado; podemos até dizer que o pecado é um acidente de percurso na vida dos regenerados.

Calvino, escreve:

Todavia, que ninguém se engane nem se vanglorie do seu mal, ao ouvir que o pecado habita sempre em nós. Isso não é dito para que os pecadores durmam sossegados em seus pecados, mas unicamente com este propósito: que aqueles que, aborrecidos, tentados e espicaçados por sua carne, não fiquem desolados, não se desanimem e não percam a esperança; antes, que vejam que continuam no caminho certo e que tiveram bom proveito ao sentirem que a sua concupiscência vai diminuindo pouco a pouco, dia após dia, até chegarem à meta almejada, a saber, a eliminação derradeira e final da sua carne, alcançando a perfeição quando esta vida mortal tiver fim.[4]

Isso indica a necessidade de o convertido adquirir novos hábitos pela prática da verdade em amor (Ef 4.15). A graça de Deus é educadora (Tt 2.11-15), agindo por intermédio das Escrituras, nos corrigindo e educando na justiça para o nosso aperfeiçoamento (2Tm 3.16,17). Alguns destes hábitos santamente desenvolvidos, são: leitura da Palavra, oração, participação dos cultos, esforço no anúncio do Evangelho e ajuda aos irmãos na fé.  

Como temos enfatizado, “A santificação é um processo contínuo pelo qual Deus, por sua misericórdia, muda os hábitos e o comportamento do crente, levando-o a praticar obras piedosas”.[5] Todavia, continuaremos sendo pecadores até o fim desta existência.

O nosso crescimento externo deve ser acompanhado pelo aprofundamento de nossas raízes, buscando cada vez de modo mais profundo o nosso alimento para que possamos ter não simplesmente uma aparência espiritual teatral. Árvores mais altas necessitam de raízes mais profundas a fim de se nutrirem melhor. E como o impacto do vento é proporcionalmente maior sobre elas, precisam de maior saudável solidez.

“Éramos pecadores quando iniciamos a carreira cristã, e pecadores seremos enquanto estivermos prosseguindo no caminho. Somos renovados, perdoados, justificados, e, no entanto, pecadores até o último instante”, escreve Ryle (1816-1900).[6]

Antes, o pecado comandava o nosso pensar e agir, agora ele ainda nos influencia, todavia não mais reina. Calvino pontua em lugares diferentes: “O pecado deixa apenas de reinar, não, contudo de neles habitar”.[7] “Ainda que o pecado não reine, ele continua a habitar em nós e a morte é ainda poderosa”.[8]

John Murray (1898-1974) ilustra bem este ponto:

Há uma total diferença entre o pecado sobrevivente e o pecado reinante, o regenerado em conflito com o pecado e o não-regenerado tolerante para com o pecado. Uma coisa é o pecado viver em nós; outra bem diferente é vivermos em pecado. Uma coisa é o inimigo ocupar a capital; outra bem diferente é suas milícias derrotadas molestarem os soldados do reino.[9]

Maringá, 24 de maio de 2020.

Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa


[1] Lutero (1483-1546), em seus sermões sobre o “Pai Nosso”, proferidos em 1517, nos chama a atenção para o fato de que, quando oramos a Deus pedindo que “Faça a Sua vontade”, estamos afirmando que desobedecemos a Deus, confessando “contra nós próprios” que não cumprimos a Sua vontade. Acrescenta: “Uma vez que temos de fazer esta oração até a morte, segue-se que até à hora da nossa morte seremos também acusados de sermos os que desobedeceram a vontade de Deus. Quem, pois, pode ser orgulhoso ou subsistir à sua própria oração, quando nela descobre que, se Deus o quisesse tratar com justiça, o poderia fazer, a toda a hora e com toda a equidade condenando-o e reprovando-o como desobediente, desobediência que ele confessa com a sua boca e de que está convencido?”. Portanto, conclui Lutero, esta petição deve nos conduzir à humildade, reconhecendo a iniquidade de nossa “vontade própria”,  e a procurar sinceramente  na graça de Deus a remissão de toda a nossa desobediência (Martinho Lutero, Explicação do Pai Nosso,Lisboa: Edições 70, (Estante Espiritualidade), (1996), p. 46ss.).

[2] Veja-se a exposição da teoria e a sua refutação em:  Augustus H. Strong, Teologia Sistemática, São Paulo: Hagnos, 2003, v. 2, p. 618-624.

[3] “Quanto trazemos ainda conosco de nossa carne é algo que não podemos ignorar, pois ainda que a nossa habitação está no céu, todavia somos ainda peregrinos na terra” (J. Calvino, Exposição de Romanos,(Rm 13.14), p. 462). “…. A referida perversidade da nossa natureza nunca cessa em nós, mas constantemente (Rm 7.7-25) e produz em nós novos frutos, quais sejam, as obras da carne acima descritas como uma fornalha acesa sempre a lançar labaredas e fagulhas, ou como um manancial de águas correntes continuamente vertendo sua água. Porque a concupiscência nunca morre nem é extinta por completo nos homens, até quando, livres da morte pela morte do corpo, sejam inteiramente despojados de si mesmos. É certo que o Batismo nos garante que o nosso faraó foi afogado e que a nossa carne está mortificada. Todavia, não ao ponto de que o nosso inimigo não mais exista e que já não nos incomode, mas somente no sentido de que já não nos pode vencer. Porque, enquanto vivermos encerrados na prisão que o nosso corpo é, os restos e as relíquiasdo pecado habitarão em nós. Mas, se pela fé retivermos a promessa que Deus nos fez no Batismo, essas forças adversas não nos dominarão e não reinarão em nós” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.11), p. 166).

[4]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.11), p. 166. Do mesmo modo, ver: Juan Calvino, El Carácter de Job, Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 1), p. 32.

[5]A. Booth, Somente pela Graça,São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1986, p. 44-45.

[6] J.C. Ryle, Santificação, Santidade, São José dos Campos, SP.: FIEL, 1987,p. 56.

[7]João Calvino, As Institutas, III.3.11.

[8]João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 1.20), p. 44.

[9]J. Murray, Redenção: Consumada e Aplicada, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1993, p. 162.

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