“Eu lhes tenho dado a tua Palavra” (Jo 17.1-26) (43)
b) Para o serviço de Deus: Aqui está algo que atinge de forma decisória o cerne do pensamento anomista.[1] O homem salvo por Deus não tem o direito, nem o desejo de voltar às práticas anteriores à sua regeneração por que tais coisas passaram (2Co 5.17).
Paulo faz uma pergunta e responde: “Havemos de pecar porque não estamos debaixo da lei, e, sim, da graça? De modo nenhum” (Rm 6.15). Estar salvo significa, entre outras coisas, viver em comunhão com Deus, cumprindo prazerosamente a sua santa vontade (Lc 1.74-75; Rm 6.15; 1Pe 2.16/Gl 2.20; 1Jo 5.2-5).
A nossa libertação nos impulsiona a desejar cumprir os preceitos de Deus, fazer o que lhe agrada. Temos, agora, uma nova perspectiva de vida, um novo direcionamento. A palavra definitiva para nós é a vontade do Deus que habita em nós: “Já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que agora tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim” (Gl 2.20).
A Confissão de Westminster (1647) resume bem o que estamos dizendo:
Aqueles que, sob o pretexto de liberdade cristã, cometem qualquer pecado ou toleram qualquer concupiscência, destroem, por isso mesmo o fim da liberdade cristã; o fim da liberdade é que, sendo livres das mãos dos nossos inimigos, sem medo sirvamos ao Senhor em santidade e justiça, diante dele, todos os dias da nossa vida. (XX.3).
É justamente no serviço prestado a Deus que o homem encontra a verdadeira expressão da sua liberdade (Rm 6.22; Gl 5.13; 1Pe 2.16).
Desse modo, sabemos que, quando recebemos a Cristo como nosso salvador pessoal, estamos definitivamente libertos para Deus.
Observem a recomendação que Pedro faz às igrejas da Dispersão:
Porque assim é a vontade (Qe/lhma) de Deus, que pela prática do bem, façais emudecer a ignorância dos insensatos; como livres que sois, não usando, todavia, a liberdade por pretexto (E)pika/lumma)[2] de malícia (kaki/a),[3] mas vivendo como servos (dou=loj) de Deus. (1Pe 2.15,16).
Pedro declara que a nossa liberdade em Cristo jamais poderá servir de desculpa para a malícia. O limite de nossa liberdade é a vontade de Deus revelada em sua Palavra. Somos servos de Deus, assim, a sua vontade estabelece as normas e os limites de nossa liberdade.
O que dá maior relevância ao preceito do apóstolo Pedro, é que ele escreveu essa Epístola para os cristãos das igrejas da Dispersão (1Pe 1.1) – localizadas na região da Ásia Menor (hoje, Turquia) – que estavam experimentando tempos difíceis de severa perseguição (1Pe 1.6; 2.18-25; 4.12-16).
O sofrimento é um dos pontos mencionados com frequência nessa carta. Pedro objetivava encorajá-los, ratificando a esperança que todos deveriam ter depositada em Cristo. Por isso, “esperança” é a palavra-chave desta Carta (1Pe 1.3,13,21; 3.5,15). Daqui se depreende que as contingências políticas e sociais não devem determinar a nossa ética, mas, sim, a Palavra de Deus.
Notemos que em um período de sofrimento e perseguição, é possível que algumas pessoas, até mesmo bem intencionadas – contudo, sem o conhecimento devido da Palavra – usem do Evangelho para validar os seus desejos. Deste modo, a Bíblia passa a dizer o que queremos que ela diga. No contexto da epístola, poderiam surgir interpretações que afirmassem a liberdade cristã como pretexto para uma luta armada, o não pagamento de impostos, a desobediência às autoridades e atitudes semelhantes. Muitas vezes nós justificamos os nossos pecados, baseando-nos numa prática que julgamos comum, ou em nome da “liberdade” de Cristo. Pedro, então, ensina que a maldade jamais poderá ser praticada em nome da liberdade cristã.
O que ocorre com frequência, é a deturpação da doutrina cristã, tornando-a desculpa para o pecado, daí a advertência de Pedro.
A liberdade em Cristo deve ser vista não como consentimento para fazer o que queremos, mas, sim, como a responsabilidade para cumprirmos o que deve ser feito conforme a vontade de Deus: a nossa liberdade é para a prática do bem (1Pe 2.15-16). “O fim da liberdade cristã é incentivar-nos e induzir-nos à prática do bem”.[4]
Maringá, 20 de março de 2020.
Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa
[1]A palavra “anomia” significa “sem lei” (gr. a)nomi/a). Os anomistas entendiam que uma vez que fomos salvos pela graça, podemos fazer o que bem entendermos; a graça – interpretavam –, nos libertou para o exercício da nossa vontade.
[2]Esta palavra só ocorre aqui em todo o NT. Tem o sentido de “capa”, “cobertura”, “véu”. Aquilo que encobre; daí o sentido de “pretexto”
[3]“Mal”, “malícia”, “maldade”, “impiedade”, “depravação”, “vício”, “malignidade”. A palavra em alguns textos significa uma depravação mental de onde decorrem todos os outros vícios; ela tem de modo especial um sentido ético. * Mt 6.34; At 8.22; Rm 1.29; 1Co 5.8; 14.20; Ef 4.31; Cl 3.8; Tt 3.3; Tg 1.21; 1Pe 2.1,16. Na literatura clássica a palavra tinha o sentido de “vício” e “injustiça” (Vejam-se: Platão, ARepública,444e; Platão,Fedro,Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint, (s.d.), 248b; Aristóteles, Arte Retórica,Rio de Janeiro: Ediouro, (s.d.), II.12; Aristóteles,Ética à Nicômaco,São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 4), 1973, VII.1.15; Xenofonte, Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates,São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 2), 1972, II.1.21). Calvino comentando o uso da palavra em Ef 4.31, diz: “Por esse termo ele quer dizer que a depravação da mente, a qual é oposta ao espírito humano e à probidade, e a qual é usualmente chamada malignidade” (João Calvino, Efésios, p. 149).
[4] João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 4, (IV.14), p. 93.